segunda-feira, 9 de maio de 2005


Hay-on-Wye - "a capital do alfarrábio" [parte II]

"...Quanto aos alfarrabistas, a organização de Richard Bookshop, com cinco andares, tudo aparentemente bem organizado por temas, secções, países, géneros, etc. quando se procura, melhor, percebe-se que há regras estranhas e a única solução consiste em recorrer aos funcionários, desde que se consiga distingui-los: são tão excêntricos quanto os clientes! A ordem alfabética é respeitada, mas há temas e subtemas e secções especiais (...) Ao mesmo R. Booth pertence o Hay Castle Bookshop, onde, em dependências estranhas (antigas cozinhas, cavalariça, prisões, despensa e casas de guardas) estão vários temas arrumados: fotografia, cinema, teatro, transporte, índios americanos e artesanato.

No sopé do castelo, a mais louca secção: Honesty Books. Ao ar livre, quer chova ou fala sol, estão algumas dezenas de estantes, literalmente a abarrotar: cada livro custa cinquenta pence, mais ou menos cento e vinte escudos. Os clientes podem servir-se como entenderem. Levam o que querem. E pagam, à saída, com moedas numa antiga caixa de esmolas embutida na parede. Não há um único funcionário à vista. Devo dizer que nunca vi tantos livros absolutamente inúteis. Ainda por cima, a cheirar a mofo e humidade. Mas acrescento que sempre lá vi dúzias de clientes, curvados, com ar ligeiramente lúbrico, à procura e, o que é mais curioso, a encontrar qualquer coisa. (...) A maior parte dos alfarrabistas são especialistas. Só Booth e o cinema [Hay Cinema Bookshop] conseguem ser absolutamente generalistas e vender tudo. Cada um tem, em exposição, quatrocentos a quinhentos mil livros! Booth tem akinda, em armazém, a Warehouse, fora da aldeia, uma reserva de mais de seiscentos mil. Os mais pequenos têm entre vinte a trinta mil. Os de média dimensão chegarão aos cem mil (...) Os mais curiosos são os especialistas. Nesses, respira-se um ar próximo do das sacristias e das lojas maçónicas. Os clientes são desconfiados e têm comportamentos estranhos. (...) Os coleccionadores, mais excêntricos, são reais tarados. Podem chegar a comprar milhares de livros que raramente ou nunca abrem, podem nada saber do que compram ou dos autores, mas abem tudo das datas de edição, do encadernador, do couro da capa e das marcas de água do papel (...)

O Festival [de Literatura] realiza-se em Junho (...) Há sessões sobre biografia, viagens, memorialismo, literatura americana, o futuro do romance, literatura e sexo, livros políticos, o que se quiser. À noite, seguem-se os divertimentos: música clássica, cabarets, pura má-língua, meditação transcendental ou simples bebedeira. (...) Segundo P. Florence, discute-se tudo, do mais rebarbativo ao imprevisível. Mas há obsessões recorrentes: «sexo, política, história e jardinagem» (...)

Como não podia deixar de ser, o festival tem os seus inimigos. Alguns nativos não acham graça à invasão anual de dezenas de milhares de intelectuais smart de Londres. Comerciantes e hoteleiros consideram a iniciativa interessante, mas a maior parte dos alfarrabistas não está para aí virada: o seu negócio é de livros usados, não novos. O mais feros adversário é Richard Booth, o primeiro alfarrabista de Hay: «Esse festival é organizado pela máfia dos media e pelos intelectuais socialistas pagos pelo Murdoch. Não ajuda os agricultores locais, não cria nada de durável na aldeia (...) Essa gente vem para aqui, uma cidade de livros em segunda mão, vender livros novos; numa terra de sidra e de cerveja local, bebem champanhe francês; num sítio sossegado e pacífico, trazem milhares de carros e de camionetas. Uma máfia!» ..." [António Barreto, in Grande Reportagem, Janeiro 1997]

[a concluir: O Rei de Hay - Richard Booth]

sábado, 7 de maio de 2005


Hay-on-Wye - "a capital do alfarrábio"

