[Os Gatos]
"Deus fez o homem à sua imagem e semelhança, e fez o crítico à semelhança do gato.
Ao crítico deu ele, a graça ondulosa e o assopro, o ronrom e a garra, a língua espinhosa e a calinerie. Fê-lo nervoso e ágil, reflectido e preguiçoso; artista até ao requinte, sarcasta até à tortura, e para os amigos bom rapaz, desconfiado para os indiferentes, e terrível com agressores e adversários (...)
Amigo de fazer jongleries com a primeira bola de papel que alguém lhe atire, ou seja um poema, ou seja um tratado, ou seja um código. Paciente em aguardar, manso e apagado, com um ar de mistério, horas e horas, a sortida dum rato pelos interstícios dum tapume, e pelando-se, uma vez caçada a presa, por fazer de agonia dela uma distracção; ora enrolando-a como um cigarro, entre as patinhas de veludo; ora fingindo que lhe concede a liberdade, e atirando-a ao ar, recebendo-a entre os dentes, roçando-se por ela e moendo-a, até a deixar num picado ou num frangalho.
Desde que o nosso tempo englobou os homens em três categorias de brutos, o burro, o cão e o gato - isto é o animal de trabalho, o animal de ataque e o animal de humor e fantasia - porque não escolheremos nós o travesti do último? É o que se quadra mais ao nosso tipo, e aquele que melhor nos livrará da escravidão do asno, e das dentadas famintas do cachorro ..."
[Fialho de Almeida, Meus Senhores Aqui Estão «Os Gatos»]