sexta-feira, 14 de novembro de 2003

MARÉ NEGRA DO "PRESTIGE" - UM ANO DEPOIS

















Maré negra do 'Prestige' - Um Ano Depois


"Conheço o sal que resta em minhas mãos
Como nas praias o perfume fica
Quando a maré desceu e se retrai.
" [Jorge de Sena]

Dias Estranhos / La Hispaniola / Lembra-te / Nunca Mais / Burla Negra

quinta-feira, 13 de novembro de 2003

GNR, O IRAQUE, JOSÉ MANUEL FERNANDES & CIA



1. Alapados na secretária, copulando nas teclas, os [José Manuel] Fernandes & Cia estão num caminho coerente: nunca levantam as nádegas para a acção. Ainda não nos esquecemos do que expressavam sobre a guerra colonial. Estamos avisados.

2. Mesmo quando dizem: "on ne fait pas des omelletes sans casser des œufs", não nos assustamos, pois sabemos que é dito por manequins reformadores, embora lhes compremos os jornais, pois gostamos do cheiro da tinta tanto como os Fernandes & Cia suspiram pelo roncar das armas.

3. É falso que o problema do Iraque seja "nosso". Ainda não recebemos a primeira tranche em petróleo. Suspirar pela pátria é insultar a totalidade dos seus cidadãos, pois nunca vimos o "motor que produz a luz". Podem anotar.

4. Sabemos que a nossa GNR é fantástica e por isso lhes enviamos felicidades, mas estamos muito assustados. E, por isso, "nem um só grito sairá dos nossos lábios". Continuamos muito assustados.

5. Finalmente, dizemos, que o único responsável pelo que de bom ou mau acontecer aos agentes da GNR, tem um nome: José Manuel Durão Barroso. Não temos metafísica de míope.

AUTORIDADE E LIBERDADE














..........
Liberdade
A liberdade conhece-se pelo seu fulgor.
Quatro homens livres não são mais liberdade do que um só. Mas são mais revérbero no mesmo fulgor.
Trocar a liberdade em liberdades é a moeda corrente do libertino.
..........
Ser-se livre é possuir-se a capacidade de lutar contra o que nos oprime. Quanto mais perseguido mais perigoso. Quanto mais livre mais capaz.
Do cadáver dum homem que morre livre pode sair acentuado mau cheiro – nunca sairá um escravo.
Autoridade e liberdade são uma e a mesma coisa.

[Mário Cesariny de Vasconcelos]

O REGRESSO DOS LENTES


"Serás flagelado por estar certo e por estar mal, e dói de ambas as vezes - mas nunca tanto quando a certeza te assiste" [Hunter Thompson]

Entendamo-nos: as revindicações do estudantariado fazem rir. Já antes o dissemos. Mas, a confiar no que é dito, parece que a rapaziada de Coimbra, em recreio prolongado, corre tudo a cadeado, feliz no incêndio dos seus corações. Frenéticos, depois de copiosa noite pela Alta, instalam-se perplexos junto à Porta Férrea, em acampamento suspicaz. Ah! que a poesia se deve fazer madrugando e dar vida por uma ideia, pode ser uma luzidia questão. Anuncia-se, pois, tempos difíceis em Coimbra, que a liberdade pode ser "como uma corrente de ar", mas já não se pode dizer que está tudo por fazer.

Porém, não se trata, aqui, de aceitar ou não a luta dos estudantes universitários, pois não cabe a nós "decretar que é apenas aqui ou ali que ela pode brilhar". Mas somente assinalar o regresso dos Lentes à vetusta Universidade, vindos do aconchego das suas tocas, para dar a lição num corps-a-corps de muita pedagogia, com direito a patrocínio radiofónico e com vários clichés à mistura, à sombra da velha Universidade. Que lição a de João Loureiro, que saudades de Coimbra!

Vede o espectro do lente a pairar sobre a Academia, ali junto à Porta Férrea. Vede o insólito da prelecção do Lente nesta outonal tribuna, sem que se vislumbre qualquer movimento nas bancadas corridas, nem se ouça qualquer manifestação nas coelheiras atulhadas - como garantem os jornais e as rádios. Vede! E nós a estremecer ... de espanto! Que saudade dos mysterios de Coimbra!

terça-feira, 11 de novembro de 2003

ANTÓNIO MARIA LISBOA [1928-1953]




Morre em Lisboa, 11 de Novembro de 1953

Nasceu em Lisboa a 1 de Agosto de 1928. Frequenta em 1942 a António Arroio onde contacta com Vespeira e Pomar. Tem por companhia, então, Risques Pereira, mas também Alves Redol e Irene Lisboa. Forma em 1947, com Pedro Oom e Henrique Risques Pereira um grupo à parte do grupo surrealista de António Pedro, O'Neill e José Augusto França. Parte para Paris em 1949, tomando contacto com a Egiptologia e o Ocultismo. Posteriormente, é internado num sanatório perto de Coimbra, acabando pouco depois por falecer em Lisboa, com 25 anos de idade.

