sábado, 27 de setembro de 2003

CATÁLOGO Nº16 DE LUÍS BURNAY


Saiu o novíssimo Boletim Bibliográfico do Livreiro-Antiquário Luís Burnay - Setembro 2003 -, com 508 peças estimadas, há muito esgotadas ou raras. Como curiosidade o livreiro-antiquário acrescenta à listagem bibliográfica um "desabafo" aos clientes e amigos, bem pertinente, e que não é normal aparecer em Catálogos. Trata-se de uma referência à política de franquia existente, onde o livro-catálogo é penalizado face ao livro tout court. Essa estranha hermenêutica dos CTT em torno do conceito de livro, considerando um livro-catálogo um não-livro, desvela não só uma incomensurável blague cultural mas aponta, também, para o anedotário nacional onde o desnorte da politica cultural legislativa é total. Refere, ainda, e neste assunto não está só, o atraso constante e sistemático da distribuição dos correios, que impede uma prática gestionária contínua e eficaz. Nós compreendemos tudo isso. Ou não estivéssemos em Portugal.

Algumas peças constantes do catálogo: Agostinheida, poema Herói-Cómico, de Nuno Pato Moniz, um "inimigo irreconciliável" de Agostinho Macedo / Almanach Illustrado Litterario e Charadístico para 1986 / Appuleio, Burro de Ouro, com tradução do Barão de Foz Côa (obra de cariz erótico e fantástico), raro por não ter entrado no mercado / Estudos Regionais: subsídios para a História da antiga terra do Préstimo e terras que forma do seu termo - Macieira d'Alcobaça e Talhadas,..., por João Domingues Arêde, 1925 / Observações sobre as principais causas da decadência dos Portuguezes na Ásia escritas por ... Diogo Cão, ..., 1790 / Os Primórdios da Maçonaria em Portugal, por Graças & J. S. Silva Dias, IV vols, 1986 / Moulins Portugais, dessins de Fernando Galhano, de Jorge Dias (separata rara da Revista de Etnografia) / O Aldrabão Pimenta e a sua "História": analise contundente às parvoíces insanáveis dum megalómano mental, de João Paulo Freire (Mário), III vols / Crónica do felicíssimo Rei D. Manuel composta por ... Damião de Góis, 1949-55, IV vols / Historia da Republica - Edição Comemorativa do Cinquentenário da Republica, Ed. Século / O Anti-Christo, de Gomes Leal, 1884 / Casas Portuguesas de Raul Lino, 1954 / Lusitânia: revista de estudos portugueses, direcção de Carolina Michaelis de Vasconcelos, secretarios Afonso Lopes Vieira, Reynaldo dos Santos (participação, ainda, de Agostinho de Campos, António Sardinha, António Sérgio, Leite Vasconcelos), 1924-27, 10 números / A Heráldica dos Bastardos Reais Portugueses, por Armando de Matos, 1940 / Os Monges Agrónomos do Mosteiro de Alcobaça, por J. Vieira Natividade, 1942 (raro) / Cartas Inéditas do Cavaleiro de Oliveira, publicadas por A. Gonçalves Rodrigues, 1942 / Vínculos Portugueses, de Alfredo Pimenta, 1932 / Pharmacopea Chymica, Medica, e Cirúrgica, em que se expõem os remédios simples, e compostos, ... , 1805 (raro) / Da minha terra: figuras gradas, de José Queirós, ilustrações de Roque Gameiro e Santos Silva, 1909 / 6 Opúsculos de Henrique Barrilaro Ruas / Discursos de Salazar, VI vols / Portugal Militar, de Carlos Selvagem, 1931 / O Carmo e a Trindade, por Gustavo de Matos Sequeira, 1939-67, III vols / O reinado de D. António Prior do Crato, de Veríssimo Serrão (dissertação de doutoramento), 1956 / Os Paços dos Duques de Bragança em Lisboa, por A. Vieira da Silva, 1924 / Lusitânia Vindicata: Oeuvre de D. Manoel da Cunha - traduite en français avec une préface de Jules Thieury, 1863 (sobre a Restauração, rara) / Quodlibetales Questio / nes sancti Thome ... , S. Tomas de Aquino, 1515, 60 p., (raro) / História da Colonização Portuguesa do Brasil, direcção de Malheiro Dias, Edição Monumantal, 1921-24, III vols / A Invasão dos Judeus, por Mário Saa (Obra original, rara e bastante polémica), 1925.

sexta-feira, 26 de setembro de 2003

O MINISTRO E O LOBO MAU


O Ministro e o Lobo Mau - Éstorias para Crianças, por José Sá & Margo

Era uma vez um ministro que vivia numa casa escura e bafienta com outros meninos, no meio de papéis de jornais e tintas para brincar, do outro lado da floresta. Nessa floresta existia um lobo vermelho que era muito mau, tão mau que nem se pode imaginar. Quando lhe pediam para falar do lobo mau, o ministro dizia sempre, em voz alta, estas palavras: - «Ora ainda bem que perguntam. Oiçam! Deixem-me fazer uma pergunta: Vocês sabem como será o mundo daqui a dez anos? Repito: sabem?». Na verdade os seus amiguinhos não só não sabiam, como desconheciam o mundo para além das árvores da floresta. E tinham medo, muito medo do lobo mau.

Ora este bom ministro queria educar muito bem-educados os meninos liberais que o liam todas as sextas-feiras e por isso desejava mudar-se para um castelo limpo e arejado, fora da floresta perigosa, e esquecer de vez os perigos que a rondavam. Algum tempo depois foi ter com os companheiros de brincadeira. Ao passar por uma clareira encontrou o compadre Monteiro, mas nada lhe disse, entretido que ele estava a construir uma nova casa. Quando o dia nasceu, só tinha reunido o Bagão, o Pires, o Guedes, o Telmo, o Mota, o Salvado e a Celeste, e disse-lhes, olhos nos olhos, com ar estudado e sério: «Deixem-me dizer-lhes uma coisa. Está escrito. Não vou entrar em nomes. A quem acredita em mim eu digo apenas: sigam-me, venham todos ministrar».

E assim foi. O nosso bom ministro partiu, através da floresta, no seu belo carro verde very british mais os seus amiguinhos, com apreensão mas determinado, cantarolando a Portuguesa, enquanto nos céus passava em visita de estudo, apinhado de gente, um helicóptero de Lamego.
- «Ora, a grandeza da floresta "tem o dom da simplicidade. Diz um provérbio, creio que judaico, que as pontes se constroem entre rios, não se constroem entre oceanos." Pois eu diria, está escrito, que a floresta "consegue construir pontes entre distâncias que parecem insuperáveis" e o lobo mau que se lixe» - disse o ministro, confiante, de si para si. E lembrou-se do que lhe tinha dito um amigo francês, de nome Le Pen: «Caro menino, eu sei que és obediente. Vou dizer-te o que deves fazer para não seres apanhado pelo blog do Pacheco, pelo expresso do Duarte Lima ou mesmo pela chaimite do Alvarenga. Deves ir sempre pela direita da direita, chamares pela santa Cinha e nunca largares a mão dela».

Àquela hora do dia nada encontrou, excepto o Rei D. Dinis, o Delgado, o Independente, a Helena Matos a tricotar e o Tio Patinhas, que lhe disse: - «Bom dia, soldado! Como tens um grande saco e um belo carro, és um verdadeiro soldado! Vais ter tanto dinheiro quanto quiseres!», ao que o ministro respondeu: - «Não confirmo nem desminto».

Eis que passa um ruidoso grupo de imigrantes, e um deles, escondido sob uma máscara mas que se viu logo ser o Louçã, perguntou-lhe: «Qual o caminho para Portugal?». O ministro que era muito senhor do seu nariz, respondeu todo lampeiro: «Os portugueses primeiro, nós cá é mais submarinos, viaturas blindadas e aeronaves!». E não deixou de continuar o seu caminho: um ministro jovem é sempre valente.

Depois passou a "peluda" Ferreira Leite, numa carrinha do Ministério das Finanças, e olhando de soslaio o ministro, disse-lhe: - «Ah! Ah! O que é que escondes dentro do saco?». O nosso ministro, depois de muito matutar e perante o terror de Lobo Xavier, que tinha acabado de chegar de uma reunião na Torre das Antas, disse: - «São rosas e pão, senhora».
- «Fixe essa do pão, que queijo e facalhão temos cá nós» – retorquiu a fada das finanças, abrindo triunfante o saco do ministro da floresta. Mas ficou abismada ao deparar com pão e rações de combate que o ministro transportava para o castelo da Av. da Ilha da Madeira. E lá partiu, floresta fora, vociferando justiça, seguida de perto pelo aterrorizado Xavier.
Nesse momento sobreveio o Alberto Gonçalves em traje micaelense, com cavaquinho, ferrinhos e pífaro, CM debaixo do sovaco, Serzedelo à perna. - «Ai de mim! - exclama o homem a dias - antes o Sepúlveda!». Ao longe, Mexia, escondido por detrás de um livro (A cabra vadia: novas confissões) de Nelson Rodrigues, mirava uma menina da floresta, a mais linda que se possa imaginar, um pedaço de mau caminho, completamente alheado desse histórico e comovente momento.
Entretanto surge inflamado o juiz da floresta e, perante tamanha concentração de intelectuais, em altíssima voz, clama: «Não há conversa ... antes que rebente com essa merda toda». Aterrorizados, o ministro e seus amiguinhos, jornalistas e bloguistas, simples trabalhadores florestais, mulheres venturosas, almocreves em exercício e o próprio lobo mau, desatam a correr, a correr ... e até hoje ainda não conseguiram parar de parar de correr.

