sábado, 17 de julho de 2004


O "governo" do dr. Sampaio 
 
"Também os acho pouco asseados: todos sujam as suas águas para as fazer perecer profundas" [Nietzsche]
 
Confirma-se. O "governo" do dr. Sampaio, sem grandes surpresas, diluindo a intencionalidade de alguns analistas mais manhosos, não conseguiu demover o eterno interesse dos grupos económicos e, singularíssimo, apresenta rostos contorcidos e fermentados para a luta política. Varrido o escol Barrosista, despedidos que foram para o suplício da privada, os novos ministros num arranjo cénico à Parque Mayer lá estão, desconjuntados e fora do seu palco de origem, prontos na sua vaidade ministeriável para imortalizar o pronto-a-servir de Lopes & Portas.
 
Enquanto isso, o dr. Sampaio, numa ironia very british, fervilha de júbilo pelo cumprimento do dever imperioso da democracia representativa. No seu intimo o dr. Sampaio desvanece-se de emoção perante a presunção da diatribe entre um PP assim musculado e um PPD, de lábia sonsa é um facto, mas refém do cozinhado governamental. Coisa, já se sabe, que os críticos de sofá político não conseguem entender na sua lufa-lufa antisantanista. Na verdade, fora a confusão na orgânica governamental que o ilustre Lopes atabalhoadamente pratica, o que se verifica é uma deliciosa e fascinante insinuação entre um PPD/PSD ávido de ritmo eleitoral (não é verdade mr. José Luís Arnaut & dr. Mexia?) e o re-fundamentalismo de Bagão Félix, em versão agora marialva. O sr. Álvaro Barreto, um clássico, está lá para dar sobriedade governamental. Os outros ... porque não havia mais ninguém.

Assim sendo, não restam dúvidas que enquanto todos ecoam palavras de consagração ao inteligente Lopes (o tal que não pode ser menosprezado), o dr. Portas confeccionou uns valentes pares de ministros, em lugares específicos, capazes de em dois anos o salvarem da hecatombe eleitoral. Não se cuide o dr. Lopes (o tal, dizem, que não pode ser subestimado) que o sequestro está à vista. Resta saber quem desertará em primeiro lugar.  Aguardemos.


Erle Stanley Gardner [n. 17 Julho 1889 - 1970] 

"Murder is not perpetrated in a vacuum. It is a product of greed, avarice, hate, revenge, or perhaps fear. As a splashing stone sends ripples to the farthest edges of the pond, murder affects the lives of many people." [in,  The Case of the Horrified Heirs, 1964 - Ver Aqui]

Papeladas & Arrumações 
  
- curioso "ensaio de critica leve, de philosophia amena", denominado "Cartas Biologicas", de Pires de Mirandola, editor Carlos Viana (s/d). Diz-nos: "...  É evidente que nem todos podem mandar e que, por mais systemas e teorias que se inventem, ha-de ser sempre um pequenissimo núcleo de homens que ha-de governar os povos e estes quando são sensatos, intelligentes e praticos como o inglez, o allemão, o belga e outros assim o entendem e executam. O portuguezinho valente não: ...  não há um único que não se julgue habilitadissimo e competentíssimo para salvar a Pátria e então se chega a ser qualquer coisa como caixeiro ali da respeitabelissima tenda dos srs. Jyronimo Martins & Filhos o menos com que se contenta é com uma estatua de pedra. Qualquer sapateiro de escada, em vez de se occupar conscientemente em deitar tombas e por meias solas, a única coisa em que pensa é tocar um solo de rabecão e se apparece alguém com geito para o rabecão esse quer logo ser jornalista ou deputado ..." 
  
- interessante conferência "proferida na Faculdade de Letras de Coimbra em 10 de Março de 1963", por Adriano Moreira, sobre "O Neutralismo". Como "determinantes políticas do neutralismo" é referido: "sendo o anticolonialismo o principal elemento da ideologia neutralista, o nacionalismo é a sua preocupação dominante."