"... Nunca o caminho percorrido é o mais acertado logo que reavemos a nossa capacidade de auto-critica e nos imaginamos pelo outro que não percorremos. O percurso que não fizemos é sempre melhor, e o melhor que teríamos feito, só porque se pensa que se se pensasse não se faria. Nós sabemos: somos um erro - mas a consciência disso isola-nos do erro alheio. Qualquer que seja a conduta humana não é falsa nem verdadeira - É (embora se possa pensar e sentir sempre errada)..." [AML, in Erro Próprio, 1952]

"... o perigo não nos vem da morte mas da vida. A morte é uma consequência do viver ou do viver demasiado. A força da morte é metafísica, a da vida é real. Não é a morte que mata a vida, mas esta que vai morrendo..." [AML & HRP]

"............
e depois eu te conheço de novo numa rua isolada
minhas pernas são duas árvores floridas
os meus dedos uma plantação de sargaços

a tua figura era ao que me lembro
da cor do jardim" [AML, Z]

Algumas Obras: Ossóptico (Coimbra, 1952) / Erro Próprio (conf.- manifesto, 1952) / A Afixação Proibida. Primeira Comunicação Pública do Movimento Surrealista (colab., Contraponto, 1953) / Isso Ontem Único (Contraponto, 1953) / A Verticalidade e a Chave (Contraponto, 1956) / Exercício Sobre o Sonho e a Vigília de Alfred Jarry, Seguido de O Senhor Cágado e o Menino (Ed. Gráfica Portuguesa, 1958) / Poesia (Antologia, Guimarães, 1962) / Poesia de António Maria Lisboa (A & Alvim, 1977)

segunda-feira, 10 de novembro de 2003

NOS 90 ANOS DE ÁLVARO CUNHAL



Cunhal é demasiadamente importante para ser esquecido. Goste-se ou não. Não é possível fazer a história politica, social e cultural da última metade do século XX em Portugal, sem encontrar a sua presença no debate das ideias estéticas e literárias que percorreram as principais correntes literárias e políticas portuguesas. Mesmo que, nalguns casos, não esteja aí presente. Mesmo que não tenha feito obra ou corpo maior. Ou até por isso mesmo. Não nos referimos, evidentemente, a Cunhal como teorizador da revolução democrática e nacional ou na luta pelo socialismo, mas das suas posições ideológicas face à arte e à sua universalidade.

Não esteve só nessa luta em torno de uma arte que exprima uma "tendência histórica progressista", numa arte e literatura que coloque o "social" muito antes do "estético", numa arte "útil" que acompanhe a natureza reflexiva dos movimentos sociais progressistas. Com ele, estiveram Mário Dionísio, José Bacelar, Manoel Mendes, Rodrigo Soares, António Ramos de Almeida, Joaquim Namorado, e outros mais, que n'O Diabo, Sol Nascente, Seara Nova ou na Vértice "fustigaram" presencista (vidé a critica ao suposto "umbiguismo" de Régio) e os que lhe seguiram. As denúncias e as polémicas constantes marcaram a partir dos anos 40 toda a matriz do denominado movimento neo-realista e o movimento estético português.

"... a arte está indissolúvel e inevitavelmente ligado à vida social, que a obra de arte é um elemento integrante da sociedade, e que numa obra de arte existem reflexos e significações da vida social explicitados ou não. Esta realidade tem sido sintetizada com a expressão «conteúdo» da obra de arte. Outra realidade objectiva é que na obra de arte a forma é um elemento básico do valor estético.
O mal é que a querela forma/conteúdo, que se trava ao longo dos anos no plano ideológico, na critica e no comportamento, cristalizou as mais das vezes em conflitos irredutíveis que dificultaram e impediram um debate suficientemente esclarecedor..." [AC, in A Arte, o Artista e a Sociedade, Caminho, 1996]

"... Quando alguns poetas presencistas cantavam, louvavam e enalteciam as cogitações, o isolamento individual, a mentalidade da burguesia, atribuindo-lhes o valor de serem «os verdadeiros problemas humanos», a poesia (segundo tais teorizadores e críticos) não estava sendo utilizada para quaisquer fins, era «o fim em si mesma» como «arte pura». Quando os poetas no Novo Cancioneiro transmitiam nos seus poemas aspirações e sentimentos de classes e camadas populares, estavam (segundo os mesmos teorizadores e críticos) a infringir os princípios da «arte pura» e cometiam o pecado de utilizar a poesia para fins políticos..." [ibidem]

Algum roteiro: Álvaro Cunhal ["Depõem Críticos e Artistas acerca da Génese e da Universalidade da Arte", in O Diabo (29/04/1939) / "Numa Encruzilhada dos Homens", in Sol Nascente (1/6/1939) / A Arte, o Artista e a Sociedade, Caminho, 1996] | António Vale (aliás Álvaro Cunhal) ["Cinco notas sobre forma e conteúdo", in Vértice, vol. 14, nº 131/132 (1954)] | Mário Dionísio [Ficha 14, 1944 / Autobiografia, 1987] | Joaquim Namorado ["Da dissidência Presencista ao Neo-Realismo", Vértice, 279, 1966] | Fernando Alvarenga [Afluentes Teóricos-Estéticos do Neo-Realismo Visual Português, Afrontamento, 1989]

domingo, 9 de novembro de 2003

ILUMINAÇÕES


 
Iluminações

"..., o anoitecer é para os camponeses um pesadelo de que procuram escapar reunindo-se nas humildes habitações em que uma simples candeia de folha ilumina todo o recinto do serão. Ao centro da casa juntam-se as mulheres que fiam e dobam o linho criado nos lameiros. É o ponto melhor iluminado e, por essa razão, ali se concentram aqueles que mais claridade precisam, se claridade se pode chamar à fraquíssima luz do azeite que arde no lampião ..." [Armando de Lucena, Usos e Costumes Portugueses]

"Petisco lume, e acendendo
A çuja negra candea,
Vi outra imagem da cea
Que há pouco estava tecendo
"

[Queixas dum estudante doente e sem dinheiro, in Manuel Chaves e Castro, Luminária Popular, Coimbra, 1963]

JOSÉ DÓRIA [1824-1869]



n. em Coimbra a 9 de Novembro de 1824

"Dotado de grande capacidade musical, foi afamado tocador de viola e o introdutor do fado em Coimbra, na opinião de Luís Moita, em O Fado, canção de vencidos

O fado de Coimbra, diz Joaquim de Vasconcelos, se célebre era, mais celebre ficou, pela viola de José Dória (...)