Via ASS lemos, gostosamente, a coluna de JPC na Folha, onde nos conta as aventuras (ao que soubemos depois, com mais 3 portugas, também amadores de papel escrito) em Hay-on-Wye. Lembrámo-nos do excelente texto (e fotografias) de António Barreto publicado na Grande Reportagem, Janeiro de 1997. Fomos à cave e, qual proleta do Tio Patinhas (versão JPP) lá encontramos a referência. Aqui deixamos algumas notas:

"Nesta aldeia [Hay-on-Wye, segundo AB teria menos de mil habitantes], exercem a sua actividade mais de trinta alfarrabistas e várias dezenas de pubs, bares, restaurantes, hotéis e B&B (bed and breakfast). Aqui estão armazenados, para venda, mais de três milhões de livros em segunda mão. A Hay chegam, por ano, dezenas de milhares de turistas, leitores, académicos, comerciantes, jornalistas, investigadores, livreiros, coleccionadores e especialistas de todos os domínios. A receita anual da venda de livros ultrapassa os tês milhões de libras (750 mil contos), à qual se deve acrescentar a hotelaria, mais ou menos doze milhões de libras. Estamos próximos dos quatro milhões de contos directa e indirectamente gerados pelo comércio alfarrabista! Isto, repito, numa aldeia de novecentos habitantes ..."

"...Hay situa-se exactamente na fronteira entre a Inglaterra e o País de Gales. A tal ponto que a sua localização administrativa é contestada: Galeses e Ingleses reclamam-na para si. Os locais não se envolvem nessa luta: pertencem a uns e outros, conforme as vantagens. Alguns acham mesmo que não pertencem a quem quer que seja, são deles próprios, uma terra de ninguém que explora as querelas burocráticas dos outros. E não falta quem tenha declarado a independência de Hay! Até o nome da aldeia traduz a dualidade: Hay-on-Wye para os Ingleses, Tragelli ou Y Gelli para os Gauleses. No tempo dos normandos a aldeia estava dividida em duas partes, a English Hay e a Welsh Hay. Terra de fronteira, teve uma vida previsivelmente agitada: a sua história é rica e, assassinatos políticos, prisões, intrigas, adultérios e vingança. Os seus habitantes ficaram com uma perene reputação de rebeldes: resistiram aos Romanos, aos Galeses e aos Ingleses. A quem viesse ..."

"... Apesar do «progresso», o turismo em Hay é diferente. Amantes da natureza, pescadores, coleccionadores, escritores e leitores formam uma «fauna» menos barulhenta do que as que se vêem noutros sítios (...)
Tudo se passa com uma cerimónia estranha (...) Antes de comprar, a fim de esconder as intenções, os tarados dos livros andam depressa e silenciosamente; depois de carregar os sacos, devagar e sorridentes. Fazem-se negócios na rua, nas esquinas, nos pubs e à mesa do restaurante. Revendem-se, com lucro, livros acabados de comprar mesmo ao lado. Vendem-se livros nas mercearias, na farmácia e no tea-room. Toda a gente sonha com descobertas: o livro raro, a primeira edição raíssima, o autografo de Churchill perdido dentro de um livro ou a gravura original do herói do cricket, W.G.Grace, publicada pela Vanity Fair. Todos esperam encontrar o pequeno tesouro que passou despercebido ao próprio livreiro (...) [António Barreto]

[a continuar: "Alfarrabistas", "O Festival de Literatura" e "O Rei de Hay"]

Locais: Hay-on-Wye / Hay-on-Wye / Bookshops in Hay-on-Wye / Hay on Wye, a world of books / Hay-on-Wye booksellers / Hay on Wye Castles / Hotels and cottages in Hay-on-Wye / "God save the King" [por João Pereira Coutinho]

Boletim Bibliográfico de Luís P. Burnay

Acaba de sair o Boletim nº 25, correspondente ao mês de Maio, do Livreiro Luís P. Burnay, Calçada do Combro, 43-47, Lisboa. Como sempre um conjunto apreciável de livros (509), referentes à literatura, história, trabalhos monográficos, esgotados ou raros e a preços diversos.

