terça-feira, 11 de maio de 2004

Desafio

Passeava a formosa Laurentina
Pelos domínios do Marquês de Angeja,
E despontava a lua alabastrina
Por cima dos telhados da Igreja.

Com receio de que a mãe suponha, ou veja,
O que entre o par rebelde se maquina,
Dá-lhe ele a ela um frasco de morfina
E ela a ele um copásio de cerveja:

Toma! lhe diz, três vezes repetindo
A clara frase e paternal de - toma! -
Toma! lhe diz, e estende o braço lindo.

Mas ele, que três vezes foi a Roma,
Julgando que no frasco há fel, sorrindo:
- Duvido que haja puta que me coma!

[João de Deus, in Criptinas, ed. & ETC, 1981]

A Revolução Social [nº 1, 15 de Janeiro de 1888]

"... a corrente anarquista já presente embrionariamente em «O Pensamento Social» não cessou de desenvolver-se, enquadrando-se sobretudo nas associações de resistência operária e editando folhetos doutrinários de divulgação teórica. Em 1887 [?] começou a ser publicado o primeiro jornal anarquista, «A Revolução Social» que se definia como órgão dos grupos «comunista-anarquista». É um caso surpreendente este jornal. Surpreendente pela qualidade gráfica e de paginação, mas surpreendente também pela qualidade do seu conteúdo e pela tentativa de situar-se no quotidiano difícil dos trabalhadores portugueses (...) promoveu a sistemática divulgação do pensamento anarquista mais significativo do século XIX, fazendo inserir regularmente nas suas páginas artigos, traduções e «correspondência» de Malatesta, Cafiero, Reclus, S. Fuare, M. Netlau, J. Guillaume, etc ..."

[César de Oliveira, in Antologia da Imprensa Operária Portuguesa, P & R, 1984]

Leilão de Importante Biblioteca Particular

Hotel Roma - Dias 17/18/19 e 20 de Maio, pelas 21 horas

Algumas referências [cont.]: Historia de Portugal popular e ilustrada, por Pinheiro Chagas, 1899-07 (3ª ed.), 14 vols / Cinéfilo: suplemento quinzenal de O Século, Ano I, nº 1 (2 de Junho 1928) a Ano XI, nº 578 (completo) / Circulo Camoniano: revista internacional, 1889-1892, II vol., 20 fasc. (completo e raro) / Questões histórico-coloniais, por Luciano Cordeiro, 1935-36, III vols / O Homúnculo, de Natália Correia, S/d, Ed. Contraponto (raro) / Cancioneiro chamado de D. Maria Henriques, por D. Francisco da Costa, 1956 [imp. para hist. descob., c/ bibliografia náutica port. até 1700] / Notas da Minha Vida e do meu Tempo, por Homem Christo, Lisboa, VII vols [notas do grande polemista aveirense] / Chronica de El-Rei D. Sebastião por Fr. Bernardo da Cruz, 1837 / O Diário de Notícias, a sua fundação e os seus fundadores - Alguns factos para a historia do jornalismo português, por Alfredo da Cunha, 1914 [expl. Nº 1, pertença de Maria Adelaide Coelho da Cunha, da edição especial comemorativa dos 50 anos do DN / Diálogos de Dom Frey Amador Arraiz, Bispo de Portalegre, 1846, nov. ed. / Discursos Parlamentares proferidos pelo Duque de Palmela nas Câmaras Legislatias desde 1834 até hoje, 1844, III vols / Documentos para a Historia das Cortes Geraes da Nação Portuguesa, Lisboa, 1883-89, VIII vols / Moçambique: relatório apresentado ao governo (1ª publ. 1893), 1946 (3ª ed.) / Memorias de Vila Viçosa, por Joaquim José da Rocha Espanca, 1983-86, 36 nums / O Espectro, de António Rodrigues Sampaio, nº 1 (16 de Dez 1846) a nº 63 (3 Jul 1847) [colec. completa, junto c/ "O Estado da Questão" e c/ 8 supl., deste celebre jornal clandestino português, panfletário e subversivo, de distribuição gratuita] / Pratica Criminal expendida na forma da praxe observada neste nosso Reyno de Portugal ..., por Manoel Lopes Ferreira, 1742, IV vols [considerada, na época, esta obra como "ídolo dos nossos forenses"] / As visões de um telhudo ou O Judeu Cosmopolita ..., de António José de Figueiredo, 1876 [obra polem. Anti-clerical] / Os costumes dos Israelitas, onde se vê o modelo de huma politica simples e ..., de Mons. Fleury, 1807 [trad. de Villalobos e Vasconcelos, raro] / A Folha: microcosmos literário, dir. de Faustino Sarmento, 5 séries (1868-1873), Coimbra, 54 nums [rara revista literária] / O Mistério dos Painéis, de António Belard da Fonseca, 1957-67, V vols (estimada)/ Outras Terras Outras Gentes (II vols) e Ronda de Africa (II vols), de Henrique Galvão / Império Ultramarino Português (monografia do império), por Carlos Selvagem e Henrique Galvão, 1950, IV vols / Catalogo Razonado biográfico e bibliográfico de los Autores portuguezes que escribieron en castellano, por D. Domingo Garcia Peres, Madrid, 1890 (raro) / Viagem na Minha Terra, de Almeida Garrett, 1846, II vols (1ª ed. em livro, raro)