Assim acaba a história do ministro e do lobo mau, que afinal não era tão mau quanto isso.

quarta-feira, 24 de setembro de 2003

BIBLIOTECA LUIZ FORJAZ TRIGUEIROS

LEILÃO DE LIVROS (Primeira Parte) - Dias, 6, 7 e 8 de Outubro de 2003

Resenha Bibliográfica da Biblioteca que Pertenceu ao Escritor LUIZ FORJAZ TRIGUEIROS

Literatura Portuguesa / Francesa e Brasileira / História e Arte /Filosofia e Ensaios/ Conjunto Invulgar e Valioso de Manuscritos Autógrafos (Cartas, Postais e Cartões de Visita) dos mais Consagrados Escritores, Poetas, Artistas e Políticos do Século XX - Dias, 6, 7 e 8 de Outubro de 2003 (20 horas) / sob Direcção de José Manuel Rodrigues (Livraria Antiquária do Calhariz, Lisboa).

Local do Leilão: Casa da Imprensa, Rua da Horta Seca, nº 20 - Lisboa


"Luiz Forjaz Trigueiros nasceu em Lisboa, em Abril de 1915 e faleceu na sua casa da Rua da Imprensa à Estrela, em Lisboa, em Setembro de 2000, depois de uma longa vida dedicada à literatura e à intervenção cultural. Contava então 85 anos de idade.

Jornalista, ensaísta, crítico literário e ficcionista, iniciou a sua carreira literária muito cedo, com apenas 16 anos de idade, como colaborador do semanário Notícias de Alcobaça (1931) e do jornal Revolução (1932), tendo também exercido a crítica literária e de teatro, entre 1934 a 1942, no Fradique e na Acção. Em 1937 foi um dos fundadores do semanário literário Bandarra, dirigido por Thomaz Ribeiro Colaço; entre 1941 e 1946 pertenceu aos quadros da então secção brasileira do Secretariado Nacional de Informação e Turismo, dirigido por António Ferro e, nessa qualidade, foi também redactor da revista luso-brasileira Atlântico; colaborou no vespertino Diário Popular desde a sua fundação, em 1943, como crítico de teatro, sendo redactor efectivo em 1945 e seu director desde 1946 a 1953. Durante vinte anos, entre 1954 e 1974, manteve uma coluna semanal intitulada «Temas», de análise e comentário literário, no suplemento «Artes e Letras» do Diário de Notícias ... Foi colaborador regular do Primeiro de Janeiro (...) e da antiga Emissora Nacional ...
Senhor de uma educação familiar muito esmerada, com uma formação cultural vincadamente católica e integralista, desde muito novo que leu os grandes pensadores franceses e portugueses – com destaque para François Mauriac e António Sardinha (...) A par da sua actividade cultural, desempenhou cargos de vária índole, tendo sido administrador da TAP ... membro do Conselho Fiscal da Livraria Bertrand ... e administrador da mesma editora desde 1951 a 1974 ... Pertenceu [ao] Instituto de Coimbra, a Sociedade de Geografia de Lisboa, Comunidade Europeia de Escritores … Associação Internacional dos Críticos Literários, a Associação Portuguesa de Escritores, Grémio Literário e o Círculo Eça de Queirós, o Pen Clube Português ..." [A.M.T, in Catálogo da Resenha Bibliográfica ...]

Algumas peças bibliográficas a leilão: Cartas de Jorge Amado / Cartas manuscritas de João de Ameal ( noticia da morte de Alfredo Pimenta e onde se lê: «Não posso dizer que fosse meu mestre – porque os únicos mestres que, de facto, me ajudaram a formar-me intelectualmente e, até, espiritualmente, foram, no domínio teológico-filosófico, o João Tomaz e, no domínio filosófico-político, o Maurras») / Cartas manuscritas de Maria Archer ("pedindo que leia o seu último livro – Ela é Apenas Mulher -, apelidado de livro pornográfico por um critico do jornal «A Voz», que sugeriu a sua apreensão pela polícia") / Ponte de Lima, texto manuscrito (24 pgs) de José de Sá Pereira Coutinho (Conde de Aurora) com uma referência a «esse estranho e fenomenal Fernando Pessoa... ») e enviado com de dedicatória em 1938 a Forjaz Trigueiros) / Carta (2 pág.) confessional de Ruy Belo, enviada de Niza / 1º Edição de O Manto, Agustina Bessa Luís (1961 ?) / Conjunto curioso e valioso de cartas manuscritas de Agustina / Franca, poema ("patriótico") inédito dactilografado de António Botto, datado de Julho de 1944, Rio de Janeiro / 5 livros de Luís Cajão, com evidente interesse Figueirense / Obras de Luiz de Camões, IN, VI vols, 1860-1869 (comentários biográficos do Visconde de Juromenha) / "Invulgar e importante colecção de «Cartões de Visita» na sua maioria autografados por grandes personalidades da vida portuguesa, desde o final do sec. XIX a XX" (Herculano, João Deus, Bolhão Pato, Salazar, António Ferro, Caetano, Namora, António Pedro, Gaspar Simões, João Barros, Hipólito Raposo, etc.) / Simples Canções da Terra Seguidas de uma Ode a Gomes Leal, rara publicação de Casais Monteiro (1950) / Don Quixote de La Mancha, translated by Peter Motteux, ilustrated by Salvador Dali, NY, 1956 / Histórias de Bichos, João Condé, 1947 (tiragem 200 expls) / A Mosca Iluminada e Cântico do País Emerso, raras publicações de Natália Correia / Texto manuscrito (29 pgs) de Júlio Dantas, intitulado «O Caso de Espanha», original do texto publicado no DP (anos 40) de reconhecimento da Espanha Franquista / Canto de Morte e Amor, rara edição poética de Afonso Duarte (1952) / Ex-Libris Rares Portugais, folheto s/d, opúsculo raro / Extensa obra e cartas manuscritas de Gaspar Simões / 6 obras invulgares (de 1959 a 1968) de Ana Hatherly / Conjunto valioso de postais e cartas manuscritas de Afonso Lopes Vieira / Outro conjunto de cartas autografas de vários escritores (Azinhal Abelho, Barrilaro Ruas, Mário Beirão, Fernanda de Castro, Cottinelli Telmo, Delfim Santos, ...) / Outro da Família Real Portuguesa (D. Amélia, Duarte Nuno) / 3 cartas de Tomaz Kim ("Chegaram-me aos ouvidos uns vagos rumores políticos: remodelação em Outubro. O patrão estaria a chocar em santa Comba. Mas o que o boato tinha de sensacional era de que o Teotónio se ia embora! A hora é de «ónião», para não nos afundarmos todos") / 4 cartas dactilografadas de António Pedro (sobre o seu "trabalho técnico na TAP, no Rio de Janeiro, que em geral de desconhece") / Violão do Morro, raro livro de Vitorino Nemésio, (1968) / Carta manuscrita de 8/02/1949, de Alberto de Serpa ("O Ferro [António] está sendo um inimigo da Cultura e da Inteligência, e é necessário que diga isso quem tem força moral e intelectual para o afirmar ... O Ferro está traindo os seus antigos companheiros")

terça-feira, 23 de setembro de 2003

MORRE FREUD A 23 SETEMBRO DE 1939


"O meu pai deu-se um dia ao luxo desta brincadeira: abandonou à destruição, confiando-o a mim e à mais velha das minhas irmãs, um livro com estampas a cores (descrição de uma viagem pela Pérsia). No plano pedagógico, era difícil de justificar. Eu tinha então cinco anos, a minha irmã tinha menos três que eu e a imagem de nós os dois, crianças, no cúmulo da alegria, desfolhando esse livro folha a folha (como uma alcachofra) (devo dizer) é quase a única que me ficou como recordação plástica deste período da minha vida. Depois, quando me tornei estudante, desenvolveu-se em mim uma predilecção manifesta por coleccionar e possuir (análoga à inclinação para estudar a partir de monografias, uma paixão favorita, tal como aquela que aparece já nos pensamentos do sonho no que se refere a cíclame e a alcachofra). Tornei-me um rato de biblioteca [Bucherwurm]. Desde que reflicto sobre mim, sempre reconduzi este primeiro capricho da minha vida a esta impressão de criança, ou antes, reconheci que esta cena infantil é uma «recordação-encobridora» da minha bibliofilia ulterior. Naturalmente, aprendi cedo que as paixões nos arrastam facilmente aos sofrimentos".