«Sobre a viola, denominada vulgarmente, de arame, é que ele começou a estudar, se concentrou a sua atenção. O seu alento artístico tinha encontrado o instrumento necessário ... Ouvimos a sua viola, as suas Canções Peninsulares, o seu Fado, enfim, tudo nos pareceu um sonho, uma coisa fantástica (Joaquim de Vasconcelos, Os Músicos Portugueses, vol. I, Porto, 1870).
[diz Luís Moita]

«O fado de Dória, que não conseguimos encontrar e que suponho esteja perdido para a reconstituição do alvorecer do Fado de Coimbra, seria, talvez, uma melodia agradável, debuxada por caprichosas variações, sabiamente dedilhadas na viola; ... Coimbra e a sua Academia, todo esse cenário onde Camilo concebera, em época pouco recuada, a figura estúrdia de Guilherme Lira, iam emprestar ao Fado, um manto de luar, certa aristocratização e elegância que, fortemente vincadas, com o rolar dos tempos, dariam à canção dolente uma característica formal tão distante, já, da feição lisboeta, que os fadistas da capital viriam a apelidá-la de ópera..." [in, O Despertar, 11/5/1966]

sábado, 8 de novembro de 2003

JOHN MILTON [1608-1674]


























Morre a 8 de Novembro de 1674

" ... The mind is its own place, and in it self
Can make a Heav'n of Hell, a Hell of Heav'n.
What matter where, if I be still the same,
And what I should be, all but less then he
Whom Thunder hath made greater? Here at least
We shall be free; th' Almighty hath not built
Here for his envy, will not drive us hence:
Here we may reign secure, and in my choyce
To reign is worth ambition though in Hell:
Better to reign in Hell, then serve in Heav'n..."

[Milton, in Paradise Lost]

A ALMA DAS COISAS




"Os antigos falavam da alma das coisas. A alma das formas e a alma dos materiais. A alma de cada objecto singularmente considerado e alma advinda da conjunção com os demais. O facto de uma coisa estar incorporada num conjunto dar-lhe-ia uma índole específica, correspondente às relações com as restantes partes do todo. Este forneceria um suplemento à alma individual ou retirar-lhe-ia algo que lhe pertencia, prejudicando-o. A partícula da alma universal correspondente a cada coisa era, assim, aquela com que ela nasceu e a que lhe foi emprestada pelas outras, pelas vicissitudes percorridas.
Esta crença, transmitida pelos filósofos estóicos aos juristas do II Século, há-de parecer, aos olhos de hoje, aos nossos olhos, carregados de positivismo, docemente irreal, de um idealismo ingénuo. E todavia (...)
Se as coisas têm alma, os modos de transmissão delas têm estilo (...). Por vezes obedecem a delongas, configurando-se muito lentamente, com uma serenidade que lembra a estética clássica. Não há a sensação de movimento. Predomina o hieratismo. Outras vezes, as negociações processam-se cerimoniosamente, contumeliosamente, com mesuras de um protocolo rígido, de forma que lembra a moda rococó. Frequentemente, joga-se nelas o ímpeto do barroco: forma, emergia, acção. E não falta o espectáculo romântico, a emoção e o sentimento, o lance rápido, voluntarioso, uma certa teatralidade que mais não constitui senão a exteriorização em atitudes de um sentimento interior de respeito pelos objectos, por excelência tão caro à época romântica. É o caso dos leilões (...)"

[Prof. Ruy de Albuquerque, in A alma das coisas - ou a dupla apologia à maneira de prefácio, Catálogo de uma Rara e Importante Colecção Particular, Silva's, 1988]

sexta-feira, 7 de novembro de 2003

O SENADO DA VERGONHA E OS DRIBLES DE SEABRA DOS SANTOS



"Um pé na margem direita, outra na margem
esquerda e o terceiro no rabo dos imbecis
" [J. Prevert]

Entre a romagem ao portal de S. Bento, abandonadas as aulas bafientas, e a miséria da vida quotidiana na Universidade de Coimbra, fiquemos pela excitação do seu Senado Universitário, tomado agora como altar de piedosos exercícios democráticos. Cante-se, pois, os inesquecíveis dribles de Seabra Santos perante o domesticado quórum do Senado, que a bola nunca esquece e o futebol é que educa. E anote-se este novo milagre cívico de votações à sorrelfa, pois que a paixão da educação tudo permite e a pedagogia assim o exige. E diga-se: se Coimbra é uma lição, o seu Senado é a oração sapientíssima, o compêndio do cidadão; e como redil doutoral, só pode encantar pelas liturgias nostálgicas do passado. Para que um dia vos lembreis.

