segunda-feira, 9 de maio de 2005
Hay-on-Wye - "a capital do alfarrábio" [parte II]
"...Quanto aos alfarrabistas, a organização de Richard Bookshop, com cinco andares, tudo aparentemente bem organizado por temas, secções, países, géneros, etc. quando se procura, melhor, percebe-se que há regras estranhas e a única solução consiste em recorrer aos funcionários, desde que se consiga distingui-los: são tão excêntricos quanto os clientes! A ordem alfabética é respeitada, mas há temas e subtemas e secções especiais (...) Ao mesmo R. Booth pertence o Hay Castle Bookshop, onde, em dependências estranhas (antigas cozinhas, cavalariça, prisões, despensa e casas de guardas) estão vários temas arrumados: fotografia, cinema, teatro, transporte, índios americanos e artesanato.
No sopé do castelo, a mais louca secção: Honesty Books. Ao ar livre, quer chova ou fala sol, estão algumas dezenas de estantes, literalmente a abarrotar: cada livro custa cinquenta pence, mais ou menos cento e vinte escudos. Os clientes podem servir-se como entenderem. Levam o que querem. E pagam, à saída, com moedas numa antiga caixa de esmolas embutida na parede. Não há um único funcionário à vista. Devo dizer que nunca vi tantos livros absolutamente inúteis. Ainda por cima, a cheirar a mofo e humidade. Mas acrescento que sempre lá vi dúzias de clientes, curvados, com ar ligeiramente lúbrico, à procura e, o que é mais curioso, a encontrar qualquer coisa. (...) A maior parte dos alfarrabistas são especialistas. Só Booth e o cinema [Hay Cinema Bookshop] conseguem ser absolutamente generalistas e vender tudo. Cada um tem, em exposição, quatrocentos a quinhentos mil livros! Booth tem akinda, em armazém, a Warehouse, fora da aldeia, uma reserva de mais de seiscentos mil. Os mais pequenos têm entre vinte a trinta mil. Os de média dimensão chegarão aos cem mil (...) Os mais curiosos são os especialistas. Nesses, respira-se um ar próximo do das sacristias e das lojas maçónicas. Os clientes são desconfiados e têm comportamentos estranhos. (...) Os coleccionadores, mais excêntricos, são reais tarados. Podem chegar a comprar milhares de livros que raramente ou nunca abrem, podem nada saber do que compram ou dos autores, mas abem tudo das datas de edição, do encadernador, do couro da capa e das marcas de água do papel (...)
O Festival [de Literatura] realiza-se em Junho (...) Há sessões sobre biografia, viagens, memorialismo, literatura americana, o futuro do romance, literatura e sexo, livros políticos, o que se quiser. À noite, seguem-se os divertimentos: música clássica, cabarets, pura má-língua, meditação transcendental ou simples bebedeira. (...) Segundo P. Florence, discute-se tudo, do mais rebarbativo ao imprevisível. Mas há obsessões recorrentes: «sexo, política, história e jardinagem» (...)
Como não podia deixar de ser, o festival tem os seus inimigos. Alguns nativos não acham graça à invasão anual de dezenas de milhares de intelectuais smart de Londres. Comerciantes e hoteleiros consideram a iniciativa interessante, mas a maior parte dos alfarrabistas não está para aí virada: o seu negócio é de livros usados, não novos. O mais feros adversário é Richard Booth, o primeiro alfarrabista de Hay: «Esse festival é organizado pela máfia dos media e pelos intelectuais socialistas pagos pelo Murdoch. Não ajuda os agricultores locais, não cria nada de durável na aldeia (...) Essa gente vem para aqui, uma cidade de livros em segunda mão, vender livros novos; numa terra de sidra e de cerveja local, bebem champanhe francês; num sítio sossegado e pacífico, trazem milhares de carros e de camionetas. Uma máfia!» ..." [António Barreto, in Grande Reportagem, Janeiro 1997]
[a concluir: O Rei de Hay - Richard Booth]