domingo, 23 de janeiro de 2005
O espectáculo do espectáculo: os moralistas
"Nada é mais atraente que as coisas desonestas" [Ovídio]
Estranho espectáculo se assiste em torno da peripécia observada, supostamente, no debate Portas-Louçã e em torno dos cinco minutos passados a falar sobre o problema do aborto. A repulsa dos nossos ilustrados intelectuais contra o que denominam um "golpe baixo" de Louçã, o lavor de moralização presente nalguns blogs liberais, a hipocrisia do moralista-mor Eduardo Dâmaso, a meditação progressista de Helena Matos ou o tricot da new left Ana Sá Lopes, são de desmedida agitação e subtil excitação. Confessamos que nunca assistimos a tamanho pranto e a tão vulgar retórica.
O mais espantoso é que, de um momento para outro, o insidioso Louçã passa de patrono e zelador do direito de gays e lésbicas, radical sempre a rasgar "causas fracturantes", para findar em macilento "reaccionário" e a debitar "fascismos genéticos", tudo num "reaccionarismo progressista" nunca visto, terminando por ser um execrável neofascista, isto segundo o beato Bagão Félix. Ao mesmo tempo, sem qualquer pudor, hipocrisia ou vergonha na cara, o casto, virtuoso e democrata Portas é travestido de sujeito tolerante, paladino da verdade, da ética e dos bons costumes. Inolvidável.
A arte apurada dos nossos opinadores é um exercício assaz curioso: tentar moralizar o pensamento moralizador do "pastor das consciências tresmalhadas", o dr. Louçã. Este movimento edificador, em prol do politicamente correcto, teve sempre entre os indígenas abundantes discípulos. O gosto pelo espectáculo, embalado pelo ruído, está-lhes no sangue. Mas a distracção perante os seus ódios de estimação impede-os de reflectir, e assim o pronto a pensar politicamente correcto queda-se fracativo, tem demasiadas exuberâncias.
Curiosamente, no afã do killer instinct argumentativo do que é ou não ofensivo, caem na sua própria ratoeira e desatam a tecer duvidosas e inadmissíveis conjecturas sobre a vida privada de cidadãos, sem qualquer pejo e decoro, a partir das suas (próprias) interpretações e análises moralistas da réplica de Louçã a Portas. O instinto virulento de Eduardo Dâmaso é um study-case, dado a sua posição num jornal que se quer respeitável e de absoluta limpidez. E se já tínhamos o assessor do assessor, o gabinete do gabinete, resta para toldar a atmosfera lusa, estimular o moralista do futuro ministro da Moralidade, o qual tem Dâmaso como forte candidato.
Afinal, no episódio enleado laboriosamente pelos novos patrulhadores, nunca lhes ocorreu que, face às afirmações costumeiras de Portas sobre os putativos criminosos que propugnam a despenalização do aborto, a resposta possa ser aquela, sem segundas intenções por detrás? E que, contrariamente ao que interpreta a taramelada Ana Sá Lopes, não se trata de assumir que só aqueles que gerem filhos têm direito de se pronunciar sobre a despenalização ou não do aborto, mas sim não permitir que a intolerável ladainha sobre os criminosos a favor do aborto persista?
Por fim algumas questões mais sérias, que os nossos moralistas esqueceram de interiorizar, decorrentes da leitura das diferentes intervenções neste caso: o facto de permanecer uma curiosa visão homofóbica entre o privado e o público; a existência de um pronunciamento por um registo de afectos que se quer zelosamente guardado em "armários"; a consagração de um efeito discursivo perverso sobre a sexualidade; e que sugerem novas querelas, bem contempladas em textos do Bruno, na intervenção de CAA ou num post de Vicente Jorge Silva. Pelo menos sempre se ganhou alguma coisa, no meio de tanto moralismo serôdio.