[Freud, in A Auto análise de Freud e a Descoberta da Psicanálise, vol I, Edições 70, 1990]

Anotações várias:

"... fala, o canto, os movimentos da língua e da pena estão investidos de um simbolismo genital: a palavra representa o pénis e o movimento da língua ou da pena, o coito. Este investimento articula-se com o prazer de ouvir, que tem a sua origem numa cena primitiva apercebida segundo o modo sonoro e que estaria na origem do interesse pela música ..." [Didier Anzieu, in Psicanálise e Linguagem, Moraes, 1979]

[C. G. Yung, Memorias Sonhos Reflexões, Rio de Janeiro, 1975] – "Não concordo quando dizem que sou sábio ou um "iniciado" na sabedoria. Certo dia um homem encheu o chapéu com água tirada de um rio. O que significa isso? Eu não sou esse rio, estou à sua margem, mas não faço. Outros homens estão à beira do mesmo rio e em geral pensam que deveriam fazer as coisas por iniciativa própria. Eu nada faço. Nunca imaginei ser «aquele que cuida para que as cerejas tenham haste». Fico lá, de pé, admirando os recursos da natureza.
Há uma velha lenda, muito bela, de um rabino a quem um aluno, em visita, pergunta: «Rabbi, outrora havia homens que viam Deus face a face; por que não acontece mais isso?» O Rabino respondeu: «Porque ninguém mais, hoje em dia, é capaz de inclinar-se suficientemente». É preciso, com efeito, curvar-se muito para beber no rio”

"É pela importância que a alquimia teve para mim [Yung diz que o estudo da alquimia o absorveu por mais de 10 anos. Para o efeito seguiu uma metodologia bem curiosa] que percebi minha ligação interior com Goethe. O segredo de Goethe foi o de ter sido tomado pelo lento movimento de elaboração de metamorfoses arquetípicas que se processam através dos séculos; ele sentiu seu Fausto como uma opus magnum ou divinum - uma grande obra ou obra divina. Tinha razão, portanto, quando dizia que Fausto era sua «obra-prima»; por isso sua vida foi enquadrada por esse drama. Percebe-se de modo impressionante que se tratava de uma substância viva que agia e vivia nele, a de um processo supra-pessoal, o grande sonho do mundus archetypus".

segunda-feira, 22 de setembro de 2003

O BRASÃO DE COIMBRA

"As armas de Coimbra, que figuram no estandarte da Câmara Municipal e no Arco de Almedina, representam uma figura de mulher coroada, com as mãos erguidas, tendo metade do corpo, a cinta para baixo, metida num cálice; à direita da donzela uma serpente [serpe alada] e à esquerda um leão.

É opinião muito corrente que este brasão alude às lutas entre os dois inimigos, Ataces e Hermenerico, lutas que tiveram seu termo a troco de Cindazunda, filha de Hermenerico que a cedeu em casamento a Ataces. Vários escritores têm feito referência a este brasão, explicando-o por esta forma.

No cartório da Sé de Coimbra foi em tempos encontrado um manuscrito pelo qual se ficou sabendo que as armas desta cidade, antigamente, não eram iguais às que depois foram adoptadas e acima descritas. Em 1385 eram bem diferentes, como se vê de um selo pendente no auto da eleição de D. João I, realizada em Coimbra, no dia 6 de Abril de mesmo ano. Em 1265, 120 anos antes, já se usava o selo que passamos a descrever, e que faz muita diferença do actual: as antigas armas de Coimbra eram representadas por meio corpo de mulher coroada com touca ou véu. Por baixo uma cobra querendo meter a cabeça num cálice; aos lados de meio corpo da mulher dois escudos das armas de Portugal. À volta a seguinte inscrição: « Sigillum consillii cieitatis Colimbrix». (...)" [A. s/d]

Bibliografia a consultar: Sá Miranda (Fábula do Mondego – "... Que fue médio Serpiente / que el mismo Oriente / De si en cinta dexó, dexole un vaso / Rico por que bebia ...") / Gil Vicente (Comédia sobre a divisa da Cidade de Coimbra) / Inácio de Morais (Conimbricae Encomium) / Frei Heitor Pinto (Imagem da Vida Cristã) / Pedro de Mariz (Diálogos da Vária História) / António Maria Seabra de Albuquerque (Considerações sobre o Brasão da Cidade de Coimbra) /Frei Jorge Pinheiro (Sermão, Outubro de 1625) / Frei Bernardo de Brito (Monarquia Lusitana) / João Rodrigues de Sá e Meneses (Tratado da Cidade de Coimbra) / Manuel Severim de Faria (Armas das Cidades de Portugal) / Vasco Mousinho de Quevedo (Afonso Africano) / António Carvalho da Costa (Corographia Portuguesa) / D. José Barbosa (Archiathenceum Lusitanum) / Augusto M. Simões de Castro (O Brasão de Coimbra – Resenha do que escreveram e disseram acerca d’elle alguns auctores distintos; e O Brasão de Coimbra) / D. Luiz Gonzaga de Lancastre e Távora (O Selo Medieval de Coimbra e o seu Simbolismo Esotérico) / Maria F. Azevedo Pires (Lenda do Brasão da Cidade de Coimbra) / Mário Nunes (O Brasão de Coimbra).

domingo, 21 de setembro de 2003

DOS JORNAIS & BLOGOSFERA LUSA


- Atarefados andam os jornalistas indígenas com o "fenómeno blogáctico". É vê-los atarefados à volta do PC, sofrendo essa estranha doença da confusão, de tudo o que lhes é demasiado humano. Quase em apoplexia, ar lambido de voyeur, correm a blogosfera como em dias de folguedo. Para quem há semanas não soletrava a palavra blog, é obra. E afinal, ainda "ninguém viu o motor que produz a luz". As rápidas melhoras.

- O dever e o devir dos weblogs em Braga foi, ao que dizem, uma intensa actividade multidisciplinar e há muito ansiosamente esperada nos meios intelectuais da blogosfera lusa. Ao que consta o prof. José Luis Orihuela Colliva pretende anotar, registar, recensear, ordenar, catalogar, quotar, carimbar, apreciar, regulamentar, classificar, controlar, evangelizar a narcísica blogosfera. Eis uma psicopatologia da blogosfera inquietante. A outros competirá construir uma "teoria de resistência" , em auto-serviço, experiência limite da corporalidade e dos seus encantamentos. Até lá sigamos a tecnologia do Ego.

- Enganam-se aqueles que pensam que os génios não cometem erros, assaz comezinhos. Na verdade, as instruções aos neófitos e correlativos da blogosfera lusa levadas a cabo pelo JPP sobre um inominável blog, tem, com ironia, um efeito perverso. Nós próprios caímos em pecado venial, lendo as prodigiosas, insólitas e portentosas linhas desse inominável blog, graças a JPP. Pela desdita nos penitenciámos. Assim o mestre Abrupto, face às suas extraordinárias análises, também o fizesse. Mas cremos que estará mais interessado em catequizar os seus leitores que reflectir sobre tão inconcebível estratégia. Que o céu não lhe caia em cima, é o que se deseja.

- Vasco Graça Moura, estudioso da "Internacional Pirómana" prepara-se para dar à estampa três obras notáveis: Os Últimos Dias de Portugal, Imitado de Bulwer, Edições Choque e Pavor; Escudo Laranja ou dissertação histórica, escolástica e teológica em defesa dos injustos golpes da opinião pública, Typografia Laranjal; Alfabeto por ordem de materiais, e cronologia, dos assentos, ordens, cartas, alvarás, provisões, decretos e resoluções sociais-democratas atinentes às posturas de um verdadeiro militante, constantes de livros antigos e modernos, e transladado das ditas, Typografia O Emigrante.

- Arranja-me um emprego, pode ser em Paris, concerteza, ademais não temos de estar alapados nos cadeirais do vetusto Palácio, entre a gentinha, o povo e aquele senhor que não sei o nome que me convidou para deputar, que eu sou uma artista da TV e jornalista encartada, e até sei segurar as alfaias no Alain Ducasse, vestir Christian Lacroix e ler o Fígaro, que por cá é tudo gentinha, que eu sou uma artista, e mereço mais. E mais.

- Foi acometido de forte ataque o conhecido gastrónomo MacGuffin. Com uma espinha de Daniel-Sampaismo na garganta, cedeu de imediato o flanco nas lides liberais. Na altura do acontecimento preparava-se para atacar uma miga de sardinhas à moda de Berlin. Era o requinte esperado, que Berlin nunca amargou. Só os doces.

sábado, 20 de setembro de 2003

ANTÓNIO FRANCO ALEXANDRE



vou ficando invisível, aos pedaços,
comendo laranjas no escuro.
o teu corpo é dos que nunca lêem livros,
sabem de estradas e de pássaros, pouco mais;
a tua morada tem no telhado as frinchas
da lei, onde se vê o céu; e eu,
absorto de silêncio e de chuvisco,
ó tosco cantador! ...


[António Franco Alexandre]

ORDEM DA JARRETEIRA ... EM VERSÃO PROFANA

"(...) O rei Eduardo III, com outros do mesmo nome inclinado ao eterno feminino, viu um dia, durante palaciana recepção, cair no salão a liga azul da perna esquerda da condessa de Salisbury. Galante e solícito, curvou-se o monarca, apanhou a liga e restituiu-a à condessa. Houve sorrisos no adjunto dos cortesãos, sublinhando com malícia o gesto real.

Afrontando essa malícia, Eduardo III proferiu, então, a celebre frase, no qual passaria a exibir o grave sentido de um preceito: Honni soit qui mal y pense, que era como se dissessem:«Respeitem esta senhora!». E, a fim de perpetuar a importância da sua atitude, criou a Ordem da Jarreteira – a ordem, enfim da Liga, sob a égide de D. Jorge. Aqueles cortesãos haveriam de esforçar-se, e quase todos em vão, por merecer ou lhes calhar o pedaço de fita azul correspondente, como símbolo, ao laço que escorregara da recatada perna da condessa. Porque essa Ordem é dificilmente penetrável (...)"

