quinta-feira, 30 de dezembro de 2004


Dança de cadeiras

"Os partidos correspondem ao estado da nação. Fazem-me lembrar um homem que numa feira vendia vinho e vinagre, da mesma pipa. O vinho saía por um lado, e o vinagre por outro. A droga era a mesma. É o que acontece com a política dos nossos partidos: é igual e sai da mesma pipa. Só as torneiras é que são diversas ..."

[Guerra Junqueiro, citado por Bordalo Pinheiro in Pontos nos ii, aliás, in Guerra Junqueiro, por Lopes d'Oliveira, vol II, ed. Excelsior]

A lista dos putativos candidatos ao cadeiral de S. Bento é trabalho de uma chateza emotiva, mas revigorante. Quando se avista Luís Filipe Menezes a descer o escadório do Bom Jesus de Braga, sob os aplausos da ralé, a profanação é soberba. O frenético edil de Gaia não se machuca, nunca tropeça, não repousa. Ei-lo a contorcer-se de vaidade na ribeira de Gaia, no faccis um olhar vesgo à procura de Rui Rio. Enquanto isso, Zita Seabra, em delírio de gula política, prepara-se para atacar uns salmonetes e castigar uns doces de laranja, lá para os lados de Setúbal. A coisa vai de promessa ou não arribasse a Castelo-Branco o terrífico boxeur Morais Sarmento, a carpir saudades da juventude on the road. Enquanto muitos olham para as poltronas das suas ambições políticas, o genial camarada Lima, ex-João Carlos Espada, seguindo antiquíssima paixão, tricota mais um programa eleitoral, desta vez sob a silhueta do liberal Santana Lopes. E o brasileiro do costume, um tal Jacome da Paz, desenha a produção laranja. Lá vai a onda tsunamizar por aí.

A resposta rosa não se faz esperar. Com vigor furtivo, o inefável Pina Moura ficará retido na cidade da Guarda, organizando palestras em catadupa. O laureado electricista espanhol é um compêndio escolar que muito irá instruir os indígenas locais, avaros da coisa económica. Na sua estância costumeira, Lisboa, Jaime Gama declara que não irá satirizar para a Bica do Sapato, enquanto confessa que tem ideias vigorosas e estimadas sobre tudo e está pronto para a acção. A peça não fica composta sem a graciosidade intelectual de Miranda Calha, em terras de Portalegre, o perfume espiritual de José Junqueiro em Viseu e, principalmente, sem a presença discreta de Alberto Costa, agora deslumbrado em terras do Rio Liz. A tudo isto se chama evolução e elegância socrática. Já vimos o filme.

Susan Sontag [1933-2004]

"Photographs are perhaps the most mysterious of all the objects that make up, and thicken, the environment we recognize as modern. Photographs really are experience captured, and the camera is the ideal arm of consciousness in its acquisitive mood." [ler]

"Não seria errado falar de pessoas que têm uma compulsão por fotografar: transformar a experiência em si num modo de ver. Por fim, ter uma experiência se torna idêntico a tirar uma foto, e participar de um evento público tende, cada vez mais, a equivaler a olhar para ele, em forma fotografada. Mallarmé, o mais lógico dos estetas do século XIX, disse que tudo no mundo existe para terminar num livro. Hoje, tudo existe para terminar numa foto"

Algumas obras: Against Interpretation and Other Essays (1966) / Death Kit (1967) / Styles of Radical Will (1969) / On Photography (1977) [Ensaios sobre Fotografia, Lisboa, Publicações D. Quixote, 1986] / Illness as Metaphor (1978) / I, Etcetera (1978) / Under the Sign of Saturn (1982) / AIDS and Its Metaphors (1989) / The Volcano Lover (1992) / In América (2000) / Regarding the Pain of Others (2003)

Locais: The Susan Sontag Archive / A morte sob o signo de Saturno / Susan Sontag / Listen to the Susan Sontag interview with Don Swaim, 1992 / On Photography (Excerpt) / A fotografia enquanto representação da dor / Interview with Susan Sontag / A minha América é o Império (Entrevista) / Notes On "Camp" by Susan Sontag / A Arte de Escrever com Luz: memória, fotografia e ficção

quinta-feira, 23 de dezembro de 2004



B(r)oas Festas!