[continua]

segunda-feira, 10 de maio de 2004

"Autoridade e liberdade são uma e a mesma coisa"

..........
Pode prender-se um homem e pô-lo a pão e água. Pode tirar-se-lhe o pão e não se lhe dar a água. Pode-se pô-lo a morrer, pendurado no ar, ou à dentada, com cães. Mas é impossível tirar-lhe seja que parte for da liberdade que ele é.
Ser-se livre é possuir-se a capacidade de lutar contra o que nos oprime. Quanto mais perseguido mais perigoso. Quanto mais livre mais capaz.
Do cadáver dum homem que morre livre pode sair acentuado mau cheiro - nunca sairá um escravo.
Autoridade e liberdade são uma e a mesma coisa.

[Mário Cesariny, in As Mãos na Água a Cabeça no Mar, 1972]


Rumsfeld, torturas e absolvições

Alguns não estranham as sevícias feitas a prisioneiros iraquianos. Consideram que são genuínos acidentes de guerra. Que a violência sobre prisioneiros, as humilhações sexuais infringidas, a tortura repugnante como método de inquirição, a infâmia, sempre existiram e bastará um simples pedido de desculpa para que tudo regresse à normalidade. Não surpreende, por isso, que alguns desses próceros "democratas" observem com enfado a divulgação pública de tais desmandos, contestando a sua relevância. Não seria mais justificado apontar baterias a Cuba, China, Africa toda, Rússia, deixando de lado esse episódio, decerto deplorável e pouco patriótico, com os paladinos do "sol" do Mundo, berço e regaço da civilização, exclamam outros? O caso dá que pensar.

Mas, em todo este depurado argumento há um sintoma inquietante: o novo paradigma da interiorização da vulgarização do horror; a hipocrisia de um "exercício de paciência" de exportação da democracia, dita humanista; uma assumida concepção predadora à margem da probidade e firmeza de carácter; uma monstruosa manipulação dos passos em volta da guerra. Tudo à nossa volta vai muito além da "concepção substantiva do bem" (Berlin, evidentemente), pois assenta numa ideia estulta da negação do próprio homem. E essa dramática incapacidade de sermos dignos de nós próprios, paga-se sempre caro. Não há qualquer margem para dúvidas.

Leilão de Importante Biblioteca Particular

Hotel Roma - Dias 17/18/19 e 20 de Maio, pelas 21 horas

O Livreiro Antiquário Luís P. Burnay vai realizar um importante leilão de biblioteca particular, com (1500) obras compreendendo História, Memórias, Viagens, Romances, Monografias, Periódicos, Arte, Poesia, etc., muito estimadas e apreciadas. À atenção dos amantes dos livros.