[O Primeiro de Janeiro, 7/12/1947]

sexta-feira, 19 de setembro de 2003

PARABÉNS CHARLOTTE



Parabéns Charlotte! Saúde e fraternidade. Beijos mil.

Faz da tua vida em frente à luz
um lúcido terraço exacto e branco,
docemente cortado
pelo rio das noites


[Sophia]

PORTUGAL DOS PEQUENINOS

"(...) Quanto à loucura, queria que ficassem cientes disto: nem eu estou agora a escrever à pressa para lhes provar que não estou definitivamente choné, mas pelo cacau (o terceiro pacote está a chegar, o Inverno com ele) e porque à vezes preciso de mudar de malucos, sempre os mesmos já estão muito vistos. Nem, e ainda quanto à loucura, muitos escritores do nosso país se viram no passado acusados de alienação mental, caso de Gomes Leal, de Raul Leal, do Mário César, do Herberto, esse poeta ruminante e délfico. «Um talento tão extraordinário», diziam, «e em que findou ... aliás, já há muito tempo que o prevíamos ... ». (...)

O mais inteligente dos homens é, em douta opinião, aquele que se chama imbecil ao menos uma vez por mês, e hoje quem vai nisso? É reparar no que dizem, escrevem e fazem os nossos pluralistas duma figa. Noutros tempos, um imbecil compenetrava-se de que o era, até convinha. Na longa noite fascista (oh, estes lugares-comuns são deliciosos!) era prudente. Agora acabou-se! E baralharam tão bem as cartas, numa batota tão sabida e repetida, que um homem inteligente já não se distingue do imbecil. Estes tipos, pós 25 de Novembro, fizeram-no de propósito. Um imbecil, aliás, não tem preço. Isto é, não vale nicles. Um traque sempre é qualquer coisa. E esta referência escatológica lembra-me que estou na hora do jantar. E isso quer queiram quer não, é indispensável ao meu PREC (=processo de recuperação em curso). (...)

[Luiz Pacheco, Portugal dos Pequeninos, in Letras e Artes, DP, 10/11/1977]

quinta-feira, 18 de setembro de 2003

MARCEL DUCHAMP E O XADREZ


"Todos os Xadrezistas são artistas" [MD]

"Nascido em 1987, em Blainville (França), Duchamp dedicou-se, a partir de 1908, a uma intensa actividade de renovação artística depois de um período de influência «Fauve» e Cubista, via Cézanne, entre 1907 e 1908, durante o qual pintou, precisamente neste último ano, a tela «Jogadores de Xadrez», revelando desde logo, o primeiro assomo das duas paixões que iriam pautar a sua vida: a Arte e o Xadrez. Retoma o tema, em 1911, com «Retrato de Jogadores de Xadrez», reflexo dos novos caminhos que irá percorrer, mas ainda dentro do Cubismo.
Em 1912, depois de aderir ao grupo inovador «Section d'Or», executou a pintura «Nu descendant un escalier», obra que marca a grande viragem estética que Duchamp representa no mundo da Arte. Ainda nesse ano o xadrez volta a surgir no seu trabalho «Le Roi et la Reine entourés de Nus vites», no qual se patenteia toda a dinâmica existente numa partida de xadrez à qual está ligado, permanentemente, um profundo sentido do belo, como o próprio artista afirmaria:

«A Beleza no xadrez está mais próxima do ideal da poesia; as peças do jogo são letras do alfabeto que exprimem pensamentos; e estes, embora traçando um desenho visível no tabuleiro, expressam a sua beleza de forma abstracta, como um poema»

No ano de 1916 todo o mundo artístico é convulsionado quando Duchamp, Tristan Tzara, Jean Arp, Francis Picabia e outros fundam o Movimento DaDa, que viria abrir caminho à eclosão, em 1921, do Surrealismo. (...) em 1923 Marcel Duchamp dedica-se, quase em exclusivo, ao xadrez, tornando-se mesmo profissional. Participa, a partir de então, em representação de França, nas Olimpíadas de Paris (1924), Haia (1928), Hamburgo (1930), Praga (1931) e Folkestone (1933). A bibliografia xadrezística ficou-lhe a dever duas obras nas quais o artista se confunde com o praticante de xadrez: o livro «Jeu de la Reine» e um trabalho intitulado «L'opposition et les cases conjuguées sont réconciliées». (...)

Assim toda a revolução levada a cabo nos primeiros anos do pós-guerra por Duchamp, pelos seus companheiros DaDa e, posteriormente, pelos surrealistas, encontra no Hipermodernismo a sua equivalente do xadrez.
Em 1920, Richard Reti, Julius Breyner, Alekhins e Boboljubow, utilizando uma metodologia inspirada nos princípios proclamados, em 1911, por Aron Nimzovitsch, inovam por completo o xadrez. (...)"

[Dagoberto L. Markl, A Arte e o Xadrez de Marcel Duchamp a Julius Breyer, in Revista Portuguesa de Xadrez, nº1 II Série, Abril de 1977]

Lugares: Marcel Duchamp / Histoire(s) D'Echecs - Marcel Duchamp/Idem / Gambitos e Penicos / Entrevista a M. D./

quarta-feira, 17 de setembro de 2003

À VOLTA DOS BLOGS ... AINDA OS NEURÓNIOS DE PACHECO PEREIRA


A rapaziada do Barnabé, decerto por ter a liturgia e vitalidade trostkista abalada, esquecendo a célebre divida de Marx, De omnibus dubitandum, julga ter encontrado uma cesta de neurónios do Pacheco Pereira algures na Cedofeita, chez um membro da defunta OCMLP. Ora nada mais errado. Nem os possantes neurónios de Pedro Baptista o permitiriam, mesmo agora que os doou na sua totalidade ao seu FCP.

Os putativos neurónios pachecais há muito foram entronizados pelo (também) defunto PCPml. Nada de extraordinário. Seja como for, o que se pode assegurar nesta questão é que Pires de Lima (filho) pediu de empréstimo neurónios, que a vida politica puxa muito do peito, mas não sabe de quem. Eu próprio, por vezes, tenho essa estranha sensação. No meu caso julgo que se deve ao facto de ser conservador depois do jantar, como alguém sugeriu. Nada que uma noute festiva não corrija. Deo Gratias.

ESTE É O BOM GOVERNO DE PORTUGAL



Um Reino de tal valor
e de povo tão honrado
é justo seja louvado
desde o vassalo ao Snr;
ainda que fraco orador
a verdade hei de dizer,
e cada qual recolher
pode aquilo que lhe toca,
ainda que digna o provoca
uma imitação Real.
Este é o bom governo de Portugal.
...............
Da Câmara, e Senado
que em obras, taxas, licenças
deve com toda a presteza
ter particular cuidado,
o governo é de estado
e são as ruas da cidade
monturos e porquidade;
e o que tem que vender
o vende pelo que quer
por ter seguro o costal.
Este é o bom governo de Portugal.
...............
Que venha todo o estrangeiro
e cada um negociando,
o ouro e prata vão levando
deixando-nos sem dinheiro;
e não há já conselheiro
que seja homem de talento,
que apurado o entendimento
algum remédio lhe aplique,
para que o Reino não fique
exausto deste metal.
Este é o bom governo de Portugal.
...............
Já não temos que esperar
neste governo insolente
mais que perecer a gente
sem o bem nunca alcançar;
só para Deus apelar
pode o povo português
e pedir-lhe desta vez
que nos dê governo novo,
para que com ele o povo
siga no seu natural.
Este é o bom governo de Portugal.
...............


[Tomás Pinto Brandão]



"Esta sátira não se encontra entre as poesias impressas de Tomás Pinto Brandão. Aparece no chamado códice Lino de Mattos, das Obras de Gregório de Matos Guerra, segundo cópia feita por Lino de Mattos, em 1946, mass. Marcado 1/59/3 e R/64/3 da Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro), em dois volumes. É depois do Índice do 2º volume que se encontra a sátira ao governo de Portugal. Na última pág. o copista anotou: Extraído do Ms. R/3/64 de ... folhas 64 a 67, existentes na na Bca. Nal. De La. Segundo o anotador das obras de Gregório de Matos, vol. VII, col. Os Bahianos, compilação de James Amado, a sátira não tem indicação de autoria mas é sabidamente de Tomás Pinto Brandão, companheiro de Gregório de Matos na Bahia (...) Existem, certamente, numerosos inéditos de Pinto Brandão. Muitas outras poesias, que correm como sendo de Gregório de Matos, de Tomás de Noronha e de Frei António das Chagas serão, provavelmente, de Pinto Brandão como dele são algumas que juntamente com outras de João de Brito Lima se encontram no 2º volume do chamado códice Manuel Pereira Rabelo, oferecido, em 1962 (?), por Eugénio Asencio a Celso Ferreira da Cunha, e que se atribulam a Gregório de Matos. (...)" [João Palma-Ferreira, Este é o bom governo de Portugal, in Revista Critério, nº 1, Nov. 1975]