Estamos de abalada. Estórias de assombramentos contadas à lareira esperam por nós. Todos os anos a mesma coisa. Trotar pelo campo, subir todos os muros, cruzar olhares, lembrar afectos. Seguir a vida, felizes no incêndio do nosso coração. Uma paisagem contra o tédio. Uma cadeia de milagres. Nesses instantes a alma não tem discursos. Só memória.

Natal

Nasce um Deus. Outros morrem. A verdade
Nem veio nem se foi: o Erro mudou.
Temos agora uma outra eternidade,
E era sempre melhor o que passou.

Cega, a Sciencia a inútil gleba lavra.
Louca, a Fé vive o sonho do seu culto.
Um novo deus é só uma palavra.
Não procures nem creias: tudo é occulto.


[Fernando Pessoa, in Revista Contemporânea]

terça-feira, 21 de dezembro de 2004


m. Barbosa du Bocage (21 Dezembro 1805)

"... Eu mesmo a fui despindo, e fui tirando
Quanto cobria seu airoso corpo.
Era feito de neve; os ombros altos,
O colo branco, o cu roliço e grosso;
A barriga espaçosa, o cono estreito,
O pentelho mui denso, escuro, e liso;
Coxas piramidais, pernas roliças,
O pé pequeno ... Oh céus! Como é formosa!
Já metidos na cama em nívea Holanda,
Erguido o membro, té tocar no umbigo,
Qual Amadis de Gaula entrei na briga:
Pentelho com pentelho ambos unidos,
Presa a voz na garganta, ardente fogo
Exalávamos ambos; Nise bela
Ou fosse natural, ou fosse d'arte,
O peito levantado, ansiosa, aflita,
Tremia, soluçava, e os olhos belos
Semi-mortos erguia ..."

[Barbosa du Bocage, in Poesias Eróticas Burlescas e Satíricas, S. Paulo, 1969]

Passa por mim em Bruxelas

"Tenho uma ligeira oscilação quando ando, até uso uma bengala" [A. O'Neill]

Os altíssimos dias deste final d'annus horribilis deu para assistir à récita pública do Eurostat, sempre fidelíssimo nos 3% e em demanda de défices excessivos, e ao espalhar da fúria, flagelo e dedicação sublime de três admiráveis personagens da lide política doméstica. Fala-se, evidentemente, de Santana Lopes, Bagão Félix e Vítor Constâncio. Dir-se-ia que não nos deixam dar graças às festividades sem qualquer martírio confesso. Estranha forma de vida em que os dotes políticos são completados pela sacrossanta oratória.

A governação está em padecimento de corpo. O que, hoje, foi dado assistir em conferência de imprensa é verdadeiramente espantoso. Fora ninguém ter entendido o porquê da prece mediática, dado não se ter apresentado nada de substantivo, fica-se a saber que em vez da literatura económica e financeira os governantes preferem os jornais, mesmo que estrangeiros. Qualquer dia ainda os apanhamos a ler a Maria, o Record ou as crónicas do Delgado. Por fim, a dupla Lopes & Félix, em alegre coligada apresentam-se como arrependidos, prestam perjuro ao saudoso PEC. Como os desamparados do Barrosismo andam com amargos de boca, descontentes pelo seu sacrifício!

O mistério do défice, a perfeição orçamental, a tabuada contabilística, comove qualquer indígena. Santana Lopes, um crónico incompetente consciente, generoso na sua sabedoria, imolou-se na miséria da mercearia Ferreira Leite. Como desconhece o que quer que seja, acreditou em tudo, seguiu «o Cherne». Pois se todos os extraordinários economistas e olheiros orçamentistas laranjas abraçavam a bondade das medidas do seu amigo Barroso, porque razão se haveria de verter lágrimas? Bagão Félix, o pudibundo cristão do orçamento cheio de graça, faz testemunho de ideias mal arranjadas e, num admirável discurso, dá uma valente sova no talento alemão. Inolvidável. Ligeiro, o despachante do Banco de Portugal, de nome Vítor Constâncio, revela o espírito do provado funcionário público: na falta de patrão, não há receitas extraordinárias para ninguém. No tempo da senhora Ferreira Leite é que era, suspira o piedoso economista. Mas afinal, o que seria uma Nação sem estes talentos bizarros? Pode-se saber?