Algumas referências: Teatro Popular, de Azinhal Abelho, 1968-73, VI vols / Cantigas de Santa Maria (ed. de Walter Mettman, Coimbra), de Afonso X, O Sábio, 1959-72, IV vols / Cartas de Afonso de Albuquerque, seguidas de documentos que a elucidam, ..., Lisboa, 1884-85, VII vols / Almanach para o anno de 1794, Lisboa (raro) / 18 vols de obras de Fialho de Almeida / Historia da Igreja em Portugal, de Fortunato de Almeida, 1967-171, IV vols (nova ed.) / Obras de Nicolau Tolentino, Estúdios Cor, 1968 (pref. de Alexandre O'Neill) / Os Judeus no Distrito de Bragança, pelo Abade de Baçal, 1925 / Garrett: Memorias Biographicas, por Francisco Gomes de Amorim, 1881-84, III vols / Luz da liberal, e nobre arte de cavalaria, offerecida ao Senhor D. João Príncipe do Brazil, por Manuel Carlos de Andrade, Lisboa, 1971 (ed. fac-similada) / Antologia do Humor Português (notas de Ernesto Sampaio e Vergilio Martinho, 1969, Ed. Afrodite / Antologia da Poesia Erótica e Satírica, s/d, Ed. Afrodite (selecção, pref. e notas de Natália Correia, ilustrações de Cruzeiro Seixas) / Livro de Oiro da Nobreza, por Domingos Araújo Afonso, 1932-34, III vols / Archivo Pittoresco: semanário ilustrado, Ano I (Julho de 1857) a Ano XI (1968), 11 vols + (junto c/) anuário do Archivo Pittoresco, 36 nums / Historia da Revolução Portuguesa de 1820, de José de Arriaga, 1886-89, IV vols / Atalaia contra os Pedreiros Livres ..., cujo autor seg. Inocêncio foi Joaquim José Pedro Lopes / Atlas de Fernão Vaz Dourado, c/ direc. do Visconde de Lagoa, 1948 / Inquisição em Goa ..., por António Baião, 1930-49, II vols / Arte Portuguesa, direc. de João Barreira, Ed. Excelsior, IV vols / A Maçonaria Seita Judaica: suas origens, sagacidades e finalidades anticristãs, por I. Bertrand (trad. Gustavo Barroso, c/ um apêndice s/ o Talmude e os Judeus), 1938 / O Jornalismo: esboço histórico da sua origem ..., por Alberto Bessa, 1904 / Poesias de Manuel Maria Barbosa du Bocage, 1853, VI vols / História da Universidade de Coimbra nas suas relações ..., por Teófilo Braga, 1892-1902, IV vols / Historia das Ordens Monásticas em Portugal, de Manuel Bernardes Branco, 1877-88, III vols / Branco e Negro: semanário ilustrado, ano I (5 de Abril de 1896) a ano II (27 Março de 1898), 104 nums em IV vols (colab. de R. Ortigão, Cesário Verde, Antero, Eça, Junqueiro, Fialho d'Almeida, Oliveira Martins, Bulhão Pato, António Nobre, Leite de Vasconcelos, Sousa Viterbo,... / Cadernos Coloniais, nº 1 ao nº 70, Editorial Cosmos (completa) / Cancioneiro da Biblioteca Nacional: antigo Colocci-Brancuti, 1949-64, VIII vols / Importantes Obras de Camilo Castelo Branco / A Morte Redimida, de Ferreira de Castro, 1925 (raro) e A Volta ao Mundo, 1944 / Catalogue de la Bibliotheque de M. Fernando Palha, 1896, IV vols (catalogo de uma das melhores bibliotecas portuguesas, vendida à Univ. de Harvard, com manifesto interesse Camoniano)

[Continua]

O Protesto Operário [nº 1, 5 de Março de 1882]