Algumas referências: Fontes do Direito Ecclesiastico Portuguez, por Joaquim dos Santos Abranches, Coimbra, 1895 / Cascais. Vila da Corte, de Ferreira de Andrade, 1964 / Memorias Históricas-Estatísticas de alguma Villas e povoações de Portugal, de PW Brito Aranha, 1871 / A Póvoa do Varzim, de Viriato Barbosa, 1937 / Portugal and Galicia ..., The Earl of Canarvon, 1848 / Portas e Arcos de Coimbra, de F.A. Martins de Carvalho, 1942 / Historia panegyrica da vida de Dinis de Mello de Castro primeiro Conde de Galveias ..., por Júlio de Mello e Castro, Lisboa, 1744 / In Illo Tempore: estudantes, lentes e futricas, de Trindade Coelho, 1902 / Soror Mariana a freira Portuguesa, por Luciano Cordeiro, 1891 / Escritos de Camilo, de Júlio Dias da Costa, 1922 / A Democracia Nacional, por Henrique de Paiva Couceiro, 1917 / Os Crimes da Formiga Branca, .... Publ. semanal em folhetos. Edit. Rocha Martins, nº1 a nº5, 1914-15 / A Sertã e o seu Concelho, pelo Pe António Lourenço Farinha, 1930 / As armas brancas do solar de Pindela, por Alfredo Guimarães, 1946 / Os Fuzilados de Outubro, por Fernando Honrado, 1995 [refª a vários elementos da Carbonária Lusitana] / A Casa Nobre de Lázaro Leitão no sitio da Junqueira, de Arthur Lamas, 1925 / Medalhas portuguesas e estrangeiras referentes a Portugal, idem, 1916 / Concelho de Nelas, de J. Pinto Loureiro, 1957 / Heróis, Santos e Mártires da Pátria, de Rocha Martins, XII fasc., s.d. / Terras da Beira: Cernancelhe e o seu alfoz, por Vasco Moreira, 1929 / A Monografia de Alvor [e a Monografia de Estombar], por F. Xavier d?Athaíde Oliveira, 1907 [1911] / Origem infecta da ralaxação da moral dos denominados Jesuítas ..., Lisboa, 1771 / Portugal Económico, Monumental e Artístico, IV vols, s.d. / A Minha Terra: breves apontamentos sobre Romariz, pelo Pe. M. Fernandes dos Santos, 1940 / Do Direito Heráldico Português, pelo Conde de São Payo, 1927 / Memórias para a vida intima de José Agostinho de Macedo, por Inocêncio Francisco da Silva, 1898 / Vida do venerável D. Fr. Bartolomeu dos Martyres da Ordem dos Pregadores ..., por Frei Luís de Sousa, 1760, II vols / Ásia Portuguesa, de Manuel Faria e Sousa, Porto, 1945, VI vols / Torres Vedras Antiga e Moderna, de Júlio Vieira, 1926 / Da Ásia de João Barrros e Diogo Couto. Nova edição, 1778-1788, XIV vols / O Amor em Visita, de Herberto Helder, ed. Contraponto, s.d. / Poemacto, idem, ed. Contraponto, 1961

sexta-feira, 6 de maio de 2005


Aniversário do Abrupto

"Este retrato vosso é sinal
ao longe do que sois, por desemparo
deste olhos de cá ...
" [Sá de Miranda]

Motivo de felicitação. O Abrupto comemora o segundo ano de bem aventuranças, entre memórias e testemunhos virtuosos. Fonte de abundância discursiva, pouco acomodado às normas do politicamente correcto, impetuoso na análise e parco nos lamentos, JPP parece olhar o mundo, timidamente, como se de um imenso tumulto de tratasse. Aqueles que à sombra da bênção das instituições se procriam entendem que é pura insensatez. Puro engodo ornamental. Caso passional. Pouco complacentes, tais personagens nunca compreenderão a vida nas (das) palavras. Como o poderiam?