[Remédios]

"... Vi um médico, de espírito sublime, que possuía, a fundo, a ciência do governo. Tinha consagrado as suas vigílias, até à data, a descobrir as causas dos males do Estado e a encontrar remédios para curar os maus fígados dos que administram os negócios públicos (...) «Os homens encarregados da administração pública, as mais das vezes, estão cheios de humores movediços, que lhes enfraquecem a cabeça e o coração, causam-lhes convulsões, contracção dos nervos da mão direita, fomes caninas, indigestões, vapores, delírios, e outros males»
Propunha tomar-se-lhes o pulso quando estivessem para se reunir em conselho. Por este processo tratava-se de ver se se descobria qual a espécie de doença de que eles padeciam (...)
E porque, ordinariamente, todos se queixam da pouca memória que tem os validos dos príncipes, queria o nosso doutor que a todo aquele que tivesse de tratar com eles alguns negócio fosse permitido a liberdade de dar ao senhor valido esquecido um piparote no nariz, de lhe puxar pelas orelhas ou espetar-lhe um alfinete nas nádegas, a fim de que a pretensão fosse sempre lembrada (...) Queria também que um dos senadores, depois de haver apresentado a sua opinião e ter dito, em abono dela, o que tivesse para dizer, fosse obrigado a formular a opinião contrária ..."

[J. Swift, in Viagens de Gulliver]

domingo, 19 de dezembro de 2004

[No dia de nascimento (1924) de Alexandre O'Neill]

"Aqui dormi.
Aqui sonhei.
Aqui me masturbei.

Da parede,
o mesmo azul do mapa
me convida.

Mas não fui «de longada».

De lombada em lombada,
quanta estante corrida!
"

[Alexandre O'Neill, in O Quarto]

Excitações Lusitanas & mais do mesmo

- os domésticos socialistas da cidade do Porto, sempre pródigos nas suas perturbações de fé eleitoral, congratularam-se pelo providencial apoio do senhor Pinto da Costa contra o insolente Rui Rio. O país nem um sorriso profundo manifesta. Nem um esgar incómodo declara. Ninguém se chega à frente em reparos. Mas sabe-se que os mistérios portuenses dão sempre em alucinações entusiastas, que invariavelmente acabam em arriscadas hermenêuticas no Bolhão.
O brinde do virtuoso Papa Costa foi disputadíssimo. O estremado Francisco Assis deu o amem rosa. Fernando Gomes comoveu-se pelo altíssimo discurso do sr. Pinto da Costa, esse incansável paladino da democracia. Nuno Cardoso amuou. A tralha socialista reclama um regresso. Sócrates resta um túmulo. Enquanto isso, o inefável Marco António confessa que frequenta as Antas aos domingos e dias santos. Consta, ainda, que Luís Filipe Menezes teve uma apoplexia, politicamente falando, é claro. Como são puros os ares da província.

- a economia já era. As lambiscadas dos tediosos opinion-maker's da coisa económica andam cansativas. Enjoam pelos testemunhos. Todas as manhãs lá vêm a ordem de argumentos em defesa do defunto. Entre as trevas da política económica, saltam as vozes puristas do professorado. Miguel Cadilhe consegue ver a borda do precipício, mesmo que esteja à sombra de quem o construiu. O deslumbrado Miguel Frasquilho, aleijado pelas mazelas pós-keynesianas, entretém os indígenas na comédia divertida do choque fiscal. Ignora-se, apenas, como entende imolar o Estado. O professor Cavaco, em magnifico delirius oeconomicus, fustiga os seus imediatos da governação, cavalga a besta do apocalipse pátrio, taramela qualquer coisa. A lenga-lenga do prof. Cavaco esquece o caudal económico dos disparates Barrosistas e, principalmente, a mercearia da senhora Ferreira Leite. Mas não faz mal a sabatina económica. O charivari é ensurdecedor. A turba indígena está de consoada. O bacalhau não desaparece, de vez. Deo gratias!

Prémio Pessoa 2004 - Mário Cláudio

"... Um nevoeiro puríssimo desce sobre os bosques da madalena, torna infinitos os espelhos, derrete neles os fios do esplendor da tarde, e logo as redes se lançam, ficam por instantes suspensas até que as engole o ventre líquido. São os vapores que respiram ofegantes em sua rota, com uma multidão heteróclita de passageiros, onde causa escândalo certa dama coberta de flores e plumas, na companhia de seus dois periquitos, três gansos canadianos, quatro peixes doirados, um macaco e um par de criados. E os grumetes ficam-se a olhá-la um pouco de revés, dela se afastam os frades e os beleguins e a rapariga olheirenta embrulhada num xaile, que arrasta uma história passional e foge à sanha dos burgueses. Exportam-se os produtos da terra, e na alma deles se retém uma saudade de sangue e de suor, o espectro morno do amor que os fez nascer e crescer e serem separados do seio original onde se conceberam ..."