"Com a fundação do Partido Socialista a 10 de Janeiro de 1875 e desaparecido o «Pensamento Social» (...) dois novos jornais de carácter socialista foram, entretanto, criados: «O Protesto» e «O Operário», os quais mais tarde se haveriam de fundir para dar lugar ao «Protesto Operário», órgão do Partido Socialista e que mantinha uma redacção em Lisboa e outra no Porto.(...)
Algumas colaborações estrangeiras, obtidas por intermédio das relações internacionais mantidas pelo Partido Socialista ou devidas à permuta internacional entre jornais operários e socialistas, artigos e informações da actividade partidária e, destaque para os Documentos e decisões dos Congressos, etc..."

[César de Oliveira, in Antologia da Imprensa Operária Portuguesa, P & R, 1984]

"... Karl Marx acaba de falecer em Londres quase repentinamente em resultado de uma doença de peito, contraída há pouco mais de um ano junto de sua esposa moribunda.
Desapareceu o mais eminente dos socialistas contemporâneos e um dos mais profundos socialistas da nossa época. É a ele principalmente que se deve o carácter histórico e cientifico que assumiu o socialismo utopista e sentimental da primeira metade deste século. (...)
A grande obra deste ilustre pensador «O Capital» ficou por acabar. A primeira parte dela, A Produção das Riquezas produziu uma verdadeira revolução mesmo no sentido ex-cátedra da economia politica em toda a parte onde este ensino não está completamente mumificado. A segunda parte, A Circulação das Riquezas supõe-se ficou bastante adiantada, e a ponto de poder ser publicada por Frederico Engels, o amigo mais íntimo e mais digno intérprete de Marx.
O terceiro volume História da Teoria devia ser uma análise critica de toda a literatura e economia. É para recear que apenas existam fragmentos esboçados, porquanto Marx considerava esta parte como um trabalho ligeiro e fácil ..." [Karl Marx, in Protesto Operário, ano II, nº 3 de 25 de Março de 1883, ibidem]

sexta-feira, 7 de maio de 2004


Fialho de Almeida [1857-1911]

Nasce em Vila de Frades a 7 de Maio de 1857

"... Filho de um mestre escola, fez o curso de medicina com grande dificuldades, que lhe deixaram, ele o confessa, um travo amargo na sua vida. Nunca exerceu clínica, dedicando-se exclusivamente às letras.
Foi um dos nossos maiores prosadores, este estilista magnífico, duma sensibilidade frenética. Panfletário admirável, embora um pouco versátil nas suas opiniões, era de uma ironia faiscante, ora com laivos de humorismo, ora cheia de vibrações e sarcasmo. O seu poder descritivo era assombroso. Páginas deixou, formidáveis de beleza literária, que serão imorredoiras.
Da sua obra – a parte póstuma foi publicada pelo seu livreiro e amigo A. M. Teixera, já falecido, a quem a legou, bem como a outra – constam, entre vários volumes: «Contos», «Pais das Uvas», «Os Gatos», «Vida Irónica», «Lisboa Galante», «Pasquinadas», «À Esquina», «Estâncias de Arte e Saudade» e «Figuras de Destaque»" [in, Jornal O Diabo, 17/07/1938]

Parabéns

Dois blogs, dos mais puros e verdadeiros, comemoram o primeiro aniversário. Dois blogs de liberdades livres, que dizem coisas apaixonantes, deslumbrantes & ardilosas. De muita estimação, mesmo que, daqui do castelo altaneiro do almocreve, carreguemos o fardo de todos vós. Reinventar o prazer do discurso, desnudar o vivido da política & da cultura, eis o que esperamos de todos vós. Assim a vossa libido o permita. Um abraço de felicidades.

Abrupto – Longas vigílias e trabalhos de José Pacheco Pereira. A «perestroika» laranja, em edição estimada, fogosa e subtil, sempre retomada com ventura, mesmo sabendo-se que «a única solidão é aquela que não tem passado». Mas que importa! Dos vários JPP, preferimos quase todos, menos aquela pose de viril "guerreiro do império", jeito e queda para seguir o "bem" e fugir ao "mal", mixagem de contos amargos de guerra. Palavras estranhas, um blog de eleição, uma sensibilidade encantadora. Felicidades!