Na vida admirável do estudante, "o ser mais universalmente desprezado" depois de colunista, deputado, futebolista e bloguista, a crise da universidade reside na sempre eterna poeira das propinas, um recreio de grande excitação. Incapaz de propor algo de perfeitamente noviciado, a actividade radical do estudante universitário assenta nesse moinho de vento do "não pagamos", o pronto a carpir do estudantariado. Julgando-se tanto mais livre quanto maior o simulacro das suas preces e clamores, o estudante cede às grilhetas da autoridade e "chega tarde demais a tudo".

É, pois, com admirável condescendência e uma ingenuidade enternecedora que, amortalhados entre as quatro paredes da sala de aulas, atentos e veneradores ao desfiar da cultura dos mestres, nunca ousam denunciar o enorme tédio das inenarráveis aulas dadas por cavalheiros que tem do pedagógico a noção de um discurso às mulas da parada.

Em paga dessa respeitabilidade, eis o declarado desprezo dos Seabras Santos no seu Senado e as pragas dessa eminência parda da Nação que dá pelo nome de José Manuel Fernandes. Para que um dia vos lembreis.

quinta-feira, 6 de novembro de 2003

MUITOS PARABÉNS SOPHIA!



MUITOS PARABÉNS Sophia!

n. Sophia de Mello Breyner [Porto, 6 de Novembro de 1919]

Sophia é poetisa. Sem desesperos nem maldições. Fiel de Amor, Sophia canta o mundo dos deuses entre o quotidiano dos homens. A sua força telúrica está no encantamento e no mistério que só as mulheres o sabem merecer. Sophia é sabedoria. Canto materno, desejo intenso, corpo trabalhado. Sophia sussurra em antiquíssimo cantar até se perder no reino dos homens. E ... nós com ela.

"........
Sofia vai de ida e de volta (e a usina);
ela desfaz-faz e faz-desfaz mais acima,
e usando apenas (sem turbinas, vácuos)
algarves de sol e mar serpentinas.
Sofia faz-refaz, e subindo ao cristal,
em cristais (os dela, de luz marinha)" [João Cabral de Melo Neto]

"Faz da tua vida em frente à luz
Um lúcido terraço exacto e branco
Docemente cortado
Pelo rio das noites

Alheio o passo em tão perdida estrada
Vive, sem seres ele, o teu destino.
Inflexível assiste
À tua própria ausência." [SMB, inDual]

"... Sempre a poesia foi para mim uma perseguição do real. Um poema foi sempre um círculo traçado à roda duma coisa, um círculo onde o pássaro do real fica preso. E se a minha poesia, tendo partido do ar, do amor e da luz, evoluiu, evoluiu sempre dentro dessa busca atenta. Quem procura uma relação justa com a pedra, com a árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espírito de verdade que o anima, a procurar uma relação justa com o homem. Aquele que vê o espantoso esplendor do mundo é logicamente levado a ver o espantoso sofrimento do mundo. Aquele que vê o fenómeno quer ver todo o fenómeno. É apenas uma questão de atenção, de sequência e de rigor..." [SMB, in Arte Poética]

"Ia e vinha
E a cada coisa perguntava
Que nome tinha
" [SMB, in Coral, 1950]

"Perfeito é não quebrar
A imaginária linha

Exacta é a recusa
E puro é o nojo" [SMB, in Mar Novo, 1958]

"Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo
" [SMB, 25 de Abril]

quarta-feira, 5 de novembro de 2003

RAÚL BRANDÃO [1867-1930]




Morre em Lisboa, 5 de Novembro de 1930

Raul Germano Brandão, nasce na Foz do Douro, filho de pequenos proprietários, neto de pescadores [in Quem é Quem, de Álvaro Manuel Machado, que seguiremos de perto], frequenta o Curso de Letras que abandona para entrar na carreira militar ("O Inferno deve ser uma retrete de soldado em ponto maior" - diz). Amigo de António Nobre (participa na autoria do folheto Os Nefelibatas, sob o pseudónimo de Luís Borja, pertencendo, pois, ao grupo dos nefelibatas, de influência simbolista), Columbano e de Teixeira de Pascoes, tem uma obra vasta (contos, livros de viagens, peças de teatro e estudos históricos) mas cujo livro de referência maior será sempre Húmus, uma das pérolas da literatura portuguesa. Colabora em jornais (Correio da Manhã de Pinheiro Gomes), O Dia, a Republica (onde foi chefe de redacção), em várias revistas, como a importante Revista Portugal (de Eça de Queirós), A Águia, Seara Nova, A Arte, Revista de Hoje (com Júlio Brandão e D. João de Castro).

Algumas Obras: Impressões e Paisagens (1890), Historia de um Palhaço (1896), A Farsa (1903), Os Pobres (1906), El-Rei Junot (1912), Húmus (1917), A Conspiração de Gomes Freire (1917), Memórias (vol. I, 1919), Os Pescadores (1923), O Doido e a Morte (1923), Memórias (vol. II, 1925), A Morte do Palhaço e o Mistério da Arvore (1926), O Pobre de Pedir (1931), O Vale de Josafat ((vol. III das Memórias, 1933)

"A ternura é húmida" (RB)

[Das Memorias - que diga-se, seria talvez a escrita mais memorialista, perturbante e intimista de toda a blogosfera, se tal fosse possível ...]