[Mário Cláudio, in Das Torres ao Mar, O Oiro do Dia, 1983]

Prémio EDP 2004, Artes Plásticas - Álvaro Lapa

'... carácter de «últimas» vontades, de última-vontade, de vontade extrema, tensa, sobreavisada, que tornam as obras para o futuro (=doravante). A obra como sinal premonitório, a imaginação como actividade receptiva (seu carácter dominante), captadora do sinal-mensagem «que vem do futuro»: uma gigantesca central-receptora, a imaginação da «arte moderna». Trata-se de preservar o essencial - donde as minha «legendas proféticas», as minhas «caixas-relicário-pessoal», as minhas «alegorias», os meus «cânones», os meus «dogmas», os meus «abrigos», os meus «auto-auto-retratos», os meus «estímulos», os meus «flagrantes eróticos» ...'

[Álvaro Lapa, in Raso como o Chão, Estampa, 1977]

sábado, 18 de dezembro de 2004



Antonio Stradivari [m. 18 Dezembro 1737]

Locais: Antonio Stradivari. His Life and Work (1644-1737) / Antonio Stradivari / Antonio Stradivari / Sonatas Barrocas

[Livros & Arrumações]

Temos da "Annona ou mixto-curioso folheto semanal que ensina o methodo de cosinha e copa, com um artigo de Recreação", Lisboa, Imprensa de C. A. S. Carvalho, fim da Calçada do Garcia nº 42, nº 1 ao nº 36, 1836-1837, curiosas observações e dizeres vários. Algumas anotações:

"Doce - Manjar branco de peros. Ponham-se a coser em meia canada de leite meia dusia de peros grandes, limpos, apurados, e sem pevide, estando meio cosidos, deitem-se em um tacho, desfasem-se com a colher, e deitam-se-lhe duas canadas de leite, dois arrateis de assucar, e um arrátel de farinha de arroz, ponham-se a coser; e em quanto se cosem, refrescam-se com meia camada de leite, deitando-se-lhe pouco a pouco, e depois de cosido, deita-se-lhe agua de flor, tira-se do lume, e põe-se nos pratos" [nº20]

"Detalhes sobre a vida de Milton - Milton levantava-se da cama às quatro horas da manha no verão, e as cinco no Inverno. Trazia sempre uma borjaca de pano ordinário de mescla, estudava até ao meio dia, jantava frugalmente, e dava o seu passeio com o seu conductor, cantava pela tarde, tocando qualquer instrumento, conhecia as regras da harmonia, e tinha uma voz agradável. Sabia a arte da esgrima. E quem ler com attenção o seu Paraíso Perdido, verá que amava apaixonadamente a musica, e o cheiro das flores; ceava cinco, ou seis azeitonas, e uma pouca de agua, deitava-se às nove horas da noute, e alli compunha algumas obras; quando compunha alguns versos, repetia-os a sua mulher, ou a seus filhos; em dias de sol, sentava-se em um banco à sua porta ..." [idem]

"Poesia - Dois sujeitos, e ambos muito feios, andavam continuamente motejando-se um ao outro; um deles entrando certo dia no quarto do outro, a tempo que este fazia a barba, com grande trejeitos, que ainda o tornavam mais horrendo, lhe improvisou o seguinte soneto

"Boca, e mais boca de letrinea casta!
Penca, e mais penca té ao cu descida;
Horrenda, e sempre eterna prosseguida,
Carranca enorme a quem eu cedo, e basta!

Mal haja o sabonete que se gasta,
Em lavar-se essa tez ennegrecida;
Mal haja essa navalha envillecida,
Que a barba hirsuta do cartão te affasta!

Oh! quem pudera da fealdade excesso.
Arrumar-te em logar de banho morno,
Dois peidos nessas ventas d?arremesso:

Oh! quem te dera para teu adorno,
Por agua escarros, por espelho o cesso,
Por sabão merda, e por navalha um corno.
" [nº 21]


The most beautiful sleeves of 2004

quinta-feira, 16 de dezembro de 2004


Olavo Bilac [n. 16 Dezembro de 1865-1918]

"Nua, mas para o amor não cabe o pejo
Na minha a sua boca eu comprimia.
E, em frêmitos carnais, ela dizia:
- Mais abaixo, meu bem, quero o teu beijo!

