domingo, 23 de janeiro de 2005


O espectáculo do espectáculo: os moralistas

"Nada é mais atraente que as coisas desonestas" [Ovídio]

Estranho espectáculo se assiste em torno da peripécia observada, supostamente, no debate Portas-Louçã e em torno dos cinco minutos passados a falar sobre o problema do aborto. A repulsa dos nossos ilustrados intelectuais contra o que denominam um "golpe baixo" de Louçã, o lavor de moralização presente nalguns blogs liberais, a hipocrisia do moralista-mor Eduardo Dâmaso, a meditação progressista de Helena Matos ou o tricot da new left Ana Sá Lopes, são de desmedida agitação e subtil excitação. Confessamos que nunca assistimos a tamanho pranto e a tão vulgar retórica.

O mais espantoso é que, de um momento para outro, o insidioso Louçã passa de patrono e zelador do direito de gays e lésbicas, radical sempre a rasgar "causas fracturantes", para findar em macilento "reaccionário" e a debitar "fascismos genéticos", tudo num "reaccionarismo progressista" nunca visto, terminando por ser um execrável neofascista, isto segundo o beato Bagão Félix. Ao mesmo tempo, sem qualquer pudor, hipocrisia ou vergonha na cara, o casto, virtuoso e democrata Portas é travestido de sujeito tolerante, paladino da verdade, da ética e dos bons costumes. Inolvidável.

A arte apurada dos nossos opinadores é um exercício assaz curioso: tentar moralizar o pensamento moralizador do "pastor das consciências tresmalhadas", o dr. Louçã. Este movimento edificador, em prol do politicamente correcto, teve sempre entre os indígenas abundantes discípulos. O gosto pelo espectáculo, embalado pelo ruído, está-lhes no sangue. Mas a distracção perante os seus ódios de estimação impede-os de reflectir, e assim o pronto a pensar politicamente correcto queda-se fracativo, tem demasiadas exuberâncias.

Curiosamente, no afã do killer instinct argumentativo do que é ou não ofensivo, caem na sua própria ratoeira e desatam a tecer duvidosas e inadmissíveis conjecturas sobre a vida privada de cidadãos, sem qualquer pejo e decoro, a partir das suas (próprias) interpretações e análises moralistas da réplica de Louçã a Portas. O instinto virulento de Eduardo Dâmaso é um study-case, dado a sua posição num jornal que se quer respeitável e de absoluta limpidez. E se já tínhamos o assessor do assessor, o gabinete do gabinete, resta para toldar a atmosfera lusa, estimular o moralista do futuro ministro da Moralidade, o qual tem Dâmaso como forte candidato.

Afinal, no episódio enleado laboriosamente pelos novos patrulhadores, nunca lhes ocorreu que, face às afirmações costumeiras de Portas sobre os putativos criminosos que propugnam a despenalização do aborto, a resposta possa ser aquela, sem segundas intenções por detrás? E que, contrariamente ao que interpreta a taramelada Ana Sá Lopes, não se trata de assumir que só aqueles que gerem filhos têm direito de se pronunciar sobre a despenalização ou não do aborto, mas sim não permitir que a intolerável ladainha sobre os criminosos a favor do aborto persista?

Por fim algumas questões mais sérias, que os nossos moralistas esqueceram de interiorizar, decorrentes da leitura das diferentes intervenções neste caso: o facto de permanecer uma curiosa visão homofóbica entre o privado e o público; a existência de um pronunciamento por um registo de afectos que se quer zelosamente guardado em "armários"; a consagração de um efeito discursivo perverso sobre a sexualidade; e que sugerem novas querelas, bem contempladas em textos do Bruno, na intervenção de CAA ou num post de Vicente Jorge Silva. Pelo menos sempre se ganhou alguma coisa, no meio de tanto moralismo serôdio.