"Hoje acordei com este grito: eu não soube fazer uso da vida! O que me pesa é a inutilidade da vida. Agarro-me a um sonho; desfaz-se-me nas mãos; agarro-me a uma mentira e sempre a mesma voz me repete: - É inútil! Inútil! (...)
A vida antiga tinha raízes, talvez a vida futura as venha a ter. A nossa época é horrível porque já não cremos - e não cremos ainda. O passado desapareceu, de futuro nem alicerces existem. E aqui estamos nós sem tecto, entre ruínas, à espera ..." [Set. 1910]

"... [Guerra] Junqueiro dizia de Latino [Coelho]:
- Sim, é um homem admirável, que em lugar de c... tem duas castanhas piladas!" [Dez. 1900]

"G..., antigo companheiro de Fialho [de Almeida], sepultado hoje o fundo duma biblioteca, diz assim a propósito da livraria do grande escritor:
«Eu chamo a estes livros as onze mil virgens. São apenas quatro mil volumes, ou pouco mais, mas - vão surpreendê-lo esta minúcia - estão aqui todos por abrir. Há aqui Balzac e Zola, Eça e Ibañez, os Goncourt e Ponson du Terrail. Fialho tinha muito Ponson na sua biblioteca. Esta literatura de costureiras e guarda-portões era para as grandes horas amarguradas.
Era. A ele e a outro grandes espíritos basta-lhes o próprio drama. Antero, nos dias aziagos de Vila do Conde, deitado num sofá, só lia Gaboriau. Para tragédia chegava-lhe a sua ... [Março 1903]

"Venho da casa de Fernandes Tomás. Teve um ataque apopléctico. Está hemiplégico, deitado num sofá, sonolento e trémulo. Nunca encontrei bibliófilo que tivesse prazer em indicar, em ensinar, senão este? Á beira do túmulo ainda pede que lhe arranje um catálogo da guerra peninsular ..." [1 de Fev. 1911]

"O que custa a largar na vida não é a esplêndida natureza, as grandes ideias, a luta ou as paixões? é o que fazemos todos os dias, é o hábito. Um médico meu conhecido do Porto, o dr. Frias, acabou com estas palavras: - E os meus doentes? Que vai ser dos meus doentes?... E, a mim, uma das coisas que me vai custar a deixar são os meus papéis. A vida leva-nos e aturde-nos. Lutamos. Debatemo-nos. Mas, quando chegamos ao fim, estamos todos docemente maníacos. O cúmulo é o caso acontecido com Alfredo Guimarães, cuja vida se passou na constante preocupação do bric-à-brac e que na agonia recomendava ainda:
- Olhem lá se esses homens, quando descerem com o meu caixão, vão partir as jarras da Índia que estão no patamar das escadas ..." [Dez. 1916]

"José Sampaio (Bruno), conversador extraordinário, corria altas horas as ruas denegridas e húmidas do Porto, com dois ou três amigos, falando, parando, discutindo até alta madrugada. Vinha tudo à baila: Deus, o universo, os filósofos e a politica. Agregavam-se às vezes àqueles homens alguns rapazes, que os ouviam fascinados. Eu era um deles, e ouvi-lhe, uma noite, estas palavras que nunca mais me esqueceram:
- Escusam de procurar ... a nossa ruína não vem dos políticos nem do regime. Mudaremos de regime e ficaremos na mesma. O nosso mal é mais profundo ? o mal é da raça.
- A raça? Mas, com esta raça, descobrimos o Mundo! (...)
- O mal é da raça. Se quisermos modificar o País, temos de fazer exactamente o mesmo que se faz com os cavalos, temos de mandar vir homens do Norte, ingleses, escandinavos ou suecos, e de montar aqui e além postos de cobrição..." [O Sangue, Memórias III]

terça-feira, 4 de novembro de 2003

MARTINEZ ESTRADA [1895-1964]



Morre em Bahía Blanca, 4 de Novembro de 1964

Ezequiel Martinez Estrada ou Don Ezequiel, nasceu na Argentina, foi poeta, ensaísta, professor de literatura, biógrafo (Balzac, Nietzsche,...), Presidente da Sociedade Argentina de Escritores, polemista (celebre a polémica com Borges sobre o peronismo). Com influências de Poe, Leopoldo Lugones, Rubén Darío, publica poesia e depois lança-se no ensaio com a sua obra mais polémica - Radiografía de la Pampa (Buenos Aires, 1933) - que é, afinal, um importante testemunho da cultura argentina de então.

Links: Ezequiel Martinez Estrada / Biografia / Martinez Estrada / Martínez Estrada, en la frontera de la modernización / Martínez Estrada

"Para encontrar la salida a las tragedias argentinas, deberíamos conocer el mapa de la cárcel donde estamos confinados. Si lo tuviéramos, podríamos matar al gendarme. Pero no hay mapas. Quizá ni siquiera hay gendarmes. Todo lo que nos queda es sentarnos a la puerta de nuestra celda y ponernos a llorar." [M. Estrada]

"El libro de Camus El hombre rebelde, expone mi tesis de que es indispensable el «enemigo de las leyes» para que la ley se depure y vigorice sin estancarse y corromperse. Los que gobiernan tienen el deplorable derecho de perseguirlos y ejecutarlos, pero nosotros tenemos el derecho de representar frente a ellos la fuerza que exige ascender y avanzar, otra vez y siempre, si la democracia es, como pensaba Whitman, ese anhelo insaciable." [idem]

"La noche concierta con el estado de ánimo de Buenos Aires. La animación nocturna es una euforia de droga espiritual; la santa noche, infinitamente anterior al desembarco de don Pedro de Mendoza, envuelve materialmente la ciudad en un regazo. Entonces surge de la febril y fría ciudad la otra más verídica y duradera. Las formas que la ciudad destaca de noche coinciden muy poco con las del día; tan poco como el alma nocturna con la de las vigilias o como la ancestral con la actual nuestra. El alma nocturna de Buenos Aires es muchísimo más rica de contenidos vitales y patéticos, y muchísimo más antigua, más arcaica que el día. Noche campesina que toma su desquite de la opresión y la insensatez de una faena jadeante sin objeto. " [M. Estrada, La cabeza de Goliat]

"En el silencio de la casa en sombras,
a medianoche, cuando todo duerme,
repaso viejos temas
- la belleza, la muerte -
y ultimo un vino añejo
voluptuosamente...
"

segunda-feira, 3 de novembro de 2003

É A ECONOMIA, ESTÚPIDO!