Na inconsciência bruta do meu desejo
Fremente, a minha boca obedecia,
E os seus seios, tão rígidos mordia,
Fazendo-a arrepiar em doce arpejo.

Em suspiros de gozos infinitos
Disse-me ela, ainda quase em grito:
- Mais abaixo, meu bem! - num frenesi.

No seu ventre pousei a minha boca,
- Mais abaixo, meu bem! - disse ela, louca,
Moralistas, perdoai! Obedeci..."

[Delírio, por Olavo Bilac]

Locais: Biografia / Olavo Bilac / O. Bilac / Poesia / Bilac / Aviso aos pais ou Bilac Erótico

Geração Rasca

Os episódios políticos, a crise laudatória e a cacofonia destes dias não têm nada de empolgante, nem de virtuoso. A estratégia política foi há muito exumada e nem a língua de trapos, destas semanas, pode servir de paródia a quem quer que seja. Os disparates em série de um conjunto de homenzinhos da classe política, et pour cause seguido de chacota bem humorada, evidencia o que muitos referem sem mistério: estamos perante uma classe política rasca, que sem se saber porquê veste a farda da governação e usurpa o poder. Não há memória de tamanha obscenidade. Custa acreditar em tão desabridos acontecimentos.

A singular arribação destes novíssimos gestores governamentais tem de ter alguma explicação sob pena de estarmos decisivamente condenados. Sabia-se que a invasão do aparelho político era prometedor para quem tem da administração a vaidade de subir de vida, sem aborrecimento pelo trabalho, com um perfil e preparação técnica tacanha e grotesca, sem esforço intelectual ou ético visível. Sabia-se que quase todos lá chegam, unicamente, via benesses político-partidárias. Mas ninguém pensou, decerto, que estávamos a assistir à sua massificação, no meio de uma algazarra extravagante e perturbadora.

O desaire do exercício presidencial do dr. Sampaio; a declaração conjunta de Lopes & Portas em bom estilo pimba, embuçados em juras d'amor até ao espinote final daqui a dias; as atabalhoadas e vergonhosas afirmações do santanista Paulo Pereira Coelho, em excelente prosápia do que foi a atmosfera destes anos de jogos florais em terras figueirenses; as fantasias desafinadas de Bagão Feliz quanto ao deficit, aos agentes financeiros e ao pessoal indígena; as maquinações condimentadas de Morais Sarmento; as lamúrias improvisadas de Dias Loureiro; as tiradas vazias e torpes do afadistado Pires de Lima Filho ou as cogitações de Nuno Thomaz; são apenas a ponta do iceberg. Porque o aparecimento deste rebanho de novos políticos na pista governamental é o mais singular testemunho do desastre nacional. E que irá perdurar por tempos intermináveis. Como alguém já disse, "a ignorância é muito atrevida". O abismo aí está.
[Dezembro]

"O entendimento foi concebido de molde a guiar o coração; desgraçadamente, tanto neste mês como nos seguintes, os homens deixar-se hão arrastar pelo sentimento, cavalo fogoso e sem vista.
É costume cada um gravar as injúrias em bronze e os benefícios e finezas na areia ou na onde fugidia. As belas almas têm uma só lápide: a das boas obras recebidas.
Há povos infortunados hoje, ora e sempre. São os que fazem depender a fé e suas acções resultantes da decisão dos homens (...)
A ambição é um golfo em que só há escolhos e penas. Àqueles que se mantenham no cairel, os aplausos do mundo fá-los hão esquecer que podem escorregar ... e escorregam (...)"

[Cavaleiro de Oliveira, in Recreação Periódica, vol II, 1922]


Philip K. Dick [n. 16 Dezembro 1928-1982]

terça-feira, 14 de dezembro de 2004

[Amôre]

"O Amôre, graça de mau gosto,
muitas vezes na boca, sempre no sentimento,
veio, trota trotando, ter comigo.

Trazia a língua de fora, tropeçava nela,
fazia-se cansado, era apenas piegas.

Por que volta a bestiúncula
a rondar-me o terreiro?

É camaradagem
ou aragem de cama?

Desapossados é que estamos livres para caminhar."

[Alexandre O'Neill]