Centenário do falecimento de Raphael Bordallo Pinheiro
Locais: Rafael Bordalo Pinheiro Desenhador, ceramista: 1846-1905 / Bordalo Pinheiro (Rafael) / Caricatura Rafael Bordalo Pinheiro / Rafael Bordalo Pinheiro (21/3/1846-23/1/1905, Portugal) / Rafael Bordalo Pinheiro na reabertura do seu museu / Rafael Bordalo Pinheiro (Fanzine) / 100 Caminhos até Bordalo / Centenário da morte de Rafael Bordalo Pinheiro comemorado em Caldas e Lisboa / Museu da Imprensa inaugura exposição de homenagem a Bordalo Pinheiro / Zé Povinho: Os Portugueses aos olhos de Bordalo Pinheiro
Raphael Bordallo Pinheiro [m. 23 Janeiro de 1905]
"A entrada em cena de Raphael Bordallo Pinheiro provocou uma revolução completa na nossa ilustração gráfica. Tão forte era a sua personalidade que os imitadores continuavam, várias décadas após a sua morte. Os gags dos seus cartoons foram repetidos até ao fastio; as histórias aos quadradinhos satíricos invadiram todos os jornais em todos os lados. A admiração que despertou, algumas vezes em excesso, fez esquecer os artistas que o precederam na caricatura e técnica narrativa (...)
Dizer que Raphael «inventou» os quadradinhos portugueses não é uma afirmação rigorosamente correcta, pois já Flora [pseudónimo ?] e Nogueira da Silva, pelo menos, tinham enveredado por esse caminho. Porém, foi Bordallo que lhes deu ductilidade suficiente para virem a ser utilizados de forma eficaz e duradoura" [António Dias de Deus, in Os Comics em Portugal uma história da banda desenhada, Cotovia, 1997]
"... Não era só no trabalho e na conversa que a graça irrompia da sua [Rapahel B. Pinheiro] fértil imaginação; um relance de olhos bastava para o sugestionar e a prova está no seguinte episódio. Anos seguidos frequentei as Caldas da Rainha, e nalgumas noites, finda a cavaqueira no Parque, o Rafael vinha acompanhar-se até casa, na rua do Capitão Filipe de Sousa, antiga do «Cabo da Vila» por ser da vila ali o termo. Numa delas, antes de nos despedirmos, parámos ainda a dar à língua quando, de súbito, olhos fitos no letreiro da rua fronteira à minha porta, comum sorriso manhoso me diz com toda a gravidade «Ó Scwalbach, você não acha uma injustiça este capitão Filipe de Sousa há tantos anos sem ser promovido?». Apoiei, a rir, o reparo. E ele, continuando, «Amanhã eu te direi, apanhas mais um galão!» Acercou-se do letreiro de azulejo, tomou certas medidas e ... «Até amanhã!». Para resumir, na noite seguinte sacou dum pedaço de papel, um pincelito, uma pouca de massa e onde se lia capitão apareceu major, a jogar na perfeição com o resto do letreiro. Num abrir e fechar de olhos lá estava Rua do major Filipe de Sousa: eu meti-me em casa e o Rafael safou-se para a dele. Ali pelas nove horas da manhã começou a dar-se pela promoção - borborinho, protestos indignados (...) Já lá vão 56 anos..." [Eduardo Schwalbach, in À Lareira do Passado . Memórias, Lisboa, 1944]
Bem fica ou Benfica eis a questão
"Como o palhaço, vamos fazendo as nossas cabriolas, simulando sempre, adiando sempre o grande acontecimento. Morremos a lutar para nascer. Nunca fomos, nunca somos. Estamos sempre na contingência de vir a ser, separados, desligados, sempre. Sempre do lado de fora" [Henry Miller]
Apetecia-nos partir depressa para o bridge mas temos o futebol ainda na cabeça, os ovos-moles na boca e as mãos teimam em dobrar o lenço que se agita em enxovalho. Mau grado as olheiras pisadas por um qualquer Tanque Silva visando a baliza de Quim e os brindes à moda da Luz, temos por nós que a malapata se deve à pieguice desse malfadado meeting entre o cangalheiro Filipe Vieira e o piegas Dias da Cunha. A tamanha coscuvilhice em público o jovem Silva não entendeu. Inculto! E eu com o bridge à perna e as noites vazias. Senhor tende misericórdia.
Pronto. E lá vamos, que se faz tarde. A récita para esconjurar o demo está feita. Suspeita-se que ainda vamos a grande cheleme. Cuidado. Há noites abundantes.
"Como o palhaço, vamos fazendo as nossas cabriolas, simulando sempre, adiando sempre o grande acontecimento. Morremos a lutar para nascer. Nunca fomos, nunca somos. Estamos sempre na contingência de vir a ser, separados, desligados, sempre. Sempre do lado de fora" [Henry Miller]
Apetecia-nos partir depressa para o bridge mas temos o futebol ainda na cabeça, os ovos-moles na boca e as mãos teimam em dobrar o lenço que se agita em enxovalho. Mau grado as olheiras pisadas por um qualquer Tanque Silva visando a baliza de Quim e os brindes à moda da Luz, temos por nós que a malapata se deve à pieguice desse malfadado meeting entre o cangalheiro Filipe Vieira e o piegas Dias da Cunha. A tamanha coscuvilhice em público o jovem Silva não entendeu. Inculto! E eu com o bridge à perna e as noites vazias. Senhor tende misericórdia.