É já no próximo dia 31 de Novembro, às 13.00h, na FNAC junto à estante dos modernistas, ao Chiado, que decorrerá um ciclo de encontros "É a Economia, Estúpido!". Os participantes vão poder, finalmente, debater a economia libidinal, poesia sobre o deficit, luxúria de desemprego, neoliberalismo na comunidade primitiva, no que se seguirá um painel para aumento de ordenados, emagrecimento do Estado, luta por um caviar bolsista, em frente pela Barca Velha para todos, etc. Das comunicações a debate ao longo da jornada, refira-se as seguintes:

- Summa de casos de consciência, con advertencias muy provechosas para confessores, à cargo da Mercearia Ferreira Leite
- Descrição económica do eurobeatismo no território da comarca do Chiado, e próxima à margem direita da Benard, por Pedro Lomba
- Depois de Marx Abril, contributos para uma nova esquerda, por José Mário Silva
- Discursos sobre los comercios de havanos, donde se tratan materias importantes de gastronomía, y guerra, pelo Fumaças
- Uma seara nos dentes. Descobrir Berlin, pelo MacGuffin
- Genuína exposição das relações internacionais na Praça da Republica, ou o marasmo em que caiu a U. Coimbra e os seus lentes, por Ivan Nunes
- Alphabeto da malícia das mulheres com deficit ou dicionário de ardis, estratagemas e caprichos que o liberalismo combate, pelo Pedro Mexia
- O priapismo orgástico do proletariado na 1ª metade do Barrosismo, pelo Meu Pipi
- Este deficit é seu, estime-o, por NMP
- M. Oakeshott e a maligna engenharia social. Estórias de assombramento, por J. P. Coutinho
- Manual prático da cultura das batatas, e do seu uso na economia socialista, pelo Comprometido Espectador
- O deficit na hora da nossa morte. Contributos escatológicos, pelo Almocreve
- Modas e Bordados ou a Saliva Americana, pelo Homem a Dias

Dança de cadeiras na F. Foz

Absolutamente encantadora está a movida de cadeirais na Câmara Municipal da Figueira da Foz. O extraordinário Presidente Duarte Silva - segundo nos informa o jornal O Publico - "abichou" nada menos que 12 pelouros, anteriormente subtraídos a ilustres vereadores, mas num gesto despretensioso e altruísta atribuiu, de imediato, o pelouro das obras municipais nas freguesias a dois cidadãos figueirenses. Assim, a zona urbana foi graciosamente cedida ao inefável Lídio Lopes (chefe de gabinete), enquanto José Elísio (assessor de Lídio Lopes e presidente da concelhia do PSD) irá fazer a gestão da parte rural. Pouco interessa saber que nenhuns desses cidadãos foram eleitos, ou mesmo se a Lei nº169/99 configura tal desvelo presidencial. Apenas se regista que esse ávido leitor de BD e Presidente da localidade, assume com brilho e sapiência este novo período pós-moderno e santanista figueirense. Afinal, como diz a cantiga popular: Pilriteiro, dás pilritos / Porque não dás coisa boa? / Cada qual dá o que tem, / Conforme a sua pessoa. Os nossos aplausos!

"LICENÇA DE CAÇA ... COM PERDIGÃO"



"Procedia-se a um julgamento, em tribunal cível do porto, presidindo o distinto magistrado Dr. Albuquerque D. F. C., e intervinham como advogados os considerados causídicos Drs. A. Perdigão e A. César. Estes não se davam bem, chegando a beliscar-se publicamente, embora muito cordialmente sempre. É usança aborrecida, mas ainda mais vincada na classe médica, como facilmente se observa na grande maioria das comarcas. «Adlante com los faroles...»
Neste processo de agora, os comentários em volta da discussão azedaram demasiado, rapidamente se alvejando com voz e gestos exaltadíssimos! O inteligente e simpático Juiz Albuquerque Dias interveio, com justo receio da progressão do aumento dos tempestuosos arrufos:

- Os Colegas, permitam-me uma observação; entendo que por vezes excedem-se sem necessidade alguma, parecem capazes de se fulminar! Bem sei que depois da tempestade vem a bonança, mas há imprevistos …
- Perdão, atalhou rapidamente o Dr. César, fixando de soslaio o colega «Perdigão», ao mesmo tempo que puxava pela carteira …
- Comigo, senhor Dr. Juiz, escusa V. Exa. de preocupar-se, por que «tenho licença de caça ...»" [Montalvão Machado, in O Bom Humor nos Tribunais, 1967]

domingo, 2 de novembro de 2003

JORGE DE SENA [1919-1978]



n. em Lisboa, 2 de Novembro de 1919

"... Olhe que não sou brasileiro apenas pelo sentimento. Sou cidadão brasileiro desde 1963 (...) Por isso é que sempre me apresento como escritor português, cidadão brasileiro e professor norte-americano. Mas as minhas lealdades não são triplas e sim duplas, no que não vejo incompatibilidade alguma (para lá do respeito que devo às instituições do país em que me emprego e onde vivo). No plano cultural e de amor aos países (amor bastante infeliz, porque a luso-brasilidade é uma raça danada), já que no plano político não a devo tecnicamente a Portugal. Este é que me deve a mim." [Carta a Drummond de Andrade, 1972]