quinta-feira, 15 de julho de 2004


Rosalía de Castro (1837-1885)

m. a 15 de Julho de 1885

"Escritora galega. Descendente, por parte de sua mãe, de uma família da velha nobreza, o facto de ser filha ilegítima de um sacerdote marca-a profundamente desde muito jovem. Escreve em galego e em castelhano e acaba por se tornar um elemento preponderante do «Resurdimento Galego». Aos vinte anos publica La flor, seu primeiro livro de versos. Nos seus Cantares gallegos (1863), breves glosas de canções populares, manifesta a sua intensa nostalgia da terra galega. Em Follas novas (1880), obra de uma maior intensidade lírica, exprime a sua intimidade com mestria e simplicidade, abordando a natureza como puro símbolo da sua nostalgia desenganada. En las orillas del Sar (1885) acentua-se o seu pessimismo. Os temas predominantes nesta colectânea são a inelutável realidade da dor, a inexorável passagem do tempo e um obsessivo sentimento da morte. No conjunto, a sua obra gira em torno de três temas básicos: uma visão costumeira da Galiza rural, um conteúdo metafísico que a parece aproximar da filosofia existencial e a denúncia das assimetrias sociais da Galiza. Por outro lado, Rosalía é uma importante inovadora estilística, pois utiliza novos ritmos, mais flexíveis e harmoniosos do que os usuais na sua época." [ver aqui]

Locais: Rosalía de Castro (1837-1885) / Biografia / Rosalia (biografia & obra) / Poemas / Rosalía de Castro (Títulos digitalizados) / Rosalia Castro (Cantares Gallegos) / Rosalía de Castro - o el color de la amargura

[Horas Tras Hora ...]

Hora tras hora, día tras día,
entre el cielo y la tierra que quedan
eternos vigías,
como torrente que se despeña,
pasa la vida.

Devolvedle a la flor su perfume
después de marchita;
de las ondas que besan la playa
y que una tras otra besándola expiran.
Recoged los rumores, las quejas,
y en planchas de bronce grabad su armonía.

Tiempos que fueron, llantos y risas,
negros tormentos, dulces mentiras,
¡ay!, ¿en dónde su rastro dejaron,
en dónde, alma mía?
Partido Socialista: um imenso vazio (II)

A contenda em torno da "luta pela conquista do centro", suposto o eleitorado flutuando como qualquer corsário em busca de abrigo, é recorrente no discurso oficioso. Desastradamente, tal linha conceptual original e comovente, mesmo que nos assegurem a sua referência nos manuais de literatura política, manifesta dificuldades na sua aplicabilidade. A pluralidade de estratégias de sobrevivência dos vários clientes que configuram essas posições "ao centro", só têm sentido em situações bem particulares. E mesmo aí, não é conveniente construção mecanicista na análise e muito menos o assumir, como hipótese, que esse "centro" é inamovível ideologicamente. E muito de "ideológico" mudou nestes tempos últimos, sendo que os eleitores, fortemente informados (globalização oblige), não são já o lugar da "irracionalidade". Quer isto dizer, que existe uma "lógica de cuidado" de características noviciadas, perante o impasse económico, social e cultural a que a todos assistimos. Falar da conquista do "centro" significa, portanto, neste contexto, exactamente o quê? E se considerarmos que há muito está esgotada a bipolarização, sendo necessárias alianças à direita e à esquerda, então para que serve a luta pelo "centro"?

Noutro registo: sabia-se da impossibilidade de António Vitorino, por motivos familiares e por características pessoais, assumir a liderança do seu partido (alguém, curiosamente, explicava as indefinições de Vitorino recorrendo à metáfora "sebenteira": isto é, alguém que ao longo de vinte páginas de didáctica jurídica não permite expor o que quer que seja de substantivo, quando é confrontado com resoluções definitivas revela as costumeiras contrariedades). Ninguém duvida que foi uma perda inultrapassável.
Por outro lado, José Lamego intervém meramente como urgência de ganhar posição num futuro Ministério dos Negócios Estrangeiros. Por seu turno, João Soares, por definição, não tem nada a perder e portanto está à vontade, mas o ter perdido com Santana afasta-o de qualquer cenário credível.