O desterro político de JPP, engolfado entre colunas de jornais e o blog, é a nossa ventura. A sua afoiteza intelectual, a nossa glória. O seu cativeiro partidário a nossa fraqueza. E a sua desdita. Porque JPP não tem nada em comum com tão estranha gente, porque "não há fidelidade que não seja pessoal" [H.H.]. Assim o cremos.

Muitos parabéns, acompanhados de um ror de inveja por não termos sucateiros tão ilustrados e felizes no seu trabalho. É a vida!

[foto: Vilamoura, Feira do Livro, Agosto 2001]

terça-feira, 3 de maio de 2005


Hugo Gellert [n. 3 Maio de 1892-1985]

Locais: Hugo Gellert / Hugo Gellert: índex / Hugo Gellert: History of a Controversy / A Depression Art Gallery

Niccolo Machiavelli [n. 3 Maio de 1469-1527]

"Todo aquele que, conquistando um Estado habituado a viver livre, não o destrói, deve esperar a própria destruição ... Qualquer que seja a precaução tomada, faça-se o que se fizer, se não se dissolver o Estado, se não se dispersar os habitantes, ver-se-á que na primeira oportunidade lembrarão, invocarão a sua liberdade, as suas instituições perdidas, esforçando-se por recuperá-las ..." [Maquiavel]

"... Bem se deve compreender que não é possível a um príncipe, e sobretudo a um novo príncipe, observar em seu proceder tudo quanto permite sejam os homens considerados pessoas de bem, e que muitas vezes é ele obrigado, para manter o Estado, a agir contra a humanidade, contra a caridade, contra a própria religião. Por conseguinte, é preciso que tenha o espírito bastante flexível para se voltar em todas as direcções, conforme o exigem o sopro e os acidentes da fortuna; é preciso, como se disse, que, tanto quanto possível, não se afaste do caminho do bem, mas que, se necessário, saiba entrar no do mal ..." [idem]

Locais: Machiavelli / Niccolo Machiavelli / Niccolò Machiavelli (1469-1527) / Teoria Política

[Fahrenheit 451 em corrente incendiária]

Seguindo o farol da tradição e em obediência salutar à missiva d'La Force des Choses, aqui deixamos sem empacho os nossos ditos sentenciosos, com todas as licenças necessárias. Gratia Plena.

1. Não podendo sair do Fahrenheit 451, que livro quererias ser?
- Aquele que fosse tão simples como a textura de um lábio e que nos olhe luzente como um místico. Estamos a falar, evidentemente, nos Cantos de Maldoror. Hoje, estamos decididamente Lautréamont. Como alternativa gentil, de prazer e de luxúria, e em honra do valente Montag, preferíamos ser mais "um cacto no cu da arte"". Reinventar o livro livrado era o que era, mas sabemos que acabamos todos, um dia, no fogareiro.

2. Já alguma vez ficaste apanhadinho por uma personagem de ficção?
- Desde o projecto de acordar até ao dormir nocturno temos sentimentos naturais. O Fritz cá de casa é que não entende. É a vida! Confessamos que pela manhã estamos muito Nero Wolfe à volta dos ovos e do pão torrado. Pela tarde transfiguramo-nos em Lucas Corso (d'O Clube Dumas) em louvor de velhas viúvas com bibliotecas em fundo. Pode ser que uma qualquer Justine nos atravesse pelo caminho e que de repente se solte o Pursewarden que há em cada um de nós, mas nunca fiando. Ao fim da tarde, na Benard, na Mexicana ou no Casino da Figueira balança-se entre o Jean-Marc e o Duc no Fim-de-Semana, mas cedo corremos a ser Jack London. Maior ventura não pode haver.

3. Qual foi o último livro que compraste?
- Há muito que não compramos um livro. Resgata-se bibliotecas, afaga-se papéis impressos, capricha-se nas lombadas. Da última colheita registe-se alguns livros de linhagens, a Bibliografia Coimbrã de Pinto Loureiro, os Anos Vinte em Portugal do José-Augusto França, a Formação Humana no Projecto da Modernidade, de Cabral Pinto, o ultimo do Eco e Longe de Manaus do Francisco.