"Como escreveu João Bautista de Castro [Mapa de Portugal Antigo e Moderno, t. II, 1763] foi Tomás Pinto Brandão célebre poeta (...) que para o estilo jocoso teve particular energia e propendeu muito para o satírico; porem, naquele seu género sempre os seus versos serão memoráveis. (...) Sublinhe-se, no entanto, que não é apenas a curiosidade da sátira, apesar do muito que denuncia as «políticas» do reinado de D. João V, que torna oportuna a exumação da obra deste poeta vulgar. Ela é também um concludente repositório de notícias importantes sobre o último quartel do século XVII e primeiro do século XVIII e um autêntico manancial para o estudo de diversos aspectos da sociedade portuguesa numa época que tem sido sistematicamente esquecida.
Pinto Brandão nasceu no Porto, em 5 de Março de 1664 (...) Aos 17 anos veio para Lisboa, Nos finais de 1680 fez conhecimento com Gregório de Matos Guerra, com quem partiu para a Bahia, a assentar praça no terço da guarnição da cidade. Em 1693 foi mandado prender por L. Gonçalves da Câmara Coutinho, almotacé-mor e capitão-general da capitania da Bahia. Esteve preso durante cerca de um ano (...) pena que o novo governador, D. João de Alencastre, lhe comutou em degredo para o o de Janeiro. (...) novamente preso por ter escrito uma sátira contra um amigo do governador [foi] mandado em degredo para Angola. Mal chegou a S. Paulo de Luanda foi metido a ferros e posteriormente conduzido a Benguela, para servir no Presídio, onde passou alguns anos. Atingiu o posto de capitão de infantaria e foi senhor de sessenta ou setenta escravos. Segundo a tradição, viveu em mancebia com a neta do rei Caconda, Nana Ambundo, de quem teria um filho. (...) Luís de Menezes, ao ser nomeado governador, lhe concedeu permissão para regressar a Portugal. Partiu para o Rio de Janeiro, vendeu os escravos (conservando apenas um, de nome Damião, que o serviu até à morte) e casou-se. (...) Na capital [Lisboa] vivia opulentamente, frequentava as Comédias e casas de jogo e gastava com liberalidade. Após uma escandalosa disputa com a sogra, separou-se da mulher, salvando-se da prisão (por denúncia de crimes obscuros) pela interferência do duque do Cadaval e do Conde de Unhão.

À beira da miséria (...) dedicou-se à profissão de poeta. (...) As suas silvas e romances, sátiras e décimas vendia-as pela cidade a Irmandade dos Homens Cegos (...) Em 1732, com auxilio do marquês de Cascais, imprimiu as obras num volume a que pôs o título de Pinto Renascido (parodiando, talvez a Fénix Renascida ... )Tinha sessenta e seis anos quando foi retratado, vivendo já do amparo de raros amigos que chegaram-se a reunir para lhe obter dinheiro, mas só quando caíra na maior miséria foi socorrido pelo Conde de Sabugosa, que lhe deu casa na Junqueira. (...) morreu em 31 de Outubro de 1743 (...)" [João Palma-Ferreira, ibidem]

Consultar: Este é o bom governo de Portugal , poema completo/ Tomás Pinto Brandão, texto de Camilo Castelo Branco / Notícia sobre os Códices de Gregório de Matos / Gregório de Matos / Gregório de Mattos, 360 Anos.

terça-feira, 16 de setembro de 2003

ANTÓNIO RIBEIRO DOS SANTOS



Salve, ó meus Livros, Livros escolhidos
Por vossos próprios meritos sublimes,
Minha saude e vida, meus prazeres;
Mimos dos olhos meus, altas delicias
De meu esp'rito, que vos ama terno:
Que seria de mim, se o iniquo fado
Me forçasse a viver de vós ausente
.............................
Rogo ao Ceo quem depois que vos eu deixe,
Finando estes meus dias já cansados,
Passeis a doutas mãos, que vos estimem
Como eu cá sempre vos prezei amigo;
Que ainda hum dia o novo dono vosso,
Quando vos registar, possa lembrar-se
Do antigo dono, que tivestes; possa
Meigo dizer-vos: vós, Ó Livros, fostes
Do Duriense Elpino Lusitano:
Elpino vos amou mui ternamente,
E eu vos amarei por vós, por elle.


[Elpino Duriense (aliás António Ribeiro dos Santos), in Poesias de Elpino Duriense]

António Ribeiro dos Santos (1745-1818] foi literato, bibliófilo, bibliógrafo, biblioteconomista. Foi nomeado, por Decreto de 4 de Março de 1796, por D. Maria I "Bibliothecario-Maior da Real Bibliotheca Pública da Corte" (mais tarde Biblioteca Nacional), que tinha sido criada por Alvará a 29 de Fevereiro desse ano. Foi Ribeiro Santos que organizou e catalogou a própria Biblioteca, a quem mais tarde foram legados todos os seus escritos, onde constavam muitas preciosidades e vários inéditos.

«Era a bibliotheca o intimo retiro d'este hermitão do Parnaso, fugida para longe das casas posto que tão quietas, e frescamente assentada em meio de muitas sombas, verduras e aromas de seu jardim, hortas e pomares. Grandíssima copia de livros, longamente procurados e custosamente juntos, e entre os quaes se estremavam no numero e riqueza os Gregos, os Romanos e os antigos Portuguezes, ali estavam juntos, entre o susurro estudioso das ramas e os cantares descuidosos dos passaros.» [António Feliciano de Castilho, A Primavera, Lisboa, 1837]

Algumas obras: "Memórias da Literatura Sagrada dos Judeos Portuguezes no século XV/ … / XVII" ; "Ensayo de huma Bibliotheca Lusitana Anti-Rabbinica, ou Memorial dos Escritores Portuguezes que escreverão de Controvérsia Anti-Judaica"; "Sobre as origens da Typografia Portugueza no Século XV"; "Memoria para a Historia da Typographia Portugueza do Século XVI" ; todos eles incluídos na "Colecção das Memorias da Litteratura Portugueza publicadas pela Academia Real das Sciencias de Lisboa, Lisboa, 1792-1814" – "Poesias de Almeno publicadas po Elpino Duriense", 1805-1815, II tom.

Fonte: Boletim da Sociedade de Bibliophilos "Barbosa Machado", vo. II, Impr.Libanio da Silva, 1913

segunda-feira, 15 de setembro de 2003

AOS AMIGOS



Amo devagar os amigos que são tristes com cinco dedos de cada lado
Os amigos que enlouquecem e estão sentados, fechando os olhos,
com os livros atrás a arder para toda a eternidade.
Não os chamo, e eles voltam-se profundamente
dentro do fogo.
- Temos um talento doloroso e obscuro.
Construímos um lugar de silêncio.
De paixão.


[Almocreve, esperando o próximo livro de Herberto]

O DESNUDAR DA POLÍTICA


"Creio no Inferno; é portanto aí que estou" [Rimbaud]

A política é o nosso inferno. Nosso purgatório. Quando desnudada, o seu acto de revelação remete para a ocultação, e caímos numa crispação entre o corpo (falante) e o poder. O discurso oficial e oficioso não esconde nem mostra. Os seus efeitos são meros jogos de linguagens à maneira de Wittgenstein. Estamos no paradigma da "política oblíqua" – não há antes nem depois. Num mundo em crise, num país em crise, numa crise em crise ... que melhor saudade que a da vida (Vieira).

São, pois, tempos curiosos os que vivemos. Erro nosso ou o "excesso de civilização dos incivilizáveis" (Pessoa)? Vários corpos, imensos rostos, mas "qual é o sujeito do outro"? Barroso e o seu ar blasé de quem não é nada com ele, ou eu sou diferente dos outros? Portas, com aquele tom grave, inchado, cuspindo ameaças, dedo em riste que a democracia segue dentro de momentos? A Ferreira Leite, impassível, em serviço de tracção ao défice orgulhosamente nosso? O inefável Figueiredo Lopes completamente inútil, simplesmente inactivo, meticulosamente deformado do tédio da governação? O Carmona Rodrigues curandeiro de viadutos, amotinado das obras públicas? O Theias, ambientalmente semeado num filme outro, enterrado até à cabeça num qualquer riacho de província? O Roseta, excomungada a social-democracia que o dinheiro amansou, num carrossel cultural que não sai do lugar? O amestrado Arnaut, frenético, piscando o olho em cerimónias, tábua de engomar da governação? Todos em osmose universal, todos mesmo aqueles que "fazem mijar a caneta para cima do papel de jornal" (Péret).

Dilema da "mulher de César"

O Presidente da Câmara da Figueira da Foz teceu comentários inaceitáveis sobre qualquer tipo de suspeição levantada no (agora) caso dos terrenos do Vale Galante, conforme se pode ler n'O Publico de ontem. Vários blogs figueirenses (O Palhinhas, Amicus Ficaria) já se tinham referido ao facto em causa, que irritou o senhor presidente. O engenheiro Duarte Silva não pode ameaçar cidadãos quando questionado sobre assuntos da sua governação. Não é pago para tal. E como sabe "à mulher de César não basta ser séria, é preciso parecer séria".

A notícia vinda no jornal O Publico é, goste-se ou não, preocupante. Independentemente da actual autarquia ter (ou não) as mãos atadas sobre o negócio feito pela gestão de Santana Lopes da venda do terreno à Imofoz (Grupo Amorim) e à sua configuração nos termos da hasta pública ("iniciar, no prazo de um ano, a construção do hotel", o que não foi feito), tal não lhe permite impedir que se procure explicações para a venda do terreno em menos de 24 horas, feito pela própria Imofoz a uma outra empresa (Fozbeach), com mais valias de 1,145 milhões de euros.

Os cidadãos têm o direito e o dever de procurar explicações para este caso, não sendo bastante o engenheiro Duarte Silva assumir que o negócio feito por Santana Lopes lhe "é alheio", ou mesmo dizendo que o "anterior executivo foi pouco prudente". Até porque, na Figueira (ao que se sabe) ninguém é mudo. Há muito tempo.

domingo, 14 de setembro de 2003

O MAR



O mar rolou as suas ondas negras
Sobre as praias tocadas de infinito.