Resta José Sócrates, estabelecido na ala mais "direitista" do seu partido, personagem estimada pela classe governamental e mediática. A putativa inflexão à direita do espaço socialista pode-se não verificar totalmente, porque é sabido que o trabalho e o esforço partidário não são o mais forte em Sócrates, pelo que ficará sempre refém do aparelho, que não controla. E, de facto, Sócrates não representa a linha de esquerda do seu partido. Esta, embora pouco expressiva capitalizou o despautério de Sampaio, passe não anunciar ninguém que a habilite à liderança. Helena Roseta seria uma possibilidade, mas Jorge Coelho nunca o permitiria. Fica, pois, o maior partido da oposição num imenso vazio. Num tumultuoso reboliço. Alguém irá ganhar com isso. Estaremos cá para ver.

quarta-feira, 14 de julho de 2004


Partido Socialista: um imenso vazio (I)

"A piedade é cruel. A piedade destrói. Não há amor seguro quando a piedade espreita" [Graham Greene]

Estes últimos anos, com a incapacidade desconcertante de regenerar a classe política que as corporações de interesses que habitam em cada partido não permitem, têm sido uma lista de mazelas amargurada, uma fatigada e corrosiva tortura, uma desastrada cacofonia de disparates que dramatizam a vida social e política portuguesa. E na verdade pouco há, ainda, a esperar quando somos suspeitosos de quedarmos "ser sem desejo, sem despeito, sem revolta" [G. Pérec].

Varridos pelo presumido imprevisto que a indecorosa decisão de Jorge Sampaio fez tombar no espectro político-partidário, aturdidos pela obscenidade de ter um primeiro-ministro estouvado politicamente e obsequiante partidariamente, indiferentes ao "assassinato" político de Ferro Rodrigues (que muito a jeito se colocou, diga-se) por acofiados analistas e pela "tralha" socialista, descobrimos, de repente, que estamos manietados em "jogos de poder" que lamentamos, mas que somos impotentes para ultrapassar. Porém, a emotividade da putativa indignação que nos assalta faz-nos desprezar as origens desta agonia que a crise política comporta. Fala-se, evidentemente, do clientelismo e do monopólio dos interesses que nas estruturas partidárias substituem o carácter, a coragem e a verdade de servir os cidadãos e o país. Essa estranha maldição, resultante da conflitualidade entre "tradição" e "modernidade", não pode interferir no nosso labirinto dos afectos sob pena de cairmos no dizer de Cesariny de Vasconcelos: "aquele que se mete a autorizar a autoridade de quem desautoriza não sabe no que se mete".

[a continuar]


no dia do nascimento de Ingmar Bergman
[Não me venham dizer]

"Não me venham dizer
que os choupos despidos lembram mágoas
se o sol os veste, solitários e altivos,
erguidos sobre as águas

Longe vem vindo os barqueiros,
metidos no rio até às virilhas.

Nas ínsuas correm em liberdade os potros,
embora mais tarde vão pelas estradas,
seus flancos cingidos pelas cilhas"

[João José Cochofel, in Canção monótona para adormecer o poeta]

terça-feira, 13 de julho de 2004


[Sótãos]

"... quando era muito pequenina, também eu tive o meu sótão forrado de jornais velhos, assim com uma janela luminosa

(Os jornais rasgavam-se a toda a hora pois até no chão havia. Inspecção maternal impôs paredes brancas. Revolta filial impôs paredes pintadas com palavras de revolta. Tabefe maternal repôs a ordem)...

nos vários sótãos que fui tendo havia clubes de malfeitores, redacções de jornais que não passavam do primeiro número e cuja equipa era composta apenas por Miss Josephine Marsh, gargalhadas, brigas de vida ou morte, confidências, o funeral de um pássaro morto, reis, rainhas, pobres esfarrapados, aventureiros, o Tom Sawyer, o Huck e gatos com pulgas, um "single" dos Beatles que tocava Love Me Do e outras que não me lembro, livros aos montes, caixas de bolachas, festivais da canção e concursos de dança. E, na maior parte das vezes, só lá estava eu e uma seita de criaturas inventadas ...

Hoje (...) falta-me o sótão e a solidão". [de R. Maltez, enquanto vela o mar, as gaivotas e o pinhal del Rey. Afinal "canto nosso até ser fado"]


Papus (1865-1916)

n. na Coruña a 13 de Julho de 1865


Locais: Papus (1865-1916) / Papus / Biografia (pt) / Papus (idem) / Docteur Gérard (Anaclet Vincent) Encausse / Dr Gérard Encausse, dit "Papus" (1865-1916) / Papus and L'Ordre Martiniste / Notas sobre el ocultismo en la poesia hispanoamericana moderna / O Mago, Metáfora do Poeta / Parte Iniciática: o Ocultismo (Papus)
Livros & Arrumações