"Que adianta dizer-se que é um país de sacanas?
Todos os são, mesmo os melhores, às suas horas,
e todos estão contentes de se saberem sacanas.
Não há mesmo melhor do que uma sacanice
para poder funcionar fraternalmente
a humidade de próstata ou das glândulas lacrimais,
para além das rivalidades, invejas e mesquinharias
em que tanto se dividem e afinal se irmanam.

Dizer-se que é de heróis e santos o país,
a ver se se convencem e puxam para cima as calças?
Para quê, se toda a gente sabe que só asnos,
ingénuos e sacaneados é que foram disso? ... " [J. de S., No País dos Sacanas]

"Como pode um homem carregado de filhos e sem fortuna alguma
ser poeta neste tempo de filhos só da puta ou de putas sem filhos?...
" [J. de S., in Quarenta Anos de Servidão]

"... Esclareça-se: uma coisa é literatura
Comprometida ou não, e uma outra coisa
É literocambada, ou seja uma pandilha
Ou várias assaltando à naifa e gritos
De a bolsa ou a vida. Inútil é fingirem
Que são das letras ou qualquer política:
Vieram para elas, baba da afluência,
Por não haver já viela onde as facadas rendam." [J. de S.]

"... A autentica actividade poética, porém, empenhada em transformar e realizar em si própria o mundo, tem o direito de rir-se da sua própria situação precária e triste. É que a actividade poética sabe-se dupla: e conhece, daqueles que são seus, quais os que a visitam e quais gosta de visitar. E de sempre os maiores forma os que a receberam mal, sem delicadeza alguma ... (vide Baudelaire), Interesse da poesia pela poesia?... A poesia vive-se e suporta-se." [J. de S., in O Reino da Estupidez I]

"... Por certo que a poesia é a coisa mais importante do mundo, tão importante que nem coisa é. Mas a verdade é que é tal o meu amor pela poesia, que me repugna deixar-me pensar assim. A importância da poesia é mínima: a importância de algo que, no mais puro e interiorizado sentido, não serve para nada, nem sequer para nos encher de mais humanidade ou de mais beleza. Só a poesia dos outros nos poderá momentaneamente encher de serenidade, de comovida alegria, daquela esperança lacrimosa que é a recompensa de termos vivido, por instante, fora de nós e do mundo que, visto por nós, ainda nós próprio é (...) O mundo é precisamente esse desperdício, esse empobrecimento de cada hora, a cada papel que se rasga, cada memoria que passa, cada morte que há. A humanidade um somatório imenso do que não chegou a ser, e do que se supõe que foi..." [idem, ibidem]

"... Vamos rasgar, ó poetas, esta mentira da alma,
vamos gritar aos homens que os enganam,
que não é a força, que não é a glória,
que não é o sol nem a lua nem as estrelas,
nem os lares nem os filhos, nem os mares floridos,
nem o prazer nem a dor nem a amizade,
nem o indivíduo só compreendendo as causas,
nem os livros nem os poemas, nem as audácias heróicas,
- a redenção sou eu, se formos nós sem forma,
sem liberdade ou corpo, sem programas ou escolas!" [J. de S.]

Links: Jorge de Sena (Projecto Vercial) / Bio-Bibliografia (Instituto Camões) / Exposição Sinais de Jorge de Sena / Homenagem a Jorge de Sena (Fac.Eng.da U.P.)

TEIXEIRA DE PASCOAES [1877-1952]



n. 2 de Novembro de 1877

"... Eu chamei Saudosismo ao culto da alma pátria ou da Saudade erigida em Pessoa divina e orientadora da nossa actividade literária, artística, religiosa, filosófica e mesmo social. E a Saudade, com a sua face de desejo e esperança, é já a sombra do Encoberto amanhecido, dissipando o nevoeiro da legendária manhã." [in , A Arte de Ser Português, T. P.]

" A tristeza lusitana é a névoa duma religião, duma filosofia e dum Estado, portanto. A nossa tristeza é uma Mulher, e essa Mulher é de origem divina e chama-se Saudade; mas a Saudade no seu mais alto e divino sentido, não é a saudade anedótica do Fado e de Garrett ... A Saudade é o amor carnal espiritualizado pela Dor, ou o amor espiritual materializado pelo desejo: é o casamento do Beijo com a Lágrima: é Vénus e Maria numa só Mulher: é a síntese do Céu e da Terra: o ponto onde todas as forças cósmicas se cruzam: é o centro do Universo: a alma da Natureza dentro da alma humana e a alma do homem dentro da alma da Natureza: a Saudade é a personalidade eterna da nossa Raça: a fisionomia característica, o corpo original com que ela há-de aparecer entre os outros Povos ... A Saudade é a eterna Renascença, não realizada pelo artifício das artes, mas vivida, dia a dia, hora a hora, pelo instinto emotivo dum povo: a Saudade é a Manhã de Nevoeiro: a Primavera perpétua: é um estado de alma latente que amanhã será a Consciência e Civilização Lusitana. Eis a nossa tristeza: o seu espírito são e divino ..." [T. P., in, A Águia, nº 8, Ano I]

"O homem representa de homem, nada mais, porque sonha, idealiza, concebe-se como um ente superior. É só gesto, tom de voz, mímica, - um macaco esperto. Como ele discursa à mesa dum Café! Os outros, mais da selva e da banana, ouvem-no, embasbacados! Proclamam-no um ser sobrenatural. É agradável haver um deus da nossa espécie. O homem representa sempre, ou quando pensa e logo existe, ou quando entoa o cantochão, todo um com o espantalho da morte. É sempre um actor inconsciente, ou vestido de negro eclesiástico ou envolto na púrpura pagã" [in Cartas a uma Poetisa, T. P.]