Pronto. E lá vamos, que se faz tarde. A récita para esconjurar o demo está feita. Suspeita-se que ainda vamos a grande cheleme. Cuidado. Há noites abundantes.
sábado, 22 de janeiro de 2005
Lord Byron [n. 22 Janeiro de 1778-1824]
Lord Byron, acompanhado pelo "seu fiel criado" Hobhouse, embarcou num navio em Talmouth, nos tempos idos de Junho 1809, com destino Lisboa. Sabe-se que visitou, também Sintra e Mafra, partindo depois para Sevilha. Deixou algumas anotações sobre a sua visita a Portugal, nas suas Peregrinações.
"Pobre povo de escravos! Nascidos em tão delicioso clima! - Ó Natureza, por que hás tu prodigalizado teus dons a tal gente? O aspecto variado dos vales e das colinas de Sintra, se nos oferece como um novo Éden! Ah! que mão poderá guiar o pincel ou a pena para seguir a vista deslumbrada através dos lugares mais deslumbrantes para a contemplação dos mortais, como essas maravilhas descritas pelo poeta que ousou franquear ao mundo surpreso as portas do Eliseu?" [Estância XVIII das Peregrinações, in Lord Byron, por João Paulo Freire (Mário), Lisboa, 1944]
"Assim Mafra retê-lo-á um momento. Esta residência da infeliz rainha da Lusitânia, reuniria a igreja e a corte, os frades e os cortesãos; às missas sucediam-se os banquetes. Mistura estranha, sem dúvida; mas aqui a prostituta da Babilónia construiu um palácio tão sumptuoso, que os homens esquecem o sangue que ela tem derramado, e ajoelham perante a pompa que se esforça por emprestar ao crime enganoso"
[diz JP Freire (Mário) - «Em nota, Byron escreve: "A amplidão do Convento de Mafra é prodigiosa; reúne um palácio, um convento e uma igreja magnifica. Os seis órgãos que existem nesta igreja são os mais belos que jamais hei visto (?) Classifico Mafra o Escourial de Portugal?. Em carta a sua irmã Augusta, Byron diz-lhe que visitou a Livraria do Convento e falou latim com os frades, que lhe perguntaram se na sua pátria também havia livros ...» - Estância XXIX, ibidem]
Locais: The Life and Work of Lord Byron (1788-1824) / Lord Byron - Life Stories, Books, and Links / Lord Byron / Lord Byron (1788-1824) / George Gordon, Lord Byron 1788-1824 / Crede Byron / Selected Poetry of George Gordon Lord Byron (1788-1824) / The Diary of John Cam Hobhouse (Portugal, July 7th-23rd 1809) / The Oxford Byron Society
sexta-feira, 21 de janeiro de 2005
Flash eleitoral
"O segredo do demagogo é fingir ser tão estúpido quanto a sua plateia, para que ela pense ser tão inteligente quanto ela" [?]
A seriedade desta campanha eleitoral assegura-nos o mesmo de sempre: desânimo. Os pantomineiros do costume, na falta de informação, ideias e trabalho de casa, animam estes dias de sol imprudentemente suaves no tempo e na fortuna. A nova lida eleitoral é um ambicioso trabalho de separação entre o ético e o político, uma manifesta falta de qualquer código moral e uma paixão declarada de manipular o gado eleitoral. O que profundamente está em causa, não é a apresentação de linhas orientadoras governativas e propostas programáticas político-partidárias, mas um matraquear constante de fait-divers, uma retórica em torno de milagres para conversão da plebe, tudo isso envolto num entusiasmo infantil de luta pessoal, contra inimigos internos e externos.
Os motivos estão à vista. As prodigiosas facadas que todos os dias, sem misericórdia, os impetuosos compagnon-de-route Santanistas se aprestam a dar à criatura em chefe, são de uma ambição desmedida. Absorvidos no enlevo de se verem livres do homem, para poder mudar de amo e de negociatas, não se dão conta que foram eles que o levaram aos ombros para o trono e para nossa desdita. Ontem Morais Sarmento, hoje Aguiar Branco. É que todos estiveram no mesmo barco: o da incompetência. Ainda temos memória.