Mar Salgado – 6 Marinheiros 6, Coimbra ao Luar por obra e graça de D. Dinis, altíssimo padroeiro. Eis como se bolina de encontro à vaga, que a cidade "é uma armadilha" e "nenhum navio te levará onde não podes" (Cavafy). O regime dos ventos não é aconselhável a todos, mas a navegação é, sempre, um trabalho esforçado em mar largo. Um itinerário de habilidade, quebrada as amarras em baixios pouco seguros. Saudações aos marujos, em especial ao comandante NMP e ao Pedro Caeiro.

quinta-feira, 6 de maio de 2004


O Rato Acidental

"Et admirata est universa terra post bestiam"

Era a blogosfera portuguesa um espaço maculado por devotos do arrufo, uma assuada inaudita, um monólogo de "pombas" toleironas, graciosas evocações, um monumento de posts em pieguices disparatadas, um vazio enorme. Um horror! Imersos na bruma, desconhecíamos o assombro de dias jubilosos, a vanglória do gracejo ou a verve da malícia do espírito. Não havia meninos de coro! Apenas simples alaridos. Desamparados de cintilante liberalidade, declinava-se opulentos protestatórios, quase sempre alvares e furibundos, numa vaidade pecadora e ardente de desaforos. Não tínhamos emenda. Nem musicalidade. Muito menos espiritualidade.

Com receio, sabíamos que, com Pedro Lomba a "jornalar", Coutinho deslizando n'O Expresso e Mexia em surtidas aventureiras de paixão, a blogosfera se desintegraria em singular azedume, tropelias e injúrias. Afadistada, a blogosfera portuguesa assistiria à sua derrocada. É certo que o Alberto-a-Dias passava atestados desbragados de tortuosas penitências, o Luciano Espectador condimentava as suas noutes em patológico delírio e o guarda-portão liberal surpreendia o próprio Berlin. Não seria, pois, por falta de higiene intelectual que a eloquência guaguejante dessas personagens fascinava de colorido a blogosfera, asseveram os mais preclaros bloguistas. Era correcto. Mas essa inteligência retardatária não bastava. Não era surpresa. Apenas manutenção das suas sinecuras. A festa tinha que se fazer. Com elegância.

É assim que as coisas começam. Por mistérios da política, arribou aqui, sem enfado, o assombroso génio que produziu a "A Encruzilhada", curioso trabalho de imprecação geoestratégica & geopolítica, que por modéstia assina Vasco Rato, quando em posição académica. A linguagem florida do terrorismo, a prosa adocicada sobre o "Choque das Civilizações", a desdita da urgência dos protectorados americanos nos indígenas, o requinte da ressurreição das ADM, os retoques apaixonados à silhueta de Khadaffi, a caligrafia que esmaga ou a trovoada de argumentos sobre a democratização do Iraque, equivale a uma lucidez que fuzila o espírito da chusma da blogosfera. Com o Vasco e as suas bulas, dobraremos o cabo tormentório, sairemos de profundo letargo, inchamos de comunidade internacional. O vate da Lusíada, com a louçania do seu talento, a auréola da cotação do IDN, investe na despeitada blogosfera, numa exibição babada de frases desencabrestadas, refinadas de civilidade, prenhes de cidadania. A blogosfera nunca mais será a mesma. Mesmo que o fulgor do Rato acidental, envolto em túnica branca, ameace expor a sua sensibilidade naturista às aclamações da turba do "exército do bem", estamos em perfeita ressurgência. Façam favor de afiar as esferográficas. Sorte admirável a nossa.

O Beijo de Antikonie

Ao Dórdio, meu irmão

Foi no mês alumbrado dos bruxedos
o ardente encontro. Estava eu nos trinta.
Abrasavam-te vinte chamas verdes
e enluarado me chamaste Cynthia.

