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segunda-feira, 5 de março de 2007
Alface (1949-2007) Escritor excelentíssimo - por Vasco Santos
Quando Alface morreu, na súbita noite de quinta-feira, o Campo Pequeno continuava económico lá fora e o tempo era favorável, caloroso, na comunidade de leitores que, devagar, o descobriam.
Os gregos chamavam kairos ao momento oportuno, ao tempo distenso, aquele em que a vontade dos deuses e dos homens se encontra e o sujeito assume a absoluta figura do seu destino. (Assim era.)
(...) Por detrás das suas sete dioptrias Alface topava-nos na nossa lusa alma de barata com pessimismo, ironia e superior inteligência. Em resumo: palavra festa brava. Alface escreveu, ainda, para jornais, publicidade, rádio, televisão e cinema sem nunca desvirtuar, no gosto da escrita, a liberdade que considerava ser a sua essência e justificação.
O João Carlos foi um homem livre e generoso. Era mordaz e, havia dias, um céptico quase pirrónico. Possuía um humor swiftiano, desconcertante e lúcido e aristocrático.
Dançava.
Gostava muito do Alentejo, do Benfica, de ler. De ler por exemplo o Gombrowicz, o Maurice Pons, mas gostava também da Associação Pedrista de Montemor-o-Novo e da boa cozinha destas terras. Era um ouvinte delicado.
Habitava-o uma humanidade que a inteligência não destruía. Talvez por isso não tenha acabado os cursos de direito e psicologia preferindo uma lateral ars de viver.
Aprendi muito com ele. Diverti-me muito com ele. (Só não gostava apaixonadamente de gatos, algo que nos separava). Foi dos meus autores o mais leal, o mais justo. E nunca usou grandes sapatos no escritório.
Tinha um narcisismo de vida e gostávamos de jantar em família, a sós, ou com o Carlos Coelho Campos, o Victor, o Bicker e muitos outros. O Alface tinha uma disponibilidade imensa e muitos amigos, muitas amigas.
Ele faz-me muita falta. O Alface faz-nos muita falta.
E só não faz falta à literatura portuguesa porque escreveu depressa e partiu cedo, sem prosa algaliada a atravancar a loja, pelo que os seus livros vão andar muito tempo por aí, numa luminosidade inconveniente.
[João Carlos Alfacinha da Silva, Alface (1949-2007) Escritor excelentíssimo, por Vasco Santos (Editor da Fenda), in Público, 5/03/07 - sublinhados nossos]
A morte que entre
"Mal caiu à cama , o avô mandou chamar por mim, mas não me encontraram porque estava escondido no sótão a espreitar a sopeira que ensaiava ao espelho poses lascivas numa roupa interior de folhos e rendinhas que eu lhe oferecera estoirando as mesadas dos últimos seis meses e que o avô fizera o favor de adquirir em meu lugar na Loja do Povo, não sendo portanto de espantar que o cinto de ligas e as meias de vidro, tal como as cuecas vertiginosas e o sutiã blindado lhe assentassem às mil maravilhas na impudícia carnal. Oh impudícia, oh mor glória!
A tratante fingia ignorar a presença do menino no acre armário de madeira, esgazeado com o cheirete a naftalina que ensopava aventais, batas e fardas de gala, e ela dava o cuzinho repolhudo e empinava as mamas, estirava o pescoço e as coxas, afagava a redondice da barriga e a rolice dos ombros, tudo para ver se acabava comigo, a realíssima putéfia. Só vista.
Ninguém diria, mas ninguém diria, olhando os olhos e as carninhas dominadoras, que aquilo era pouco mais que uma miúda, fresco produto campaniço (...)
Avô, posso ver-te morrer?
Se te portares bem.
Também posso morrer contigo, avô?
Vive antes comigo, miúdo.
Tens mesmo de morrer?
Por mim não tinha.
(...) Avô, será verdade?
O quê, miúdo?
Que o céu está cheio de gajas boas?
Esteve para aí dez minutos a rir, o avô. Não parava. As lágrimas corriam-lhe em bica pelo carão abaixo. Cataratas.
Acorreu a enfermeira e vá de rir histericamente, como veio a família em peso e não tardou que as gargalhadas deles fizessem chocalhar o lustre do tecto. As tias velhas agarravam-se às velhas barrigas inchadas, os primos do campo uivavam e batiam as botas no soalho azinho, a sopeirinha mijou-se, o Gastão desatou a soltar inconveniências e ouviu-se milagre, o mudo fala.
Diz-se tudo.
Não repararam foi que o avô tinha deixado de rir. Ele e eu.
O avô tinha nos olhos o sorriso mais bonito que se pode ter. Sempre teve. Fitava-me a direito. De tanta ternura é que morreu"
[Alface, in O Fim da Bichas, Fenda, 1999]
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