4.Qual o último(s) livro(s) que leste?
- As Aranhas Douradas de Rex Stout; 5 Aproximações de Yvette Centeno e o livro do Cabral Pinto, atrás citado.

5. Que livros estás a ler?
- Com gosto e para cura espiritual atacamos no antiquíssimo Maçonaria Universal do José Bernardo Ferreira (1921); folheamos deslumbrados o Jornal A Luz (1918-1928); soletramos A Literatura Clandestina de Oliveira Marques e acompanhamos aos tropeções The Plot Against America, de Philip Roth.

6. Que livros levarias para uma ilha deserta?
- Tal instrução administrativa era uma solenidade curiosa. Em abono da humanidade e meditando no que nos é dito no Fahrenheit 451 ["a temperatura a que um livro se inflama e consome"] levaria o Tratado d'Agricultura Theorico-Pratico do Dr. João António Bella, o Catálogo da Biblioteca do Dr. Rodrigo Veloso (13.000 títulos a recordar) e, evidentemente, a Obra Poética de Herberto Helder. Bastava.

7. A quem vais passar este testemunho (três pessoas) e porquê?
- Ao António do Opiniondesmaker, para o castigar por ser anti-lampião; ao Aly do Letteri Café, porque de facto "a vida não é um armário" e à nossa Desassossegada, por estar demasiado recatada. Saúde e Fraternidade.

domingo, 1 de maio de 2005



1º de Maio

A administração cede, ali no lado esquerdo musical, em sinal de modesto recolhimento proletário, a voz de culto de José Mário Branco. A manejar a palavra e para o que vier.

Um 1º de Maio feliz.

O Cardeal

"O futuro já não é aquilo que era" [P. Valéry]

Eis que a fábula de um Ratzinger (Cardeal) tomado como crítico radical da razão, sujeito supostamente alapado ao projecto da modernidade, subversivo & provocador na reconstrução do "projecto inacabado" da modernidade se torna o consolo, sustento e redenção da classe lusa opinadora, de finos costados liberais. O entusiasmo febril do indígena quando, após espreitadela a velhos canhenhos e sucumbido pelo cansaço de viçosas leituras filosóficas, tomou conhecimento do elogiado debate Habermas-Ratzinger mostra-nos que "razão como vontade da razão" [Habermas] pode não ser totalmente libertadora.

Um Ratzinger anti-liberal e anti-moderno, clamando contra a "abolição do homem" e pela "racionalidade da fé"; recusando a "auctoritas legislativa" porque fonte paradoxal do "domínio da maioria"; defenestrando Adam Smith por motivo que "utilitas, non veritas facit pacem"; fazendo a apologia da fé contra a política, sem lugar a qualquer promiscuidade, e ao mesmo tempo tecendo loas aos "gloriosos políticos cristãos" saídos do primeiro pós-guerra [cf. Ratzinger], o que não deixa de ser estranho se tivermos em conta Franco e Salazar; em defesa de uma lei que sendo "realmente direito" o seja pelo "ordenamento justo nas relações recíprocas em face da criação e do Criador" e "da sua verdade" [idem]; acentuando a fé e o seu mistério como salvação da razão; um Ratzinger assim ressituado fora do campo da desconstrução da modernidade e ao mesmo tempo tão louvado pelos liberais lusos, não deixa de ser curioso e grosseiramente contraditório.

A história profética do Cardeal é que não há salvação fora da Igreja Católica. A gramática Ratzingeriana ao pretender impedir a retirada do homem da história fá-lo cair definitivamente nas mãos de Deus. Compreende-se, portanto, que a "nova" querelle, em torno da "razão, liberdade, igualdade e justiça", assim suscitada, nada tenha que ver com uma qualquer Aufklarung, pois o tribunal da razão mais não é, chez Ratzinger, que a extraordinária tarefa de refundir a razão com a fé e o eterno regresso à sua Revelação primitiva. Segundo os seguidores do Cardeal a "morte de Deus", ao que parece, tem os dias contados. Assim como os conceitos de "secularização, crítica, progresso, revolução, desenvolvimento e emancipação". A dogmática está, pois, de volta e em força.
[O que é o tempo?]