Da parte de Sócrates, a regra é ser palrador-mor. Sem que se saiba o que pretende para o país e para o mundo - e tantos dias foram já passados -, o seu único cântico é tentar contrariar as sondagens e obter a maioria absoluta, no meio de um discurso errático e vulgar. Como clonado de Santana, não possui a virtude de ser líder forte de modo a conter a tralha do seu partido e as diatribes dos seus correligionários. O episódio das miseráveis declarações de Nuno Cardoso aí está para o comprovar. Numa única semana, desbaratou capital eleitoral que dificilmente regressará. O que falta ainda percorrer revelará a dimensão da tragédia.
Olhando para o PP e para os gemidos animados do seu putativo governo, a lição é que a desgraça nunca vem só. Debatendo-se entre a urgência de dar um ar respeitável e civilizado e a tortura de não poder espinotear por aí, mais a garotada que o venera, Paulo Portas pouco tem a dizer. O vazio de ideias que manifesta é total. Encharcado de angustias quando lhe falam no seu parceiro da coligação, debatendo-se na cadeira quando ouve falar dos seus inefáveis ministros, crispado por saber que nada sabe, Paulo Portas tem a tragédia de só poder falar no trabalho do seu ministério. O resto do país passa-lhe ao lado, como foi bem visível no debate com Francisco Louçã. E este, inteligente e estudioso, vai capitalizando ideias e votos, numa argumentação irrepreensível. Compreende-se que os novos liberais, mesmo os que habitam a blogosfera, se sintam desconfortáveis. Esquecem que o mundo mudou. Estão velhos, sem ideias e sem bandeiras. O que não deixa de ser um paradoxo.
quinta-feira, 20 de janeiro de 2005
D. Sebastião [n. 20 Janeiro de 1554]
"Louco, sim, louco, porque quis grandeza
Qual a Sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza;
Por isso onde o areal está
Ficou meu ser que houve, não o que há.
Minha loucura, outros que me a tomem
Com o que nela ia.
Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?" [F. Pessoa, in Mensagem]
"O português, apático e fatalista, ajusta-se pela maleabilidade de indolência a qualquer estado ou condição. Capaz de heroísmo, capaz de cobardia, toiro ou burro, leão ou porco, segundo o governante. Ruge com Passos Manuel, grunhe com D. João VI. É de raça, é de natureza. Foi sempre o mesmo. A história resume-se quase numa série de biografias, num desfilar de personalidades, dominando épocas. Sobretudo depois de Alcácer. Povo messiânico, mas que não gera o Messias. Não o pariu ainda. Em vez de traduzir o ideal em carne, vai-o dissolvendo em lágrimas. Sonha a quimera, não a realiza?
[Guerra Junqueiro, in Pátria]
Portugal & Sebastianismo
"D. Sebastião continuará o mito do Rei Artur, como modelo exemplar da soberania; do rei que, oficiante e vítima, se oferta e imola no sacrifício ritual do seu reino, dele seu representante, a ele identificado transcendentemente; e o que, após longa dormição, o virá salvar. E assim como os Cavaleiros da Távola Redonda foram exterminados na batalha de Camlan, assim o forma os cavaleiros da nobreza do reino lusíada na batalha de Álcacer Quibir: mas também depois de sua morte, seu longo período de pausa e ocultamento, o rei salvador voltará ressuscitado, purificado e iniciado, para redimir e ressuscitar o seu povo. E entretanto, como Artur ficou permanecendo na ilha de Avalon, centro do mundo, assim também D. Sebastião ficou permanecendo na sua Ilha Encoberta, como outro centro do mundo" [Dalila Pereira da Costa, A Nau e o Graal, 1978]
"Ser navegador ... Ser navegador
Não é termos sido é sermos ainda
É irmos a Vénus ou seja onde for
Esperar os cornos onde o espaço finda
É haver Camões como uma revolta
E haver Gil Vicente como um desafio
A esse Encoberto que nunca mais volta
Porque é pretexto do nosso vazio"
[Natália Correia, in De Comunicação, 1959]
[Na Posse de George W. Bush]
Bush's Bluff (Emil Guillermo) / Bush Interview to The Washington Post / Free Iraq (Imad Khadduri's Blog) / How conservatives became so terribly oppressed (Jim Phillips) / George Bush's Vietnam (Edward Kennedy) / Iran: The Next Strategic Target / None So Blind (The Nation) / The Coming Wars. What the Pentagon can now do in secret (The New Yorker) / The Cult of George (Geov Parrish) / Who is Bush take two? (The Guardian)
quarta-feira, 19 de janeiro de 2005
O mártir Nuno Cardoso, o fundamentalista Sousa Tavares & outros
As façanhas assombrosas da classe política lusa, local e nacional, davam excelentes best-sellers. Por muito que os comentadores da coisa pública assobiem para o ar, entretendo-se em produzir alucinadas teorias para a salvação da pátria, nada consegue fazer esquecer o fastio da contemplação da corrupção, que é transversal a toda a sociedade portuguesa. E quando a coisa assumiu tamanha proporção não há modelos económicos, políticos ou sociais que resistam. O argumento do debate político contínuo encerra algumas virtuosidades, mas não basta aceder ao seu discurso sem que as enfermidades maiores do sistema democrático sejam resolvidas. E a corrupção, o compadrio, o deixa-andar, o apostolado partidário, o fundamentalismo de todas as matizes, admitidas com o maior dos beneplácitos pela elite indígena, tornam moribunda a sociedade civil e castra o exercício da cidadania. Ou este jogo insuportável se atenua ou a tragédia não tem fim.