A boca das espumas nas areias
Deixa gravado o arco do seu beijo
E eu que no vento caminho e me abandono
Vou colhendo a colheita abandonada.


[Sophia de Mello Breyner]

DAMIANO DE ODEMIRA


"Eis o nome de um farmacêutico que viveu nos séculos XV e XVI e que passou à Historia pelas suas inigualáveis aptidões no complicado jogo de xadrez, autor de um trabalho que ainda hoje é considerado em todo o mundo como um notável produto de uma inteligência absolutamente fora do vulgar.

Publicamos em seguida os apontamentos que sobre ele nos forneceu o nosso colega sr. Alberto Veiga, pae do digno Director da Biblioteca Nacional de Lisboa.

A primeira edição do seu notabilíssimo livrinho [QUESTO LIBRO E DA IMPARARE GIOCHARE A SCACHI ...], publicou-se em Roma, em 1512 (...)

O traductor francez C. Sanson afirma que no Manual do jogo de Xadrez de Arnous de Rivière se encontra a seguinte apreciação (...)

«Les six courts chapitres sur les débouts sont dignes du plus grande éloge, quoique selon tout probabilité ils ne soient pas entièrement originaux. Pendant longtemps le traité de Damiano fut considéré comme le meilleur que l’on connut sur le Echecs.

Sarrat, un des plus forts joueurs de son époque, et écrivant distingué, dont l'opinion a une grande valeur, fit paraître à Londres, en 1813, une edition de ce livre, onde afirma o seguinte : 'On se saurait surpasser le talent qu'on remarque dans le plus grand nombre de fins de partie de Damiano'

(...) La défense, connue aujour d’hui sur la dénomination Défense Russe ou Défense Pétroff est de lui. Un débout improprement renommé Gambit porte encore son nom : et le mat de Damiano est resté célèbre.

Notre auteur était né a Odemira (Portugal), - ou il exairçait la noble profession d’apoticaire

[Alberto Veiga, Damiano, de Odemira, in O Monitor de Farmácia, Ano I ]

Nota: Mantivemos o texto na sua versão do jornal. Desconhecemos o número e a data (1930?) da sua publicação.

Sobre Damiano e o xadrez, encontrámos um texto de Dagoberto L. Markl, onde aponta para a origem judaica do celebre xadrezista. Consulte-se, ainda: Bibliografia de Xadrez e Chess History.

sábado, 13 de setembro de 2003

AQUILINO RIBEIRO [n. 13 Setembro 1885-1963]



"Os livros, se são bons, ficam para a eternidade" [Aquilino]

Mestre Aquilino, natural de Carregal de Tabosa, Sernancelhe foi um "obreiro das letras", com uma fecunda e importante actividade literária. Foi romancista, ficcionista, prefaciador, biógrafo, memorialista, tradutor, ensaísta, camoniano devotado, bibliófilo, ... contador de histórias. E muito mais vivo hoje que alguns fazedores de letras e críticos literários supõem. Um almocreve das letras.

Algumas brevíssimas referências [ver Bibliografia, in Aquilino Ribeiro: um Almocreve na Estrada de Santiago, Frederick C. Hesse Garcia, Dom Quixote, 1981]:

- Aquilino Ficcionista: Jardim das Tormentas, 1913 (pref. De Carlos Malheiro Dias) / Via Sinuosa, 1918 / Estrada de Santiago, 1922 (ded. a Gualdino Gomes) / Andam Faunos pelos Bosques, 1926 (ded. A Brito Camacho) / O Homem que matou o Diabo, 1930 / Batalha sem Fim, 1931 / Aventura Maravilhosa de D. Seastião ... , 1936 / O Arcanjo Negro, 1947 / A Casa Grande de Romarigães, 1957 / Quando os Lobos Uivam, 1958 (ded. a Francisco Pulido Valente) / Casa do Escorpião, 1963 (ded. A Manuel Mendes) /... /

- Aquilino Tradutor: A Anarquia, Fins e Meios, 1907 (c/ parceria de Raul Pires) / Cartas Familiares, Francisco Xavier de Oliveira (O Cavaleiro de Oliveira), s/d / Recreação Periódica, O Cavaleiro de Oliveira, 1922, 2 vols / Dom Quixote de La Mancha, 3 vols., Bertrand, 1957 /... /

- Bibliófilo: Livro de Horas, Anais de Bibliotecas e Arquivos, nº 2, 1920 / A Bíblia de Gutenberg na Biblioteca Nacional, Anais de Bibliotecas e Arquivos, nº 3, 1920 / As Primeiras Gravuras em Livros Portugueses, Anais de Bibliotecas e Arquivos, nº 8, 1920 / ... / Prefácios a catálogos ( O Mundo do Livro) /... /

- Ensaios Vários: As Beiras sob o Ponto de Vista Etnográfico, Seara Nova, nº2, 1921 / Coimbrão, Guia de Portugal, II, 244-52 / Monte Redondo (idem) / Oeiras (idem) / Olhão (idem) / Pedrógão (idem) / Sintra (idem) /... /

- Biografias: O Cavaleiro de Oliveira, Anais de Biblioteca e Arquivo, nº11, 1922 / Anastácio da Cunha, o Lente Penitenciado, 1936 / Camões e o Frade na Ilha dos Amores, 1946 / António Botto visto por ... , Gazeta Musical, 9, 1959 / Camilo em Ribeira da Pena, Correio Beirão, 8 de Junho de 1961 /... /

- Literatura Infantil: Romance da Raposa, 1924 / Arca de Noé, 1935 / O Livro da Marianinha, 1967

sexta-feira, 12 de setembro de 2003

LUGARES


Barnabé

... Quando o Barnabé [Daniel Oliveira / André Belo / Rui Tavares / Pedro Oliveira / Celso Martins / Rosa Pomar] cá chegou toda a gente arribou ... O almocreve torna-se, desde já, assinante e envia saudações

"O Barnabé é um blogue sobre política e cultura. O Barnabé não é um blogue intimista. O Barnabé é tão Narciso como os outros, mas tem vergonha na cara. O Barnabé é um blogue pós-narcisista. O Barnabé é um blogue de esquerda e heterodoxo. O Barnabé não é um albergue espanhol. É um hotel de seis estrelas."

DUELOS IMPREVISTOS

Mário Soares versus Pacheco Pereira, na Sic Noticias.

Soares reflectiu, enquadrou e interpretou o 11 de Setembro a partir de uma multivariedade de leituras, num registo discursivo anti maniqueísta, contextualizando toda a polémica em causa, do simbólico ao politico/económico. Foi brilhante. Por vezes magistral, porque incomodo (a referencia à China, quando PP configurava o terror do regime de Saddam, baseado nos assassínios políticos, é brutal). O prazer do debate é manifesto. Está-lhe na alma.

Pacheco Pereira sobrevoou algumas das questões inicialmente colocadas. Começou mal. Quando procurou clarificar a sua leitura dos acontecimentos, caiu facilmente no facilitismo, no maniqueísmo simplório. Afinal o que haveria era uma "guerra de civilizações", tout court. Os enquadramentos para tal suposição, pela sua inexistência, dissolvem qualquer discussão séria. Pacheco Pereira manifestou poucos argumentos frente a um Soares mais ideologizado, sendo que o que restou foi o seu incondicional apoio ao novo Sol do mundo, os EUA. Daí que se entenda a necessidade de vir em defesa dos novos construtores do império, citados por Soares (Strauss, Perle, Wolfowitz). E espanta, que Pacheco Pereira com a inteligência que se lhe reconhece e o desafio intelectual que em tudo coloca, não questione, com fundamentação relevante, esses discípulos straussianos que tem assento na Casa Branca.

quinta-feira, 11 de setembro de 2003

SOLO LA MUERTE

A lo sonoro llega la muerte
como un zapato sin pie, como un traje sin hombre,
llega a golppear con un anillo sin piedras y sin dedo,
llega a gritar sin boca, sin lengua,
sin garganta,
Sin embargo sus pasos suenan
y su vestido suena, callado como un arbol.


[Solo la Muerte, Pablo Neruda]

quarta-feira, 10 de setembro de 2003

LEON TOLSTOI [n. 9 Setembro 1828]


"Não há liberdade quando não se permite dizer o que se pensa, nem quando não se pode viver como se crê necessário"

"Definir liberdade como direito de fazer tudo o que não atinja a liberdade de alguns, tudo o que não é proibido pela lei; evidentemente, não corresponde ao conceito da palavra liberdade. E não poderia ser de outro modo, porque uma definição semelhante atribui ao conceito de liberdade a qualidade de algo positivo, quando liberdade é uma concepção negativa. Liberdade é ausência de travas. O homem é livre somente quando ninguém lhe proíbe, sob a ameaça da violência, de executar certos actos. Os homens não podem ser livres em uma sociedade onde os direitos das pessoas estão definidos de uma maneira onde se exige ou se proíbe certos actos sob pena de castigo. Os homens podem ser verdadeiramente livres apenas quando todos igualmente estiverem convencidos da inutilidade, da ilegitimidade da violência, e obedeçam as regras estabelecidas, não por medo da violência ou da ameaça, e sim, pela convicção arrazoada."