"Não houve nenhum tempo em que não fizésseis alguma coisa, pois fazíeis o próprio tempo. Nenhuns tempos Vos são coeternos porque Vos permaneceis imutável; e se os tempos assim permanecessem, já não seriam tempos. Que é pois o tempo? Quem poderá explicá-lo clara e brevemente? Quem o poderá apreender mesmo só com o pensamento, para depois nos traduzir por palavras, o seu conceito? (...) O que é, por conseguinte o tempo? Se ninguém mo perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer esta pergunta, já o não sei. Porém atrevo-me a declarar com certeza que se nada passasse, não haveria tempo passado, e se nada sobreviesse não haveria tempo futuro, e se agora nada houvesse, não existiria o tempo presente.
De que modo existem aqueles dois tempos, o passado e o futuro, pois que o passado já não existe e o futuro ainda não veio? Quanto ao presente, se fosse presente, já não seria tempo, mas eternidade. Pois se o presente, para ser tempo, necessariamente tem de passar para o pretérito, como podemos afirmar que ele existe, se a causa da sua existência está em esse tempo deixar de existir? Para que digamos que o tempo só verdadeiramente existe, porque tende a não ser"

[Santo Agostinho, As Confissões, XI, 14]

Anunciação Futebolística

Hoje alimentámos virtudes numa fornalha ardente. Devotos soubemos honrar a tribo. Fomos inesgotáveis. Cerimoniosos. Sem fadiga. As festas na Luz, Coimbra e Figueira da Foz foram um tumulto no nosso coração. Uma paixão consumada. Um dia heróico. Uma noite memorável. Até ver!

sábado, 30 de abril de 2005


Félix Guattari [n. 30 Abril de 1930-1992]

"O desejo é sempre extraterritorial, desterritorializado, desterritorializante. Ele passa por cima e por baixo de todas as barreiras" [Felix Guattari]

"... existe para o homem a possibilidade de ele mesmo ser o fundador de sua própria lei? Ou estará condenado a permanecer sempre em rede?" [idem]

"As máquinas técnicas funcionam, evidentemente, com a condição de não serem estragadas. As máquinas desejantes, ao contrário, não cessam de se estragar funcionando; só funcionam quando estragadas. A arte utiliza com frequência esta propriedade, criando verdadeiros fantasmas de grupo que curto-circuitam a produção social com uma produção desejante, e introduzem uma função de estrago na reprodução das máquinas técnicas" [Deleuze e Guattari, O Anti-Édipo]

Locais: Félix Guattari / Left and Right Readings of Deleuze-Guattari / Félix Guattari militant / De la pluridisciplinarite a la tansdisciplinarite / A subjetivação subversiva / Entretien avec Félix Guattari

quarta-feira, 27 de abril de 2005


Choque Tecnológico

"Não deveis enganar-vos: cada verso
tem um selo fraterno caminhando
para a branca cidade sob o sol
" [Fernando A. Pacheco]

Eis que uma formidável ufania, genuinamente encomiástica & pacientemente tecno, nos acometeu neste nosso oficio memorialista. Em devoção extremada & em penitência Socrática, daqui lançamos, a soldo da moral pós-Ratzingeriana e associando-nos à boa obra do feytor & beato José Manuel Fernandes, o ferrete do Choque Tecnológico. Há que dizer que este arrebatamento imprevisto não é mera oratória sacra. Nesta harmonia celestial blogosférica sabe-se que é mister acatar a razão do "corpo falante" e, deste modo, os trabalhos profanos merecem a nossa total observância.

Até o cansaço & os anjos do Gates o permitirem tendes ali, do lado esquerdo da pedra, a âncora da vossa salvação. Hoje (e para a eternidade) a sagrada Chavela Vargas. Depois, outros vícios e maledicências musicais.