" Admitimos que haja muito de literário na forma da poesia de Pascoaes, como talvez de toda a poesia. Todavia, é irrecusável a evidencia de um conteúdo terrivelmente sério, experimental, operativo, iniciático. Os seus elementos essenciais, o poeta di-lo muitas vezes, são o silêncio e a solidão e a lua, essa caveira astral. É algo que corresponde, em termos de iniciação maçónica, à solenidade absoluta da «câmara escura», que Fernando Pessoa representou na primeira parte do poema A Múmia. (...)

Pascoaes vê naquele que foi iniciado nos «mistérios« da saudade o «ser duplo», uma espécie de «Jano Tetrafonte», tornado senhor da rebis - a coisa dupla. No homem comum, a saudade é apenas um sentimento, mas o que inquieta, perturba e entusiasma o poeta é verificar que há um povo, o seu, a quem foi dado a graça sem o saber, do sentimento do centro do mundo. Tão espontaneamente como a vista foi dada aos homens de todo o mundo. Por isso defendeu a iniciação poética pela saudade e nela viu o carro de fogo capaz de nos transportar de novo ao Paraíso ..." [António Telmo, História Secreta de Portugal]


"O luar prateia o nosso berço
e a aurora doira-nos o túmulo.
Túmulo e berço, luar e aurora,
principio e fim, quem os distingue?
Mas, nesta confusão
eu adivinho
que tenho em vida, a Eternidade
e o Infinito"

[Últimos Versos, T. P.]

sexta-feira, 31 de outubro de 2003

EZRA POUND [1885-1972]

  [Morre em Veneza, 1 de Novembro de 1972]
 
Oh! geração dos afectados consumados
e consumadamente deslocados,
Tenho visto pescadores em piqueniques ao sol,
Tenho-os visto, com suas famílias mal-amanhadas,
Tenho visto seus sorrisos transbordantes de dentes
e escutado seus risos desengraçados.
E eu sou mais feliz que vós,
E eles eram mais felizes do que eu;
E os peixes nadam no lago
e não possuem nem o que vestir 

[Ezra Pound, Saudação]

EM LOUVOR DO PROF. MARCELO


[Em Louvor do Prof. Marcelo] – "Quando em Lisboa já toda a gente dorme e até os noctívagos mais foliões e retardatários tomaram o caminho da cama, algures, num bairro qualquer da cidade, numa rua uma casa portuguesa, uma luz está alerta. Alguém ali trabalha ainda, trabalha e vela, atento e esforçado, com os olhos a arder, vencendo o sono a poder de profaminas e café, estorcendo o intelecto, arruinando a saúde, o cabelo a encanecer-lhe gravemente (...)

E que faz ele? Lê; lê e lê catadupas de livro que lhe chegam diariamente às mãos, com dedicatórias nobres, estimulantes, ou aquele antipático carimbo 'Homenagem do Editor'; livros que vai abrindo; incapaz de dominar o caudal de espessa prosa ou a grácil espuma da versalhada que lhe despejam em cima. Lê, mas não só isso. Depois de ler diariamente bons centos de paginas (...) inda tem tempo para formar opinião delas, seja poesia (clássica ou novíssima), ficção filosofia ou colecção de policiais e, quase, miraculosamente, sobejam-lhe algumas horas para escrever essa dita opinião que é para os leitores, na quinta-feira, saberem e escusarem de ler os livros de que gostou. A pensar nos leitores, na sua cultura, no seu porvir, a esforçar-se por todos, o bom e querido ..."

[Luiz Pacheco, O Salema Sucateiro, in Textos de Guerrilha, 1ª série, 1979]

[Salazar e Armindo Monteiro] – "Uma vez (há muitos anos felizmente) estava o Salazar descansado a palestrar com a senhora Maria sobre assuntos de Moral e Religião (e, também, certas praticas sexuais, mas em voz baixinha), quando apareceu lá em casa um intriguista qualquer, talvez o Bissaya Barreto, e disse:

- Ó Tóino, sabes que há por aí um tipo que percebe muito de Finanças?
- Ah, sim?...
- Ó Tóino, olha que é muito inteligente, quinté sabe inglês, e ambicioso que se farta.
- Ah, sim!?...
Nessa noite, o Totocas não dormiu nada e às 5 ouviu o canto do galo, que lá em casa tanto servia de despertador como para canja. Desceu à secretária, com as duas ceroulas que usava sempre e já trazia do seminário, para proteger o pirilau, e nunca as tirava. Despachou assim:

Armindo Monteiro, Embaixador em Londres, já!

(a) António Oliveira Salazar”

[Luiz Pacheco, Tratem-no por Luisito, in Textos de Guerrilha, 2ª série, 1981]