"Os governos existem; desde há muito tempo conhecem a seus inimigos e os perigos que os ameaçam, e por esta razão tomam as medidas que tornam impossível a destruição do estado de coisas por meio do qual se mantém. E os motivos e os meios que os governos usam são os mais fortes que podem existir: o instinto de sobrevivência e o exército disciplinado."

"Para livrar-se dos governos não é necessário lutar contra eles pelas formas exteriores (insignificantes até o ridículo diante dos meios de que dispõem os governos) é preciso unicamente não participar em nada, basta não sustentá-los e então cairão aniquilados. E para não participar em nada dos governos nem sustentá-los é preciso estar livre da fragilidade que arrasta os homens aos laços dos governos que lhes fazem seus escravos ou seus cúmplices."

"Evocar em nós mesmos uma sensação experimentada e, tendo-a evocado em nós, por meio de movimentos, linhas, cores, sons ou formas expressas em palavras, transmitir essa sensação de maneira que outros a experimentem - é esta a actividade da arte. A arte é uma actividade humana que consiste nisto: um homem, conscientemente, por meio de símbolos externos, transmite a outros determinados sentimentos que experimentou de forma que esses outros sejam afectados por esses mesmos sentimentos e também os experimentem."

"Os povos europeus apreciam trabalhar por estabelecer novas formas de vida, elaboradas desde há muito tempo nas consciências, mas é sempre o velho despotismo grosseiro que lhes guia a vida. As novas concepções da vida não somente não se realizam, como até mesmo as antigas, aquelas que a consciência humana tem denunciado desde há tanto tempo - por exemplo, a escravidão, a exploração de uns pelos outros em proveito do luxo e da ociosidade; os suplícios e as guerras - se afirmam a cada dia de uma maneira cruel. A causa é que não existe uma definição do bem e do mal aceite por todos os homens, de maneira que qualquer que seja a forma de vida posta em prática, há de ser sustentada pela violência."

"Nós, as classes ricas, arruinamos os operários, nós os obrigamos a um trabalho rude e incessante, enquanto desfrutamos luxo e lazer. Nós não permitimos que eles, esmagados pelo trabalho, tenham a possibilidade de criar o florescer espiritual, o fruto espiritual da existência: nem poesia, nem ciência, nem religião. Nós procuramos dar-lhes tudo isto e damos-lhes uma falsa poesia - 'Para que partiste para o Cáucaso destruidor etc., uma falsa ciência - jurisprudência, darwinismo, filosofia, a história dos czares, uma falsa religião - a igreja oficial. Que pecado terrível. Se nós não os sugássemos até o fundo, eles fariam aparecer a poesia, a ciência, a doutrina sobre a vida."

"Todo homem, para começar a estudar as questões mais importantes da vida, necessita primeiro refutar as estruturas de falsidade que foram acumuladas ao longo das eras."

Pages:

- Leo Tolstoy
- Leão Tolstói /Antiarte e Rebeldia, por Boris Schnaiderman
- Lev Nikolaevich Tolstoy (1828 - 1910)
- Images of Leo Tolstoy
- About Leo Tolstoy
- Bob Bamont's Leo Tolstoy Page

terça-feira, 9 de setembro de 2003

MERCADOR DE LIVROS


"... [para a historia dos mercadores de livros ou livreiros] encontram-se (...) importantes subsídios quanto aos mercadores de livros quinhentistas, no curioso trabalho do erudito Gomes de Brito Noticias de Livreiros e impressores em Lisboa na 2ª metade do século XVI, separata do Boletim da Sociedade de Bibliophilos Barbosa Machado, baseado num importante códice pertencente ao rico arquivo da Câmara Municipal de Lisboa e no livro de Tito Noronha, outro erudito, intitulado A Imprensa portugueza durante o século XVI.

Nessa época havia em Lisboa, conforme refere a preciosa Estatística de 1522, vinte vendas de livros ou livrarias, disseminadas pela famosa Rua Nova dos Ferros [cognominada O Chiado quinhentista]. (...) destacam-se, como mais opulentos, dois estrangeiros, João de Borgonha, que também era editor e João de Molina ou João de Espanha, associado a Miguel de Arenas. Outros mais (...) como Bartolomeu, João, Cristóvão e Simões Lopes, pertencentes talvez à mesma família; como um com o nome novelesco de Sagramor Fernandes; como Manuel de Carvalho e Sebastião de Carvalho, possivelmente seu filho; como Diogo Machado; como Gabriel de Araújo; como Diogo Moniz; como Francisco Grapheo, que vendia as primeiras edições de Menina e Moça de Bernardim Ribeiro e a Diana de Jorge de Montemór; como Francisco Mendes; como o flamengo Geraldo de Frísia; como Salvador Martel e depois sua viúva Leonor Nunes e seu filho; como Jerónimo e Jorge Aguiar; como António de Aguilar; como Francisco Fernandes; como Baptista da Fonseca; como Manuel Francisco, António Dias, Pêro Castanho, João de Ocanha, etc.

Em Braga havia tendas de livros de João Beltrão de sociedade com Pêro Gonçalves; em Coimbra as de Melchior Beleago, António de Mariz, que também era emprimidor, Geraldo Mendes e Jerónimo Miranda, etc. e em Évora as de Adrião Fernandes e António Lermet.

Dos livreiros mais modernos citaremos um Francisco Baptista de Oliveira Mesquita, o Méchas, estabelecido na Travessa dos Romulares, nº 8-A, junto ao Caes do Sodré, que mereceu ser incluído por Inocêncio no Dicionário Bibliographico.

Nos nossos tempos [trata-se de 1924] tornaram-se bem conhecidos em Lisboa os nomes dos livreiros: Pereira da Silva (o pae conhecido por Frade e seus dois filhos) cuja livraria se desbaratou há anos em quatro sucessivos leiloes; Rodrigues, do Pote das Almas, em cuja livraria se reuniam Sousa Viterbo, Inocêncio, Merelo, Jaime Moniz, Manuel d’Assunção, etc.; Caldas Cordeiro, diplomado com o Curso Superior de Letras, cujo estabelecimento era um centro de cavaqueira em que apareciam Teófilo Braga, Ginestal Machado, Gualdino Gomes, Joaquim Rasteiro, Aníbal Fernandes Tomás, Berquó, Armando da Silva, Calado Nunes, Picotas Falcão, etc.; João Vicente da Silva Coelho (...); Avelar Machado; Manuel Gomes, (...); António Maria Pereira; Henrique Marques; Maia; Comendador Henrique Zeferino; Pacheco; Bordalo; Sá da Costa, etc.

Noutras terras de Portugal encontram-se ainda estes nomes: Lelo & Irmão, Lopes da Silva, Moreira da Costa, etc. do Porto e França Amado de Coimbra, etc. (…) [continua com a biografia de Manuel dos Santos]

[Henrique de Campos Ferreira Lima, in Catalogo duma importante Livraria que será vendida em leilão sob direcção de Manoel dos Santos …., , 1924]

segunda-feira, 8 de setembro de 2003

À VOLTA DOS BLOGS


- AVISO: Ivan, regressado de Copacabana com luminosidade, faz saber que retomou à vida. Assegura que tem intenção de recrear o espírito com assuntos comezinhos como as invectivas da política caseira, o debate sobre o eixo do mal, a existência de um governo e (pasme-se) tricotará uma dissertação sobre a sua extraordinária vida XXI. Cansado de olhar para o seu umbigo, esmagado pelo peso da cultura de Nelson Rodrigues, avisa que vai tentar ser solidário, estimulando o umbigo alheio. Dá consultas.

- Por seu turno, o Abrupto paira entre os acepipes ornamentais de uma saborosa Ribeirada e o novíssimo debate sobre o trotskysmo. Este último, com o dorso alapado na IV Internacional (ainda existe?) tarda em sair da sua horta celestial. Espera-se uma corrida de "pablistas", "lambertistas", "mandelistas" e afins em prosa vernacular. Ó tempora, ó mores.

- Secret: assegura-se que o Blog de Esquerda será doravante escrito a uma só mão. Afinal "o silêncio só é louvável numa língua de vaca fumada e numa rapariga já sem esperanças de casar". Daniel, siempre!

- Admoestação: consta que foi severamente advertido, por mau uso de bushismo e porte blairiano, o conhecido MacGuffin. Assim aconteceu no redil do Fialho d’Évora, entre uma garrafa de Tapada de Coelheiros e uma perdiz, quando se invocou Berlin. Chegado o mestre, numa mão o Karl Marx, His Life and Environment (edição de 1939), na outra um raro vinil de Stravinsky, logo abriu o debate advertindo que "things and actions are what they are, and their consequences will be what they will be: why then should we seek to be deceived?", o que provocou arrepios entre os comensais. Depois de porfiada oratória em torno do pecado da carne, onde castigámos uma sopa de pés de porco à moda de Pavia, foi-nos dito: "A raposa sabe muitas coisas, e o ouriço apenas uma importante". Estremecemos. Como as noites são belas e a paixão imensa.

- Protestação: causou impacto no Sindicato dos Homens a Dias, a confissão de total desconhecimento por ag de um escritor como Luís Sepúlveda. A heresia, comentada na Mercearia Liberal, foi colmatada pela confissão que José Afonso teria sido um "bobo ideológico". A insolência serviçal verificada, apesar de mostrar que os funcionários aprendem vocabulário contemporâneo, revela porém que o obsequioso ag não tem em devida conta que Zeca Afonso (para os amigos), como antigo estudante de Coimbra, obrava sem sujar a capa. Tal capacidade operatória não é crível ser entendida por criados de servir zelosos. Recomenda-se-lhe a obra: "Tratado de botar águas fora sem molhar quem passa", obra útil a funcionários desatentos. Vende-se por pouco mais de nada.