Como uma puma pelos meus vinhedos
sedoso e lábil me laçaste a cinta
e encantaste-me em sala de brinquedos
da tua boca barbara e faminta
..........

Ó tremula beleza sem apoio!
Fiz-te pássaro e mato-te no voo.
Não me culpes, amor. Foi bruxaria.

[Natália Correia, in Retrato de Natália Correia]

Coincidências Kleistianas

É difícil tamanha sorte. Ao ler o Alexandre Andrade entendi que o mundo era, de facto, muito pequeno. Quantas vezes o sabemos? Não é nenhuma descoberta, talvez, mas no dia em que AA descobriu que "Luiz Pacheco também editou Kleist. "O Príncipe de Homburgo", também tivemos essa ventura. Foi no Nunes em Benfica. Cabe dizer que a versão portuguesa é de Goulart Nogueira, que apresenta uma curiosa biografia e estudo de Von Kleist. Não sabia a data (1961?, diz-nos AA), apenas se comprova que a obra é o numero 16 da belíssima colecção de Teatro de Bolso (começa com Ibsen o nº1), edição da Contraponto.

segunda-feira, 3 de maio de 2004


A Sagrada Família

Um dia a mais antiga categoria de honra do Sport Lisboa (1904-1905) fez ascender um sol intenso e alado. A Praça do Império era campo de jogos. O Nunes, em Belém, forneceu a flanela avermelhada. A farmácia do Franco servia de sede conspiratória. As redes das balizas foram tecidas por hábeis pescadores da Nazaré. "Um por todos, todos por um". A águia começava a voar. Que história admirável a nossa.

A alma colectiva vermelha, irreverente e muito prendada, ensina a voar sobre o abismo. O Benfica é uma manifestação de enternecida ternura, uma frescura de beleza, a alma da paisagem lusitana. Vede – ali, em cima - o porte aprumado dos seus jogadores, o altivo colorido das camisolas, a pose, a barba à Degas ou os bigodes fartos. Atendei às peculiares figuras do grupo fundador. Sintam a sua frescura maravilhosa. E sorriam.

Hoje, em quieto jogo, fomos felizes. Contra preces e clamores, fomos encantadores. Os dias de Maio como são brejeiros. Uma paisagem única. Mesmo que a lucidez seja breve.

"Faxina" da Primavera

Empanturrada de originalidade lusitana, a classe política anda perturbada por tresmalhadas intenções malévolas. Os ditos perfumados que berram os jornais - a lista de mazelas é um choradinho de vendas nos jornais e televisões – sobre as mais variadas formas de corruptelas, são um murmúrio entre os incautos indígenas, ao mesmo tempo que exigem uma faina comovente, uma vidinha de trabalho para a classe política, jornalistas e analistas.

Os artistas da coisa pública declaram a sua estranheza pelo singular fenómeno que atingiu Portugal. Os presidentes de câmara manifestam apreciações poéticas sobre empreiteiros e professam inocência em glória do desporto e dos clubes. Recebem, com uma espiritualidade romântica, em roupão sem monograma. O público, malicioso, fica verde de inveja e aplaude. O emproado Santana dá cambalhotas em cima dos acólitos laranjas. Marques Mendes põe-se em bicos de pés. O talento insólito de Alberto João defuma o continente. Marcelo, em improviso deslumbrante, pontifica a absolvição. Os socialistas sorriem. E Sampaio sai da preguiça para fazer rascunho presidencial.

Enquanto isso, a malta da província e do futebol, alucinada, faz cimeiras à porta dos tribunais. Depois de Felgueiras, sem outro arranjo cénico, eis Gondomar. A mesma casta, o mesmo poder, a mesma cegueira. Na poltrona da governação, Barroso, desnorteado e cansado, faz de arreliado. Pires de Lima, confessa que ainda não se esfarelou contra uma TV, por caridade cristã, evidentemente. Marcelo, muito embuchado, debita Códigos e faz reprimendas. Vasco Pulido Valente lê histórias aos quadradinhos. O País ressurgiu. A "faxina" doméstica está aí. As trapalhadas, também.
Vida

Após uma onda outra onda:
uma onda que se quebra
outra que se levanta …

Eterno e gasto
e sempre novo movimento das marés!


