Ensino: a destruição final (
conclusão)
Interessa não esquecer, para que a arrogância de uns e a vã glória de outros não sejam recompensados, um ponto crucial em toda esta questão da análise da nova proposta de alteração do
ECD, a saber: o lugar que toma a
autoridade da competência do docente (e da sua
legitimação), baseada em conhecimentos técnicos ou "
poder do especialista" - aquilo que uns denominam por
poder cognoscitivo [
Simões, 1980] - e o modo como este poder, lido através da nova proposta em marcha pela ministra,
é diluído, pela partilha na estrutura escolar e pela avaliação da prática profissional dos professores, através do chamado
poder normativo,
autoritativo e
remunerativo, topos da legitimação de todo o poder. E antever de que modo
isso tudo se conjuga para que se possa alguma vez pronunciar, com a maior das bondades, que se está presente uma mudança educacional visando uma
Escola de qualidade, de rigor e moderna.
Estamos a falar, evidentemente, das
bases do poder do professor, aqui tomadas de diferentes formas (do
pessoal ao
cognoscitivo, do
normativo ao
autoritativo) e que
Formosinho Simões em tempos interpretou. Diga-se que existe uma vasta bibliografia sobre a matéria e que parece esquecida pela turbulência das decisões governativas. Faz tempo que o famoso "
Relatório Braga da Cruz" (
Análise Social,
1988, vol. XXIV), poderoso e exaustivo levantamento da situação do professor em Portugal, mandado fazer por
Roberto Carneiro, assegurava que "
os professores são agentes privilegiados da reforma que, por isso mesmo, deve começar por eles e deve ser levada a cabo com eles". De lá para cá instalou-se o vazio no
comprometimento,
motivação e
colaboração dos professores na reforma educativa. O ministério da educação adoptou o
autismo como prática existencial e qualquer regulamentação exarada nunca teve em conta o debate e a participação dos docentes em sede de escolas. Percebe-se, assim, a necessidade que têm a ministra
Maria de Lurdes Rodrigues de insultar professores, sindicatos e de estes últimos zurzirem na ministra. Não podem existir uns sem os outros, porque
são a face da mesma moeda. Por isso, a diversão comunicativa da senhora ministra é não só lamentável, como desnecessária.
Dissemos que se deveria questionar o modo como as "
bases do poder do professor" são entendidas na nova proposta. Acontece que o discurso da Ministra, inebriado no estudo da organização escolar a partir da
sociologia das organizações e das
profissões, tem em conta somente a racionalidade e eficácia (esse conceito extraordinário) da organização escolar, desconhecendo que o que toma teoricamente é
uma parte do saber das organizações e não a própria ciência em si. Não admira que nessa tentativa (organizacional) de determinar o tipo de cooperação entre os intervenientes escolares, em que forçosamente estará presente a
autonomia de decisões e onde deve ser assumido
divergências de interesses, esteja sempre
ausente a análise das estruturas e das relações de poder. E quando é assim, subsiste a tentação de começar do zero, fazendo-se "
tábua rasa" dos conhecimentos e competências, laboriosamente adquiridos pelos profissionais [
José Matias Alves, 2006]. E que é bem evidente na proposta.
Assim, quer seja pelo fim da
carreira única (sem fundamentação teórica pertinente que se notasse) e a instituição de diferenciações profissionais, sem um mecanismo credível de avaliação do mérito (até porque a este está reservado um sistema de
cotas de matriz economicista); quer pela assumpção de uma
avaliação anual do desempenho, baseado na mais burocrática das modalidades e na mais doce confusão dos interesses; quer pelo
aumento da componente lectiva (coisa inacreditável em educação) e da não-lectiva, transformando o docente num
proletário do eduquês, pelo que deixará de estudar e investigar conteúdos científicos (coisa maldita em eduquês) ou pedagógicos; quer pela
desvalorização remunerativa agora proposta (tudo é considerado horas não-lectivas e, como tal, não pagas) que imobilizará definitivamente os docentes nas funções a desempenhar; quer pela introdução na avaliação do desempenho dos docentes da
figura dos pais, tornando-a de ordem meramente normativa (aqui entendida na avaliação da função de socialização. Coisa que "
guru" da politica educativa
José Manuel Fernandes, por ignorância, desconhece) e não de teor cognoscitivo; por tudo isso em conjunto estão definitivamente
alteradas as bases do poder do professor, desvalorizando-se a profissão pela natureza
omnipotente do poder normativo, autoritativo e remunerativo sobre
critérios de natureza científica e técnica. Se pensarmos, como nos diz
J. F. Simões, que "
a profissão docente é das raras que tem por objectivo transmitir a própria base do seu poder", isto é
conhecimentos que outro não tem, então é evidente que o ensino bateu no fundo. E a inquietação, por parte de gente séria, ganha todo o sentido. Sem surpresas!