Hoje calhou a vez a Nuno Cardoso. E de novo está presente a relação suspeitosa entre presidentes de câmaras, empreiteiros e clubes de futebol. Ainda os arrufos de Fernando Ruas, em defesa e lisonja dos autarcas, desabavam nos jornais, já o caso Nuno Cardoso aí estava. A fé jurada de Ruas em homenagem aos autarcas teve a sua morte prematura. A classe política lançou sementes que, curiosamente, germinaram. Por culpa de todos nós.
O caso de Miguel de Sousa Tavares, hoje em pronunciamento na TVI, desvela as cândidas oportunidades que demos a toda essa gente. Por manifesto fundamentalismo clubístico, Sousa Tavares não quer ver o que aí está. Furioso dispara para todo o lado, à maneira dos hooligans. Custa acreditar no que se está a ver. E quando só reconhece o facto se a cadeia das desgraças abraçar, também, os outros clubes rivais, então estamos perante um caso clínico grave. Não merecíamos este Sousa Tavares, arrastado pela clubite, bizarro, fanático e suplicante. Precisamos de homens livres e por inteiro. Se ainda existirem.
Alexander Woollcott [n. 19 Janeiro 1887-1942]
"Há muitos chás em moda, porém nenhum como os de Dorothy Parker e seus cavaleiros. É que nos tempos confusos da Lei Seca, nos E.U.A., eles se reuniam em torno da Távola Redonda do Hotel Algoquin para bebericar xícaras e xícaras de ... Uísque! E, isso mesmo. Era o uísque que lhes aquecia as tardes nova-iorquinas dos anos vinte, liberando as línguas para o vituperioso exercício de falar mal da vida alheia. Maldade com classe, é bom frisar. (...) Era um grupo formado pelos melhores artistas da época. Figuras como o comediante Harpo Marx, o editor da New Yorker, Harold Ross, o teatrólogo Robert Sherwood, o editor da Vanity Fair, Frank Crowninshield, o crítico Alexander Woollcott e muitos outros" [in O chá de Dorothy Parker e sua loira burra]
"Tout juste avant de devenir un adulte, je caressais trois rêves : devenir un héros comme Lindberg, apprendre le chinois et adhérer à l'Algonquin Round Table" [J. F. Kennedy]
Locais: Alexander Woollcott / Alexander Woollcott (1887-1942) / Alexander Woollcott - The Man Who Came to Dinner / Miss Kitty Takes to the Road, August 1934 / The Algonquin Round Table / "The Algonquin Round Table" / Algonquin Round Table / Algonquin Round Table (Caricature) / The Algonquin Hotel, New York
[Manias de bibliófilos 2]
"... Há por aí alguém que tenha conhecido o Pereira Merelo! (...) Esse tinha outra mania. Tudo lhe prestava, contanto que tivesse forma de livro. Velhas crónicas, livros de missa, números soltos de jornais, romançada de três ao pataco, edições princeps, relatórios de associações, tudo encontrado, depois da morte daquele célebre corretor de Bolsa, metido em sacos de linhagem, à laia de batatas ou feijão em fundo de armazém. Tenho essa informação de Teófilo Braga que prefaciou essa aventesma bibliográfica que é o catálogo do leilão Merelo.