[Joaquim Namorado, in Aviso à Navegação]


O Pensamento Social [nº 1, Fevereiro de 1872]

"Este jornal, cuja criação tinha sido acordada nos contactos havidos entre os «internacionalistas espanhóis» e Antero, Fontana, Nobre França e outros militantes socialistas teve papel decisivo na transformação verificada na linha de conduta do movimento operário. Antero de Quental, como nos conta Nobre França na carta que escreve em 24 de Junho de 1872 a Karll Marx, publicou o folheto «O que é a Internacional» para custear as primeiras despesas com a publicação de «O Pensamento Social». Segundo o testamento de Nobre França, a organização deste jornal ficou estruturada do seguinte modo: Nobre França, Eduardo Maia e Tedeschi na redacção, José Fontana, Monteiro e Tito na administração que incluía o proprietário, Lopes. Como colaboradores destacavam-se Antero de Quental que tinha ido residir para o Norte, Oliveira Martins, Augusto Fuschini e Batalha Reis.
É em «O Pensamento Social» que vai realizar-se a divulgação das posições e dos princípios da I Internacional, dando-se nas páginas do jornal particular ênfase às decisões do Congresso de Haia que decidiu a votar a criação de Partidos Socialistas por cada país. No jornal colaborou com regularidade Paul Lafargue, genro de Marx e que estivera em Lisboa preparando o Congresso da I Internacional atrás referido; escreveu também para este periódico Morago, um dos «internacionais» espanhóis e é também neste jornal que, pela primeira vez em Portugal, se inicia a publicação de O Manifesto Comunista de Marx e Engels. …”

[César de Oliveira, in Antologia da Imprensa Operária Portuguesa, P & R, 1984]


"É certo que o velho mundo pertence aos filisteus. Mas não devemos, quanto a nós, tratá-lo como um papão, arrepiando caminho. Devemos, pelo contrário, encara-lo de muito perto. Vale a pena estudar-se este senhor do mundo.
É verdade que só o é, senhor do mundo, atulhando o mundo com a sua sociedade, tal como os vermes ocupam um cadáver. A sociedade destes cavalheiros só precisa por isso de um certo número de escravos, e os proprietários dos escravos não precisam de ser livres" [Karl Marx]

sexta-feira, 30 de abril de 2004


Oliveira Martins [1845-1894]

n. em Lisboa, 30 de Abril de 1845

"… O trabalho dividido, parcellario, é a causa do embrutecimento e da miséria moral e material do trabalhador, a Economia Politica responde: fatalidade! como se na natureza podesse encontrar-se uma lei de anniquilação. As forças naturaes trazem a morte sim quando não comprehendidas; assimiladas são necessária, absolutamente a vida. O facto do embrutecimento do trabalhador pela divisão de trabalho é reconhecido por todos; Say escrevera: «Em resumo pode dizer-se que a separação dos trabalhos é um emprego hábil das forças do homem, que augmenta prodigiosamente a produção da sociedade, mas que diminue a capacidade da cada homem individualmente considerado». Tocqueville precida ainda: «Á medida que o principio da divisão do trabalho recebe uma apllicação mais completa, torna-se o operário mais fraco, mais dependente; progride a arte e o artista retrógrada». Ora se esse progresso da arte está na natureza, encontrar-se-há n'ella a diminuição do homem? Os economistas, preoccupados com a politica, calam-se, e offerecem como correctivo as escholas e a caridade. De modo que a organização do trabalho constaria de dois pólos anthiteticos: a instrução creando, o trabalho destruindo…"

[J. P. Oliveira Martins, in Theoria do Socialismo. Evolução politica e económica das sociedades na Europa, Lisboa, 1872]