Concluindo: Vos estis lux mundi & sic luceat lux vestra coram hominibus

Pedro Oom [1926 - m. 27 de Abril 1974]

"Alegra-me ser todas as coisas e as sombras que elas projectam
ser a sombra dos teus seios e da tua boca
o criado de smoking branco que te agita os cabelos
para um cocktail estimulante e fresco
a mesa onde passo a ferro o teu corpo
as espáduas as coxas a curva macia dos joelhos
alegra-me ser o contorno da tua nuca e o binário motor dos
teus braços ...
" [Pedro Oom, in O Homem Bisado]

"Poesia não é uma medalha para por no peito dos tiranos mas uma imensa solidão feita de pedras, onde o despotismo pode encomendar o ataúde. Cada um de nós odeia o que ama. Por isso o poeta não ama a poesia que é só desespero e solidão mas acalenta ao peito as formigas da revolta e da rebeldia, que todos os déspotas querem submissas e procriadoras. Só os voluntários da miséria e da submissão patriarcal querem a poesia na Arca da Aliança com a tradição pacóvia e regionalista dos pretéritos dias, glórias patrioteiras, heroicidades frustres, pirataria ignara. Todo o verdadeiro poeta despreza o pequeno monte de esterco onde o dejectaram no planeta e a que os outros chamam Pátria, e só ama os grandes continentes mares e oceanos da liberdade e do amor ..." [Pedro Oom, Poema, in Grifo, 1970]

Locais: Pedro dos Santos Oom do Vale / Actuação Escrita [Poema] / Permanência da Anarquia: a propósito de uma Antologia do Surrealismo Português

segunda-feira, 25 de abril de 2005



Bom Dia!

"Esta é a madrugada que eu esperava
0 dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo"

[Sophia Mello Breyner]

sexta-feira, 22 de abril de 2005


XLIX Catálogo da Livraria Moreira da Costa

A Livraria Moreira da Costa (Rua de Avis, 30, Porto) publicou o Catálogo do Mês de Abril, que pode ser consultado on line.

Algumas referências: Origem e Evolução dos Movimentos de Capitães, de Dinis de Almeida, 1977 / Annuario Portuguez Scientifico, Litterario, ..., Typ. Universal, 1864 / Monarchicos e Republicanos, de Homem Christo, 1928 / Divina Voluptuosidade (poemas), por Jaime Cortesão, 1923 / Origem das Procissões da cidade do Porto, pelo Pe Luís de Sousa Couto, 1936 / Nas Encruzilhadas do Mundo e do tempo [Fernando Pessoa e os do seu tempo], CEP, s.d. / Mémoires de Chirurgie Militaire, et Campagnes, de D. J. Larrey, Chez J. Smith, 1812-1817, IV vols / O Renegado, por Gomes Leal, 1881 / A Traição, de Gomes Leal, 1881 [trata-se da carta que G.L. mandou a El-Rei D. Luiz sobre a venda de Lourenço Marques] / Magalhães Lima e a sua Obra, por Archer de Lima, 1911 / Os Portos Marítimos de Portugal, de Adolfo Loureiro, 1904-1924, VII vols / Conduta das operações Coloniais, por Jorge Botelho Moniz, 1944 / A Vida turbulenta do Padre José Agostinho de Macedo / Almas e Estrelas, por Fernando Pessoa, Livraria Pax, Braga (dir. de Petrus), s.d. / Antologia de Salazar, dir. de Manuel Dias da Fonseca, textos e cord. De Eduardo Freitas da Costa, 1966

quinta-feira, 21 de abril de 2005


John Maynard Keynes [m. 21 Abril 1946]

"À memória de J. M. Keynes

Só as palavras que não são.
Sobretudo as das mãos.

- Porque as mãos não traem!"

[J. P. Feio, D'Après Marceau, in Two Poetical Tracts & a Post-Scriptum, 2003]

Figueira da Foz - Manda a Factura

Ao lado dos Manos da blogosfera Figueirense & Contra os Aumentos da tarifa da Água. Presente!

