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quarta-feira, 29 de outubro de 2003

O PASTELEIRO

"Em 1590 o pasteleiro Diogo Delgado estabelecia-se em Coimbra, depois de ter aprendido a arte em Lisboa e ter prestado aí as sãs provas práticas e teóricas perante os dois juízes do ofício Mateus Rodrigues e António Alvares, tendo o escritor respectivo redigido a acta, por onde ficámos sabendo como decorrera o exame:

«Foram requeridos os juízes do oficio dos pasteleiros por parte de Diogo Delgado, dizendo que se queria examinar, os quais juízes, Mateus Roiz e António Alvares, determinam de se ajuntarem em casa de mim escrivão para ser feita a dita examinação, os quais juízes comigo escrivão fomos juntos em 26 dias do mês do Outubro de 1689 e logo foi examinado de prática e de pasteis e empadas e de todas as obras conteudas no regimento e acostumadas e lhe foi lido o regimento para que usasse do seu oficio conforme a consciência e qualidades dele. Feito em Lisboa, ano de nascimento de nosso senhor Jesus Cristo de 1589 anos ...»

(...) O pasteleiro abriu a sua tenda, isto é, a sua pastelaria e dispoz-se a acatar o regimento, que devia ser semelhante ao de Lisboa e se encontra publicado pelo Prof. Vergílio Correia. Diogo Delgado tinha de apresentar no seu estabelecimento pasteis de cinco, dez, vinte e cincoenta reis; empadas no tempo do pescado; pasteis reais; pasteis de frangão e de pombinho. Havia de saber quais os adubos e temperos para o Verão, quais para o Inverno, e como se temperava o carneiro, a vaca ou o pôrco. Nada de falsificar os pasteis com bode, cabra ou pòrca e muito menos com carne que não fosse fresca ou de animal que se não usasse. Nada de vender pasteis de véspera, nem ter vendedeiras ambulantes, nem dar de comer na tenda a escravos cativos, e ainda menos de beber. O regimento proibia os ofícios a mouros, mesmos forros, porque não eram fieis e verdadeiros como exigia a profissão. As mulheres podiam ser pasteleiras. As infrações ao regimento eram severamente punidas com multas e cadeia ou mesmo com a suspensão do ofício se houvesse reincidência. (...)

Até Dezembro de 1604 os pasteleiros de Coimbra estavam encorporados na Bandeira dos marchantes, carniceiros, tripeiros e vendeiros, uma das 12 da Casa dos 24 e com eles figuravam na Procissão do Corpus Cristi ou outras em que eram obrigados a colaborar as Bandeiras dos mesteres (...) Mas naquele ano subiu-lhes o brio à cabeça e acharam que lhes não ficava bem acamaradar com os antigos companheiros (...) e forma requerer à Câmara que os deligasse dos colegas e os anexasse aos ... Adivinhem a quem! Pois aos luveiros ... E foram atendidos."

[A. Da Rocha Brito, in Gazeta de Coimbra, 1944 ? - gravura de William Hogarth]

quinta-feira, 16 de outubro de 2003

BARBEIROS E SANGRADORES


 
[Barbeiros e Sangradores]

"In illo tempore, naqueles tempos quem sangrava os humanos era o barbeiro-sangrador, mas tinha de registar na câmara a sua carta e esta só a podia obter em Lisboa depois de examinado e aprovado pelo cirurgião-mór. Falta ao barbeiro sangrador ainda uma condição importante, conhecer bem e sujeitar-se inteiramente ao Regimento da sua arte.

O de Coimbra sumiu-se, mas existe o de Lisboa, publicado com outros pelo professor Virgílio Correia. Segundo nele se lê, todo o barbeiro sangrador tem de possuir no seu arsenal ... cirúrgico duas lancêtas estreitas para os meses de Verão e duas largas para os de Inverno; um espinho de lanceta; um sarjador para sarjar e sarrafar, sem ponta; uns pós restrictivos para estancar «qualquer fluxo de sangue»; duas ventosas muito pequenas para o pescoço, duas meãs, duas grandes e uma muito grande composta para barriga. Sobretudo, que não sangre sem indicação médica, mesmo que o doente o peça.

Abusou-se da sangria; Gil Vicente meteu-a a ridículo e mais tarde Molière troçou-a a bom troçar. Sangrava-se para se curar, sangrava-se para se prevenir a doença e até se sangrava para se manter a saúde: sangrar-se em saúde é daí que vem. Era o delírio vermelho (...) a nossa Câmara entendeu, honra lhe seja, que devia pôr um freio aos desmandos, obrigando sob pesada multa os barbeiros a só sangrarem sob autorização clínica e a recolherem o sangue não em malgas, mas em tijelinhas, para não excederem «as onças prescritas pelo medico.»

«Nesta câmara (6 de Março de 1574) se praticou que era grande prejuízo para a saúde, os barbeiros e sangradores, que sangram, tomarem o sangue dos doentes e das pessoas que se querem sangrar, em malgas grandes, com o que podem mal saber a quantidade das onças, que os médicos mandam tirar, pelo que acordaram e mandaram que nenhuma pessoa que sangrar, sangre senão por conselho do medico e será obrigado a trazer tijelinhas em que o tire e não em malgas grandes, nem outras vazilhas, sob pena de quem o contrario fizer, pagar 2.000 rs., a metade para esta cidade e a outra para quem os acusar. Pêro Cabral» (...)

Resta-nos saber como era redigida a carta de barbeiro sangrador. Ei-la:

«Gaspar da Costa cirurgião mor del rei nosso senhor etc faço saber a todos los correjedores autoridades juízes justiças oficiais e pessoas a que esta minha carta for mostrada e o conhecimento dela com direito pertencer que eu dou logar e licença a Francisco Rodrigues morador em a cidade de Coimbra filho de Francisco Rodrigues que ele possa sangrar sarrafar tirar dentes lançar ventosas por todos estes reinos e senhorios porquanto o examinei e achei auto e suficiente para usar do que dito é e portanto requeiro às ditas justiças da parte do dito senhor que por o dito Francisco Rodrigues asi usar do que dito é o não prendam nem mandem prender nem lhe consintam ser feito nenhum desaguisado nem em razão antes livremente o deixem usar do dito oficio de sangrador como dito é e assim o dito Francisco Rodrigues não sangrará pessoa alguma sem mandato do mestre sob pena de dous marcos de prata. Antº Borges; pg 50 rs. A qual foi apresentada em Câmara aos oficiais dela aos 16 de Julho de 1574»

[A. Da Rocha Brito, in Gazeta de Coimbra, 30/03/1944 ?]