quinta-feira, 6 de maio de 2004


O Rato Acidental

"Et admirata est universa terra post bestiam"

Era a blogosfera portuguesa um espaço maculado por devotos do arrufo, uma assuada inaudita, um monólogo de "pombas" toleironas, graciosas evocações, um monumento de posts em pieguices disparatadas, um vazio enorme. Um horror! Imersos na bruma, desconhecíamos o assombro de dias jubilosos, a vanglória do gracejo ou a verve da malícia do espírito. Não havia meninos de coro! Apenas simples alaridos. Desamparados de cintilante liberalidade, declinava-se opulentos protestatórios, quase sempre alvares e furibundos, numa vaidade pecadora e ardente de desaforos. Não tínhamos emenda. Nem musicalidade. Muito menos espiritualidade.

Com receio, sabíamos que, com Pedro Lomba a "jornalar", Coutinho deslizando n'O Expresso e Mexia em surtidas aventureiras de paixão, a blogosfera se desintegraria em singular azedume, tropelias e injúrias. Afadistada, a blogosfera portuguesa assistiria à sua derrocada. É certo que o Alberto-a-Dias passava atestados desbragados de tortuosas penitências, o Luciano Espectador condimentava as suas noutes em patológico delírio e o guarda-portão liberal surpreendia o próprio Berlin. Não seria, pois, por falta de higiene intelectual que a eloquência guaguejante dessas personagens fascinava de colorido a blogosfera, asseveram os mais preclaros bloguistas. Era correcto. Mas essa inteligência retardatária não bastava. Não era surpresa. Apenas manutenção das suas sinecuras. A festa tinha que se fazer. Com elegância.

É assim que as coisas começam. Por mistérios da política, arribou aqui, sem enfado, o assombroso génio que produziu a "A Encruzilhada", curioso trabalho de imprecação geoestratégica & geopolítica, que por modéstia assina Vasco Rato, quando em posição académica. A linguagem florida do terrorismo, a prosa adocicada sobre o "Choque das Civilizações", a desdita da urgência dos protectorados americanos nos indígenas, o requinte da ressurreição das ADM, os retoques apaixonados à silhueta de Khadaffi, a caligrafia que esmaga ou a trovoada de argumentos sobre a democratização do Iraque, equivale a uma lucidez que fuzila o espírito da chusma da blogosfera. Com o Vasco e as suas bulas, dobraremos o cabo tormentório, sairemos de profundo letargo, inchamos de comunidade internacional. O vate da Lusíada, com a louçania do seu talento, a auréola da cotação do IDN, investe na despeitada blogosfera, numa exibição babada de frases desencabrestadas, refinadas de civilidade, prenhes de cidadania. A blogosfera nunca mais será a mesma. Mesmo que o fulgor do Rato acidental, envolto em túnica branca, ameace expor a sua sensibilidade naturista às aclamações da turba do "exército do bem", estamos em perfeita ressurgência. Façam favor de afiar as esferográficas. Sorte admirável a nossa.