[Cardeal Ratzinger]

"Liberalismo e marxismo tinham encontrado um terreno mútuo de mutuo entendimento ao contestarem à religião tanto o direito como a capacidade de plasmar a res publica e o futuro comum da humanidade (...)

[sobre a Droga] "... a droga é uma forma de protesto contra a situação de facto. Quem a toma recusa resignar-se à pura e simples realidade de facto [nota: o "mundo mau da factualidade", este mundo "inteiramente marcado pelo mal" (cf. a Bloch, citado por Ratzinger] Está à procura de um mundo melhor (...) A humilde e paciente aventura da ascese, que, a curtos passos para o alto, se avizinha do Deus que para nos Se inclina, é substituída pelo poder mágico, pela magia reveladora da droga ..."

[sobre o Terrorismo] "A origem do terrorismo é estreitamente afim à da droga: também aqui se encontra o protesto contra o mundo tal como é, e o desejo de um mundo melhor. Na raiz, o terrorismo representa uma forma de exasperação do empenhamento moral, em certa medida uma espécie de moralismo (...) Na verdade, não é por acaso que o terrorismo teve início nas universidades, sob a influência das teologias modernas, entre jovens de extracção fortemente religiosa. O terrorismo da primeira hora foi um apaixonado impulso religioso desviado para a dimensão mundana, uma expectativa messiânica transposta para o fanatismo político (...) Deus já não é considerado como sujeito realmente operante (...) A náusea pelo vazio espiritual e moral da nossa sociedade, a aspiração ao Totalmente-Outro, a exigência de uma salvação sem condições, sem barreiras e sem limites; eis ... a componente espiritual do fenómeno do terrorismo (...) [na intelectualidade moderna] não é o ser mas o que há-se ser que fundamenta a moral. O Homem há-de projectá-la a partir de si. O único valor moral que efectivamente existe é constituído pela sociedade futura (...) Daqui deriva que o novo critério moral tenha esta definição: moral é o que serve ao advento da nova sociedade (...) A moral passa a ser «científica»: já não tem como fim «um fantasma» - o Paraíso -, mas sim uma entidade ao alcance da iniciativa humana: a nova era. Deste modo, moral e religião passam a ser algo de «positivo» e de «científico». Que mais será preciso? (...) Só uma análise mais atenta nos fará descobrir em tudo isto o pezinho do Diabo e o eco do seu gargalhar ..."

"... o fenómeno moral perdeu a sua evidência. Na sociedade moderna, já só uma pequena porção de homens acredita na existência de mandamentos divinos (...) A única função que pode talvez ficar para Deus é ter dado início ao cosmos com o Big Bang. Que Ele opere no meio de nós e que o Homem viva na dependência da sua vontade é coisa que parece à maioria como concepção de Deus ingenuamente antropomórfico ..."

"É característico do pensamento formado sobre o modelo das ciências naturais julgar que entre o mundo dos sentimentos e o mundo dos factos se abre um abismo (...) Atribuir ao átomo, fora das sua características matemáticas, qualquer qualidade que seja, por exemplo, de natureza moral ou estética, é considerado, nesta lógica, pura fantasia. Esta redução da natureza a dados de facto exaustivamente penetráveis e também manipuláveis, tem, ... por consequência que nenhuma mensagem moral vinda do circulo do nosso Eu pode ser encontrada. O fenómeno moral e o religioso são considerados como pertencentes à esfera da subjectividade; não têm a mais pequena cidadania na dimensão da objectividade (...) A verdade é que, submetido a tais processos cognitivos, o Homem deixa de ser Homem. Também ele ... terá de ser tido por mera factualidade (...)

"De facto, a Natureza não é ... obra do acaso e das regras do seu jogo, mas sim Criação. Nela Se exprime o Creator Spiritus. Por isso não temos só leis naturais no sentido de determinismo psico-físico: a lei natural propriamente dita é ao mesmo tempo (também) lei moral ..." [Cardeal Ratzinger, in A Igreja e a Nova Europa, 1999]