ELIEZER KAMENEZKY [n. 7 de Setembro 1888 - 1957]



Eliezer Kamenezky, judeu russo, exilado em Lisboa, onde se estabeleceu como alfarrabista na Rua D. Pedro V, foi poeta e também pessoa que frequentava os meios literários e artísticos da cidade. José Malhoa fez-lhe o retrato, que vem na edição de Alma Errante. Fernando Pessoa foi seu amigo e prefaciou aquele seu livro, de 1932, com um dos textos mais importantes sobre a Maçonaria, os Judeus e os RosaCruzes. António Lopes Ribeiro fê-lo actor de cinema no filme a Revolução de Maio, onde figurava um bolchevista russo" [in, A procura da Verdade Oculta /Textos Filosóficos e Esotéricos, prefácio e notas de António Quadros]

Era, portanto, amigo de Fernando Pessoa que lhe prefaciou o livro "Alma Errante" (1932), sendo que tal texto introdutório ao livro de Eliezer Kamenezky é demasiado importante para passar despercebido. De facto, parece ser o primeiro texto em torno da problemática maçónica que FP publicamente escreveu. Yvette Centeno diz-nos ("Fernando Pessoa/O Amor/A Morte/A Iniciação") que faria parte de um projectado livro intitulado Átrio. As considerações de Pessoa em torno das origens da maçonaria são aí debatidas, expressando o poeta uma não correspondência evidente entre o judaísmo e o maçonismo. Curiosamente, um amigo seu e colaborador da Orpheu – Mário Saa – num livro "amaldiçoado" ("A Invasão dos Judeus", 1924) considera a origem judaico de FP via Sancho Pessoa, natural de Montemor-o-Velho. Ora, as linhas finais do prefacio ao livro de Eliezer (1932, note-se), são de alguma perplexidade, pois FP diz que, "nenhum judeu seria capaz de escrever este prefácio", o que levanta a questão de saber, afinal, passados oito anos do texto de Saa, que pretendia FP afirmar nessa sua demonstração de não ligação entre a maçonaria, os rosacruzes e a “conspiração judaica”? Ou houve alguma cumplicidade entre os dois?


Obras a consultar:

Alma Errante (prefácio de Fernando Pessoa) - Eliezer Kamenezky, Lisboa, Emp. Anuário Comercial, 1932
Fernando Pessoa/ O Amor/ A Morte/ A Iniciação Yvette Centeno, Regra do Jogo, 1985
Fernando Pessoa e a Filosofia Hermética Yvette Centeno, Presença, 1985
A Procura da Verdade Oculta /Textos Filosóficos e Esotéricos – Pref. António Quadros, E.A., 1986
O Pensamento Maçónico de Fernando Pessoa Jorge de Matos, Hugin, 1997

domingo, 7 de setembro de 2003

CAMILO PESSANHA (1867-1926)


n. 7 de Setembro de 1867

De forte influência simbolista, prenuncia o modernismo da Orfeu, sendo de referência obrigatória do poeta Fernando Pessoa. Este considerava-o como mestre, porque:

" ... descobriu-nos a verdade de que para ser poeta não é mister trazer coração nas mãos, senão que basta trazer nelas a sombra dele" [F.P., in Páginas de Literatura e Estética]

Talvez o simbolista de maior pureza, oriundo da nobre ascendência [vidé António Quadros - O Primeiro Modernismo Português, EA, 1989] dos Pessanhas, a ferida da sua bastardia, seguramente, marcou-o para sempre. "Depois da sua frustrada tentativa de casamento com Ana de Castro Osório, seguiria as pisadas do pai e avô; ele próprio, na solidão do que chamou a montureira, material e moral, de Macau, foi ali resvalando para o vício do ópio e para a vida em comum (...) com uma governanta-amante chinesa (...) depois com a filha daquela, N'gan-Yeng, a Águia de Prata, enfim, com uma terceira concubina, ainda chinesa Same-Khun" [idem]

Quando a vejo, de tarde, na alameda
Arrastando, com ar de antiga fada,
Pela rama da murta despontada,
A saia transparente de alva seda,
E medito no gozo que promete
A sua boca fresca, pequenina,
E o seio mergulhado em renda fina,
Sob a curva ligeira do corpete ...


Depois da paixão desabrida por Ana de Castro Osório, que lhe recusa o cortejar e o casamento, Camilo Pessanha sai do país, foge para Macau onde permanece desde então (1894) até á morte (1926).

Obras: Participa com poemas no jornal Novo Tempo, na revista Ave Azul; Clepsidra, Edições Lusitânia, 1920; China, Estudos e Traduções, 1944

sábado, 6 de setembro de 2003

SUAVES

- O Jornal da TVI da noite do dia 5 de Setembro foi uma náusea, um vómito completo. Não bastava todas as noites (e em todos os canais) estar presente protagonistas do processo Casa Pia, como agora a senhora Manuela Moura Guedes faz acusações gravíssimas a indivíduos que estão sob suspeita de crime hediondo. Apenas me espanta que a dita senhora não seja processada por quem de direito ou recambiada para a cela da PJ para averiguações, dado o seu conhecimento profundo e seguro de quem é quem em todo este processo. Mas suspeito que essa preciosidade do sigilo das fontes impeça tal acto pedagógico. E, doravante, sem que se questione a função do jornalista e da informação face ao media, é possível aparecer mais Manuelas acusando quem quer que seja. Eis a TV transformada, definitivamente, no Canal do Crime ou do Insólito.

- [Via Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo]

Diálogo entre Casanova e Goudar

- E gostamos de nós mesmos?
- Certamente.
- E se não gostarmos?
- Se não gostarmos de nós mesmos, monsieur, então estaremos perdidos, pois um homem que não gosta de si mesmo está repleto de dúvidas. Nós sobrevivemos e existimos porque somos verossímeis. Quando a equilibrista duvida ela cai. Quando o espadachim duvida ele morre. Devemos temer mais a duvida do que um estilete.

- [Via Alexandre Soares Filho]

"Toda explicitação do implícito é uma grosseria. A dança é uma explicitação da música. Toda dança é uma grosseria. A dança está para a música como o arroto para a comida."

"Há um culto a Woody Allen, em que ligamos o abajur num fim de tarde chuvosa, ouvimos What is This Thing Called Love, rezamos a Santo Loquasto, e imaginamos que beijamos Mariel Hemingway aos 17 anos"

ATENTADO POÉTICO

[Via Collectanea] – "Libere um LIVRO! Na manhã de 11 Setembro 2003 não se esqueça de sair munido de um livro que seja importante para você. Um livro que tenha mudado sua maneira de ver o mundo. Escreva uma dedicatória... e o libere!
Libere-o na via publica, sobre um banco, no metro, no ônibus, em um café ... a mercê de um leitor desconhecido. E você? Adotará um livro que esteja em seu caminho? O dia 11 Setembro não será mais um aniversário fúnebre pois iremos transformar essa data. Juntos, transformaremos esta data em um ato de criatividade e generosidade. A mobilização será geral em Bruxelas, Paris, Florença e São Francisco. Vamos fazer isso também em nossas cidades aqui no Brasil. Nessas cidades, um grupo de escritores, de toda confissão literária, liberará seus livros, em lugar público.
Engaje-se nessa ideia também!
E faça circular essa informação"

Na TSF pode ler-se (e ouvir): "Um grupo internacional de poetas, editores e artistas propõe-se executar um atentado poético cuja arma é a literatura. O objectivo é assinalar o segundo aniversário do 11 de Setembro. Uma das iniciativas para marcar o 11 de Setembro organizado por um grupo internacional de poetas é espalhar milhares de livros por zonas públicas, livros marcantes que contribuíram para mudar formas de pensar, que honrem a liberdade do homem e celebrem a memória das vítimas de todos os atentados.

O poeta Pedro Tamen, em declarações à TSF, disse aguardar com expectativa este «atentado» : «Espalhar livros é sempre uma coisa boa, seja lá como for ou com que intenções, só merece aplausos, mas o que mais me impressiona é o lado provocatório do acto, de provocar o cinzentismo da vida quotidiana com algo de inesperado que ainda por cima se faz com um objecto que cada vez menos é procurado», afirmou, Tamen.

O poeta Albano Martins acolhe com surpresa esta iniciativa: «A poesia em principio não é um atentado, não se apresenta como uma agressão, pelo contrário á algo que suaviza, por isso a ideia merece alguma reflexão», disse. No entanto, Albano Martins considera importante honrar a liberdade, «a poesia é sempre um acto de liberdade, nesse aspecto é uma ideia bonita», acrescentou.

Um atentado poético a acontecer de Bruxelas a Florença, de Paris a São Francisco às 13:46, dia 11 de Setembro, na hora do embate do primeiro avião contra uma das torres do World Trade Center, em 2001."

sexta-feira, 5 de setembro de 2003

FIDELIDADE


Fidelidade

Creio no homem. Já vi
Dorsos despedaçados a chicote,
Almas cegas avançando aos saltos
(espanhas a cavalo
de fome e sofrimento). E acreditei.
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[Blas de Otero]