Mas no meio daquele entulho livresco, que os ratos e as baratas já começavam a rilhar, quantos manuscritos preciosos, quantos exemplares únicos de incunábulos e livros do quinhentos e seiscentos.
Merelo foi o tipo de bibliófilo hermético. Livro que lhe caísse nas mãos era alma que caía no inferno: nunca mais ninguém lhe punha a vista em riba. Não há notícia de pesquisador a quem o famoso corretor permitisse a conslta dum livro..."
[Cardoso Martha, in Almanaque do Jornal O Século, 1931]
"... Há por aí alguém que tenha conhecido o Pereira Merelo! (...) Esse tinha outra mania. Tudo lhe prestava, contanto que tivesse forma de livro. Velhas crónicas, livros de missa, números soltos de jornais, romançada de três ao pataco, edições princeps, relatórios de associações, tudo encontrado, depois da morte daquele célebre corretor de Bolsa, metido em sacos de linhagem, à laia de batatas ou feijão em fundo de armazém. Tenho essa informação de Teófilo Braga que prefaciou essa aventesma bibliográfica que é o catálogo do leilão Merelo.
Mas no meio daquele entulho livresco, que os ratos e as baratas já começavam a rilhar, quantos manuscritos preciosos, quantos exemplares únicos de incunábulos e livros do quinhentos e seiscentos.
Merelo foi o tipo de bibliófilo hermético. Livro que lhe caísse nas mãos era alma que caía no inferno: nunca mais ninguém lhe punha a vista em riba. Não há notícia de pesquisador a quem o famoso corretor permitisse a conslta dum livro..."
[Cardoso Martha, in Almanaque do Jornal O Século, 1931]
terça-feira, 18 de janeiro de 2005
Ary dos Santos [m. 18 Janeiro de 1984]
"... A poesia é de mel ou de cicuta?
Quando um poeta se interroga e escuta
ouve ternura luta espanto ou espasmo?
Ouve como quiser seja o que for
fazer poemas é escrever amor
a poesia o que tem de ser é orgasmo" [Ary]
"Isto vai meus amigos, isto vai
um passo atrás são sempre dois em frente
e um povo verdadeiro não se trai
não quer gente mais gente que outra gente
Isto vai meus amigos isto vai
O que é preciso é ter sempre presente
Que o presente é um tempo que se vai
E o futuro é o tempo resistente ..." [Ary, in O Futuro, 1978]
"... Serei tudo o que disserem:
Poeta castrado não!" [Ary]
Locais: Ary dos Santos / José Carlos Ary Santos / Ary dos Santos (1937-84) / Biografia / A Máquina Fotográfica / Queixa e imprecações dum condenado à morte / Poemas / Aqui Jaz Ary dos Santos sentado no muro do cemitério a ver passar a classe operária
Momento absolutamente desportivo
"Who has good luck is good, Who has bad luck is bad" [Brecht]
Apartados do mundo - oh eterno bridge p'la noute dentro - não acompanhámos o mistério do gozo e vil penar dos aspirantes ao título de campeon nacional de futebol. Mas generosidade amiga, em terras do Mondego, com o senhor Reytor lá no cimo venerando, contou-nos a dedicaçon que os emissários do Norte transportaram no jogo com os estudantes da Briosa. Espíritos devassos confessam o desgosto de não se tirar proveito da alegre passeata dos azuis e brancos e, evidentemente, de não lhes ter ensinado a tabuada. Ah meus caros amigos, como soys caprichosos!
Em banhos na Madeira, Peseiro & seus formosos muchachos, tiveram o mayor dos recolhimentos. As fadigas de Sá Pinto, a decoração defensiva de Polga e a energia de Paíto são salutares temperos na fecunda equipa d'Alvalade. Os assuntos futebolísticos dos verdes são cada vez mais lavrados em inocentes jogatinas em versão solteiros contra casados. Só a fé é que os salva. E o Dias da Cunha. Não vale a pena ruborizarem-se. Convertei-vos!
Ah! e que dizer da eloquência do futebol avermelhado? Daquele momento heróico, cheio de Mantorras, temperado por Simãozinho, que a eternidade gravou? Vós, educados nos sãos princípios do futebol, submissos ao belo e severos às lides da bola respigai soidades. Prestai homenagem. E vós ímpios, nada de prantos! Aproxima-se a inevitável hora. Fazei vénia. Disse.