- importante publicação do manuscrito «Despertador da Agricultura de Portugal» de autoria do intendente D. Luís Ferrari Mordau, valioso para a história da economia portuguesa do século XVIII, sob direcção de Moses Bensabat Amzalak, Lisboa 1951. Inocêncio Francisco da Silva e, posteriormente, Brito Aranha (Bibliografia da Exposição Agrícola de 1884) referem-se a Luiz Ferrari Mordau e ao seu livro manuscrito, ao que parece adquirido "por Brito Aranha à família do falecido juiz Almeida do Amaral que o comprou entre os anos de 1830 e 1840 a uma ferro velho". Diz-se mais: "Por estas indicações sabe-se que pelo menos existem dois exemplares deste manuscrito um na Biblioteca Pública Eborense, e outro que pertenceu a Brito Aranha e cujo paradeiro actual ignoro". Amzalak na sua introdução refere que o «Despertador da Agricultura de Portugal», "reflecte as ideias da época sobre a agricultura [e] revela a influência do fisiocratismo".

- um artigo de A. De Magalhães Basto, publicado no Terceiro Congresso (p. 461 a 491) intitulado "Notícia dos manuscritos pertencentes à história do reinado de D. Sebastião que existem na Biblioteca Pública Municipal do Porto". Curioso.

- invulgar "mensário de critica livre" denominado "Pró Musica", propriedade e edição de Ruy Coelho. No nº 1 (1 de Novembro de 1916) existe uma polémica interessante com Freitas Branco, Humperdinck, Moreira de Sá e o próprio Ruy Coelho.

segunda-feira, 12 de julho de 2004


Santana: o primeiro coelho da cartola

"Quem espera por sapatos de defunto morre descalço" [J. César Monteiro]

Há no discurso de Santana Lopes, ao fim de contas, um aliciamento que faz vibrar a alma de uma qualquer mulher-a-dias ou de cavalheiros aborrecidos pelo tédio dos botequins. O rebanho chocalhante, assim respigado do anonimato, crepita de paixão ao ritmo de cada frase do Lopes, silva em alarido durante qualquer exposição do sagaz Santana, harpeja conspicuamente em defesa do admirável Pedro. O que se ouviu, neste dia, pelas rádios e TV's é esclarecedor. Eis, de facto, PSL no seu melhor.

A choramingada lamúria que hoje ressurgiu, com o enlevo emotivo do grandioso lançamento do cenário PSL na SIC e contra a "inaudita" trovoada de argumentos do enxame oposicionista, como se esperava conseguiu os seus intentos. Os indígenas, nos quais devotamente nos filiamos, num tropel de desatino delicioso, prestaram-se a analisar, debater e improvisar o primeiro coelho que o Pedro Santana Lopes tirou da cartola, a saber: a deslocalização ministerial.

Foi isto, de facto, que o fulgurante Lopes, depois de muito matutar, deixou cair para entreter os analistas e embalar a opinião pública. No tempo que dura o queimar de um fósforo, o novo primeiro-ministro conseguiu por toda a gente a discutir a "obrinha" populista saída da sua imaginativa actividade intelectual, deixando cair o pouco sério (já se vê) esclarecimento sobre o programa económico e social da nova governação.

Muitos mais coelhos serão rigorosa e oportunamente lançados à multidão. O espectáculo aí está. Pobres daqueles que pensavam em grandes magias e erudições políticas. Basta um coelho de cada vez, para não desenganar a grandeza do génio. Podem crer.

Pablo Neruda (1904-1973)

n. no Parral (Chile) a 12 de Julho de 1904

"... As pessoas atravessam o mundo na actualidade
quase sem recordando que possuem um corpo e dentro dele a vida,
e há medo, há medo no mundo das palavras que designam o corpo,...
"
[P.N., in Ritual da Minhas Pernas]

"... licenciado, ingressa na carreira consular e a folha oficial nomeia-o par a Birmânia. Aí escreverá grande parte da famosa Residência en la tierra, experiência maior que se oferece à discussão - ainda hoje - dos pesquisadores de ressonâncias surrealistas (...) Será em Buenos Aires que ele conhece pessoalmente Lorca.
Esta vivência espanhola, coincidente grosso modo com a guerra civil, aprofunda a viragem de Pablo Neruda em direcção à temática social, viragem para a qual já arrancara, mas que é sedimentada agora pela proximidade da luta. Leia-se como exemplo a Tercera residencia (1942), e principalmente os poemas de España en el corazón, ali incluídos depois duma publicação autónoma em 1937. Dessa época há a recordar ainda a co-organização, com Aragon e outros, do Congresso dos Escritores (Madrid, 1937), e a direcção duma revista, Caballo verde para la poesia, onde colaboram os principais nomes engagés da época ..." [Fernando Assis Pacheco, in Prefácio à Antologia Breve de Pablo Neruda, Cadernos de Poesia, D. Quixote, 1969]