Ecco dos Operarios [nº 1, 28 de Abril de 1850]

"O grande surto de Associações e Sociedades Operárias de diverso tipo inicia-se a partir da Regeneração, isto é quando começa a segunda metade do século dezanove. A Regeneração (…) procurava construir os meios que concretizassem o apelo da colaboração activa de todos os portugueses na edificação de Portugal moderno. O Centro Promotor dos Melhoramentos das Classes Laboriosas exprime (…) o que se acabou de afirmar; Rodrigues Sampaio, Casal Ribeiro e o próprio Fontes Pereira de Melo estiveram associados, por formas diversas à actividade do Centro Promotor (…)
Mas o Centro Promotor não surge por acaso. Na verdade, em 1850, havia-se fundado o primeiro órgão de imprensa escrita claramente apostado na defesa dos interesses dos trabalhadores e no fomento do associativismo operário. Foi o «Ecco dos Operários», órgão da Associação dos Operário de Lisboa, fundado por Sousa Brandão e Vieira da Silva Júnior. O primeiro, general oriundo, como muitos dos grandes vultos da Regeneração, da Engenharia Militar e que, tendo assistido à revolução de 1848 em Paris, foi sempre um assíduo e interessado colaborador da imprensa e das Associações operárias. O segundo, operário tipógrafo, foi destacado dirigente do Centro Promotor e, íntimo colaborador de Henriques Nogueira e foi, como este seu grande amigo, um dos primeiros paladinos do republicanismo social federalista (…) Este órgão de imprensa (…) insere-se num projecto de sociedade cujo principal eixo era a colaboração ente classes para «regenerar e modernizar Portugal». Tratava-se (…) de promover a colaboração entre capital e trabalho sem que o primeiro «escravizasse o segundo».
Esta posição de fundo, facilmente detectável em o «Ecco dos Operários», vai presidir ao conteúdo de quase toda a imprensa operária até 1872 …" [César de Oliveira, in Antologia da Imprensa Operária Portuguesa, P & R, 1984]

quinta-feira, 29 de abril de 2004


Pedro Oom [1926-1974]

m. a 26 de Abril de 1974

"O Escritor Pedro Oom Morreu de Comoção – O irreverente e talentoso poeta surrealista Pedro Oom, figura muito assídua do café Gelo ao tempo em que ali se reunia o grupo em que pontificavam Mário Cesariny de Vasconcelos, Luís Pacheco e outras personalidades daquela corrente estética, morreu ontem de comoção provocada pela queda do fascismo em Portugal.
O insólito autor de tão belos poemas fantásticos e escatológicos como os que publicou em «Grifo» e em «Pirâmide» não resistiu à alegria da vitória. (…)" [in, DL, 28/04/74]

"Poesia não é uma medalha para por no peito dos tiranos mas uma imensa solidão feita de pedras, onde o despotismo pode encomendar o ataúde. Cada um de nós odeia o que ama. Por isso o poeta não ama a poesia que é só desespero e solidão mas acalenta ao peito as formigas da revolta e da rebeldia, que todos os déspotas querem submissas e procriadoras. Só os voluntários da miséria e da submissão patriarcal querem a poesia na arca da aliança com a tradição pacóvia e regionalista dos pretéritos dias, glórias patrioteiras, heroicidades frustes, pirataria ignara. Todo o verdadeiro poeta despreza o pequeno monte de esterco onde o dejectaram no planeta e a que os outros chamam pátria, e só ama os grandes continentes mares e oceanos da liberdade e do amor. Só nos vastos espaços incriados a poesia serve o seu destino – catapultar o homem nos abismos do desejo incontrolado onde o próprio assassinato é um acto de poesia e de amor.
Este assassinato de que falo é o grande amplexo de homem para homem a solidariedade e a ternura, não a caridade hipócrita ou a cama de família, com todo o seu pequeno cortejo de horrores, onde a exploração do filho pelo pai dita a sua lei."

[Pedro Oom, Poema, in Grifo 1968 (?)]