[Manias de bibliófilos]
"... Um falecido estanceiro, bibliófilo amador, que mercê de muitos contos de réis conseguiu reunir uma preciosa livraria, esse esperava nos leilões que o volume desejado excedesse o lanço de cinquenta mil réis para o arrematar. Até esta altura, o livro não era digno dele - era entulho sem valor. Mas logo que o desejado calhamaço excedesse a bitola dos cinquenta, tínhamos homem. Já não o largava.
Eu ainda conheci um patusco que comprava todas as Artes de Furtar, da hipotética autoria do Padre António Vieira, que topasse à venda em alfarrabistas ou de que tivesse notícia por catálogos ou informações pessoais. Assim alcançou uma duas ou três dezenas. Um dia, tendo os encharcados previamente de petróleo, deitou-lhes o fogo num pátio interior da casa onde morava, no meio dos protestos da vizinhança, escamada com a fumaceira que invadia os prédios circundantes até às águas furtadas.
Queria o bom homem - vejam lá esta ratice! tornar rara aquela obra. Tempo perdido, porque a Arte de Furtar ainda hoje não figura no elenco das raridades ..."
[Cardoso Martha, in Almanaque do Jornal O Século, 1931]
"... Um falecido estanceiro, bibliófilo amador, que mercê de muitos contos de réis conseguiu reunir uma preciosa livraria, esse esperava nos leilões que o volume desejado excedesse o lanço de cinquenta mil réis para o arrematar. Até esta altura, o livro não era digno dele - era entulho sem valor. Mas logo que o desejado calhamaço excedesse a bitola dos cinquenta, tínhamos homem. Já não o largava.
Eu ainda conheci um patusco que comprava todas as Artes de Furtar, da hipotética autoria do Padre António Vieira, que topasse à venda em alfarrabistas ou de que tivesse notícia por catálogos ou informações pessoais. Assim alcançou uma duas ou três dezenas. Um dia, tendo os encharcados previamente de petróleo, deitou-lhes o fogo num pátio interior da casa onde morava, no meio dos protestos da vizinhança, escamada com a fumaceira que invadia os prédios circundantes até às águas furtadas.
Queria o bom homem - vejam lá esta ratice! tornar rara aquela obra. Tempo perdido, porque a Arte de Furtar ainda hoje não figura no elenco das raridades ..."
[Cardoso Martha, in Almanaque do Jornal O Século, 1931]
segunda-feira, 17 de janeiro de 2005
Calderón de la Barca [n. 17 Janeiro de 1600-1681]
"Apurar, ó céus, pretendo,
já que me tratais assi,
que delito cometi
contra vós outros, nascendo;
que, se nasci, já entendo
qual delito hei cometido:
bastante causa há servido
vossa justiça e rigor,
pois que o delito maior
do homem é ter nascido ..." [in La Vida es Sueño, trad. Jorge de Sena]
Locais: Calderón de la Barca / Pedro Calderón de la Barca / La vida es sueño / Poemas
A mezinha de Barreto, a sabatina do Espada e o ministro Rosado Carvalho
O que seriam as nossas vidas sem as croniquetas e as oratórias dos divinos António Barreto, João Carlos Espada e Carlos Rosado de Carvalho? Decerto a dor de não tresler a tribuna sagrada de António Barreto no Público seria um tormento horrendo, um choro desvalido, uma maldade moderna. Não aludir nas conversetas de café o ímpeto neo-liberal do profeta Espada nas páginas d'O Expresso, um desaforo severo, uma insensatez pedante. Deixar de ouvir o putativo ministeriável Rosado de Carvalho e a sua economia amestrada, na SIC-Notícias, um esquecimento mesquinho. A obediência a estes preclaros doutores, que com a pena e a palavra instruem os indígenas lusos e quiçá europeus, é um sentimento nobre e a esperança que o País, embevecido, contempla a sua própria ruína. A obra libertadora com que adoçam os seus queixumes sobre a horrível ralé, a média burguesia ou o pé descalço, arrisca-se a ganhar a imortalidade. Portugal, com tais apologistas, brilhará para todos nós. Sigamos os mestres, pois.
Cumpre-nos referir, no entanto, aos sábios e inocentes pregadores que as venturosas sabatinas que temos o privilégio de atender andam tumultuosas. Esta semana, por exemplo, a mezinha de Barreto diz-nos que o problema do ignóbil Portugal pode ser resolúvel pelo pacote do sistema de círculos uninominais. Mais, não sabendo bem como seria a sua configuração, Barreto assegura-nos uma certeza: na impossibilidade de mudar de país, contra os políticos populistas e deputados inúteis, resta-nos alterar o sistema eleitoral. Era, pois, certo e sabido que doravante chegaríamos ao topo da Europa e da civilização. O povo, resignado, inculto e iletrado compreenderia, e castigaria, na sua bondade democrática, os caciques distritais e nacionais, os suspeitos do costume. Um mar de rosas.