"Eu rio-me,
sorrio
dos velhos poetas,
eu adoro toda
a poesia escrita,
todo o orvalho,
lua, diamante, gota
de prata submergida
que foi o meu irmão de outros tempos
acrescentando à rosa,
mas
sorrio,
dizem sempre «eu»,
a cada passo
sucede-lhes qualquer coisa
e é sempre «eu»,
pela rua
só eles andam
ou a doce amada,
mais ninguém,..." [P.N., in O Homem Invisível]

[Portugalidade]

"Menina e moça me levaram de casa de meu pai para longes terras. Qual fosse então a causa daquela minha levada - era pequena - não na soube" [Bernardim Ribeiro]

"... não temos que criar um mito, senão que renová-lo. Comecemos por nos embebedar desse sonho, por o integrar em nós, por o incarnar. Feito isso, cada um de nós independentemente e a sós consigo, o sonho se derramará sem esforço em tudo que dissermos ou escrevermos e a atmosfera estará criada, em que todos os outros, como nós o respirem. Então se dará na alma da nação o fenómeno imprevisível de onde nascerão as Novas Descobertas, a Criação do Mundo Novo, o Quinto Império"
[Fernando Pessoa]

"A verdade não pode ser transmitida à humanidade porque a humanidade não a compreenderia. Só por símbolo, portanto, pode a verdade ser-lhe dada; de sorte que vendo o símbolo sinta a verdade sem a compreender" [Fernando Pessoa]

[Bibliomanias & Almocreve]

domingo, 11 de julho de 2004

[Ainda Sophia]

"Neste país, paraíso triste, de séculos em séculos acontecem milagres.
A Sophia foi um dos milagres acontecidos à nossa alma. Visionária do visível, reinventou uma sonoridade límpida para os nomes que damos às coisas, o mar, a luz, o fogo, a cal dos quartos onde se cresceu só, a justiça, a liberdade. Durante anos levantou a cabeça das nossas crianças para o assombro.
Fê-lo por uma conjunção muito difícil de encontrar no ser português: a paixão da claridade e a capacidade de confronto com o caos. Acho que foi essa a essência da sua vida e da sua obra: usar o gume da palavra clara e justa contra o horror e a espessura opaca do mundo que não cessaram nunca de a acossar. Perdemos também isso e a sua incitação a uma alegria por vezes feroz; indomável como a das grandes crianças. Perdemos a menina do mar alto ..."

[Maria Velho da Costa, Visionária do Visível, texto lido na missa para Sophia de Mello Breyner Andresen, na Igreja da Graça, em Lisboa, a 4 de Julho de 2004]

Maria Lurdes Pintassilgo - uma Missão Cumprida

O que nos resta, ainda, do mundo? A paixão que deixamos, sem vestígios, sobre as coisas, a mansidão da grande saudade, a memória que não amordaça a boca. O vazio que nos deixa a partida de Maria Lurdes Pintassilgo representa isso tudo. E ainda mais, porque demasiado nos deu. A generosidade da sua missão entre nós fazem-nos permanecer de olhos enxutos pela força de a guardar na memória.
Que descanse em paz.

sábado, 10 de julho de 2004


Irresponsabilidade

"... encontrou o ponto arquimediano, mas utilizou-o contra si mesmo; ao que parece, esta era a condição para o encontrar" [Franz Kafka]

Não temos nenhuma promessa com o senhor Presidente da República. Não lhe devemos por isso nada, senão a consideração que um cidadão deve ter, diante do Presidente do seu país. No invés, na mais amáveis das suposições, seria de presumir que o Presidente eleito pelos portugueses, em circunstâncias singulares, não faria a desafronta de nos presentear com uma inaudita decisão, constitucionalmente restritiva, politicamente imprudente e pessoalmente irresponsável.