Por fim, a sabatina de Espada sobre "O desafio do Oriente", no Expresso, é de uma grandeza libertária inolvidável. Ficámos persuadidos. Pois, se até o director do departamento de ciência política da Universidade de Sun Ya Tsen (longa vida camarada Mao) fala "inglês fluente", porque razão não entramos já nesse novo campeonato mundial de baixa de impostos!? Absolutamente, professor. E que dizer do temerário Rosado de Carvalho que garantiu na SIC, a propósito da eliminação dos benefícios fiscais, e contrariando os desígnios de Lopes & Sócrates, que se deve liquidar não uma classe média, mas duas ou três, de preferência (sic)!? Genial o douto politólogo. Ainda vai a ministro. Oremos.
[Em 1966 "Sounds of Silence" por Simon and Garfunkel. Nunca mais fomos os mesmos. Nunca mais ficámos quietos no incêndio do nosso coração. Nunca mais.]
"Hello darkness, my old friend,
I've come to talk with you again,
Because a vision softly creeping,
Left its seeds while I was sleeping,
And the vision that was planted in my brain
Still remains
Within the sound of silence.
...
«The words of the prophets
are written on the subway walls
And tenement halls»
And whisper'd in the sounds of silence". [The Sound of Silence]
Locais: Simon and Garfunkel / Simon and Garfunkel / The Simon and Garfunkel Homepage / Poet Musician Artist - A Critical Commentary / The Sound of Silence / The Sound of Silence (Lyrics) / Sounds Of Silence (Lyrics - tradução)
sábado, 15 de janeiro de 2005
[A Bem da Nação]
"Os homens parecem-se como corvos de olhos fixos que levantam voo por sobre os cadáveres e todos os peles-vermelhas são chefes de estação" [Francis Picabia]
Desfilaram esta semana um conjunto apreciável de sujeitos nas festas eleitorais. Enquanto a gravidade económica do país era assinalada, curiosamente também pelos que mais participaram na sua mediocridade, cá dentro e nos países civilizados, os diferentes espíritos da coisa pública, em discursos buliçosos, entravam no mais perfeito dislate. Supõe-se que os parcos aplausos eram todos "a Bem da Nação".
A crónica inicia-se pela apologia inenarrável do despeitado turista acidental, Morais Sarmento, a banhos em S. Tomé. A fraseologia usada revela-se de pouca singularidade. Fosse o ministro Sarmento um qualquer gentio da província, um ilustre desconhecido da administração pública, tivesse vestido a farpela fútil d'algum secretário de estado ou ministro-a-dias, que a palestra em sua defesa não existiria. O tiroteio seguido de intensa emoção, que o facto desvelaria, percorreria o país de lés-a-lés, e os frémitos contra o desafortunado turista produziriam em todas as bancadas espasmos colossais. Mas o homem era outro. Neste caso, passe o dito cheio de graça de Lobo Xavier que jura que Sarmento é homem de sucesso (curiosamente, todas as luminárias da politica o são, caso do próprio Xavier), a classe política juntamente com alguns opinion makers de serviço à Nação fizeram a desafronta e chibataram a plebe. Que não deve ter gostado da reprimenda.
Quanto ao cada vez mais clone de Santana Lopes, o eng. Sócrates, o caso é deveras admirável. A sua afoiteza em jurar eterno apoio do Estado aos mais pobres, "aqueles que se encontram abaixo do limiar da pobreza", fez lembrar com eterna saudade o outro engenheiro, de nome Guterres. A gaffe é elucidativa. A história repete-se. Como dizia o outro, "a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa". A peça espectaculosa sobre a eliminação ou não dos benefícios fiscais num futuro governo de Sócrates foi clarificadora. Diz-se uma qualquer coisa, não importa o quê, contra o governo com a alegação que a classe média é penalizada, que não há equidade fiscal, e noutro momento, imperturbavelmente, faz-se o elogio da estabilidade fiscal Santanista. Não há paciência para iluminadores assim. Ninguém resiste a tal grotesco.
Subscrever:
Mensagens (Atom)