A decisão de não convocar eleições é um monumental erro de apreciação política e, contrariamente ao desejado, não permite afirmar que se defendeu a "estabilidade política", o "regular funcionamento das instituições", nem se prova que se garanta "as condições de regularidade, legitimidade e autenticidade democráticas". A "visão mandatária" da democracia do senhor Presidente, além de nos desfeitear politicamente, comporta conflitos insanáveis e perplexidades várias, sendo que parte da sua argumentação, direccionada a quem o elegeu, era completamente dispensável.

Assim: a actual coligação (que não foi a voto popular) não sufragou nas urnas eleitorais o actual programa do governo, conforme é sabido (tenha-se em conta o programa publicitado pelo PSD e o PP, e o que foi reescrito depois); os eleitores "no termo da legislatura" (quatro anos) não podem julgar a actividade do governo, porque ele deixou de existir, não havendo garantias (ninguém o pode assegurar) que o próximo seja do mesmo teor do anterior; ao afirmar que "não compete ao presidente governar" e ao mesmo tempo estabelecer condições para o seu funcionamento (terá feito o mesmo com o governo de Durão Barroso?) e controlo, não só está a co-responsabilizar-se politicamente (o que é curioso) como introduz um indisfarçado presidencialismo déjà-vue; portanto não se compreende as declarações que proferiu em defesa da sua posição.

E - noutro registo - se o senhor Presidente, num momento de desmando insensato, considera provável que a dupla Lopes & Portas lhe conceda a amabilidade de lhe dar argumentos para uma subsequente dissolução da AR, então estará a descuidar que uma chamada a eleições nesse cenário (e a vitimização que o caso estabelece) torna mais acessível qualquer vitória eleitoral para a coligação. O que não deixa de ser espantoso.

sexta-feira, 9 de julho de 2004


[Como devo lutar?]

"Tu vem procurar Me-ti e diz: quero tomar parte da luta de classes; ensina-me. Me-ti diz: senta-te. Tu senta-se e pergunta: como devo lutar? Me-ti ri-se e diz: estas bem sentado? Não sei, diz Tu admirado, de que outra maneira me sentar? Me-ti explicou-lho. Mas, diz Tu com impaciência, não vim para aprender a sentar-me. Eu sei, queres aprender a lutar, diz pacientemente Me-ti, mas para isso é preciso estares bem sentado, porque de momento estamos sentados e é sentados que queremos aprender. Tu diz: se se procura sempre tomar a posição mais cómoda e tirar o melhor partido do que existe, ou seja se se procura o seu prazer, como lutar? Me-ti respondeu: se se não procura o seu prazer, se se não quer tirar o melhor partido do que existe e se não se quer tomar a melhor posição, para quê lutar?" [Bertolt Brecht]

Vinicius de Moraes (1913-1980)

m. no Rio de Janeiro a 9 de Julho de 1980

"... Vinicius é um poeta muito complexo (...) e arriscaríamos, até, a afirmação de que na moderna poesia brasileira não conhecemos outro poeta em que a tessitura seja tão variada.
Muitas dessas linhas são facilmente discerníveis: há uma linha William Blake, uma linha Rimbaud-Apollinaire, uma linha Camões, uma linha romanceiros, etc., linhas essas que o Poeta toma, abandona, retoma, e que, mais do que influências, são linhas de parentesco. (...) Escolher Vinicius foi, finalmente, questão de prazer. Razoável conhecedor da sua obra, só agora tive a oportunidade de me dar conta de quanto ela é importante para a formação duma coisa que se chama gosto, esse gosto que pomos em comer, em amar, em conviver..." [Alexandre O'Neill, in Vinicius de Moraes, O Poeta Apresenta o Poeta, Cadernos de Poesia, D. Quixote, 1969]

"... Tende piedade dos homens públicos e em particular dos políticos
Pela sua fala fácil, olhar brilhante e segurança dos gestos de mão
Mas tende mais piedade ainda dos seus criados, próximos e parentes
Fazei, Senhor, com que deles não saiam políticos também
..."
[VM, in O Desespero da Piedade]

"... Preliminarmente telegrafar-te-ei uma dúzia de rosas
Depois te levarei a comer um shop-suey
Se a tarde também for loura abriremos a capota
Teus cabelos ao vento marcarão oitenta milhas.
..........
Mascaremos cada um uma caixa de goma
E iremos no Chinese cheirando a hortelã-pimenta
A cabeça no meu ombro sonharás duas horas
Enquanto eu me divirto no teu seio de arame ..."
[V.M., in História Passional, Hollywood, Califórnia]

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