quarta-feira, 2 de junho de 2004


[Notas sobre a edição portuguesa d'A Filosofia Na Alcova, do Marquês de Sade]

"Não me atrevo decerto a contestar que Sade seja um grande escritor. E, mais ainda que um grande escritor, uma personalidade-padrão, uma figura emblemática, uma espécie de farol. Acho mesmo que devia ser declarado - como os faróis - objecto de utilidade pública. Ele tem, com efeito, o alto mérito de assinalar, à navegação nocturna dos nossos instintos, a existência dos piores baixios ou de correntes perigosíssimas. E, todavia, o seu espectáculo desagrada-me (...) O estilo do «Divino Marquês» apresenta-se, em geral, de uma chateza confrangedora, estereotipada e uniforme, tecido de constantes «clichés», sem o risco pessoal daqueles pormenores concretos e daquelas transposições metafóricas que dão relevo e surpresa à linguagem. Por outro lado, o seu «mundo» romanesco revela-se bastante circunscrito, aflitivamente esquemático, regido por leis quase mecânicas..." [David Mourão Ferreira, pref. á 1ª ed. d'A Filosofia na Alcova, Afrodite, 1966 - livro proibido/apreendido em 1966]

"... Quer o Meritíssimo Dr. Manso queira ou não queira, quer o Cardoso Pires lhe prefira o Laclos, o Casanova, quer as autoridades francesas queimem as edições do Pauvert - o Sade está aí, digo tudo: o Sade está entre nós. Digo mais grave: o Sade está em todos dentro de nós. Foi essa afinal a sua grande revelação: um novo segredo humano descoberto, o homem contemplando-se numa dimensão mais real no fundo dos fundos que é o abismo da nossa alma (...) O homem lobo do homem é verdade muito antiga. O Sade tirou-a cá para fora (como Freud fez depois com a libido) e exaustivamente encheu páginas (teve tempo, coitado! Em trinta anos de cárcere; e nem sei como certos nossos escribas conseguem escrever tanto, andando sempre cá por fora e ainda bem! E com várias outros empregos à mistura e ainda melhor!) a demonstrar-nos os infortúnios da virtude, essa perigosa chatice (...) Voltando a Sade: leiam-no. Não se masturbem mais do que o suficiente para poderem ainda ficar depois o suficientemente lúcidos para o apreciarem e meditarem para fora e muito acima da pornografia. O Sade também ensina a pensar, a conversar, a desfibrar em nós e perante os outros molas ocultas que somos ainda nós, quer o saibamos quer não, quer o queiramos quer o detestemos (...)" [Luiz Pacheco, ibidem]

Notas presentes na 2ª edição portuguesa d'A Filosofia na Alcova: em 1966, processo 125 foram arguidos em processo de instrução preparatória sobre liberdade de imprensa, Fernando Ribeiro de Melo (editor da Afrodite), António Manuel Trindade, Herberto Helder, Luiz Pacheco e João Rodrigues / da directoria da PJ de 5 de Abril de 1966, por despacho, foram proibidos de circular no País os seguintes livros: Manual do Erotismo Hindu (Afrodite, 1965); A Filosofia na Alcova do Marquês de Sade (trad. de Helder Henriques - aliás Herberto Helder -, pref. de David Mourão Ferreira e Luís Pacheco, edição de Fernando Ribeiro de Mello) e a Antologia da Poesia Erótica e Satírica, selecção de Natália Correia / refira-se que consta dos autos que a tradução foi encomendada por Herberto Helder a António Manuel Calado Trindade, que aliás confirma que foi ele que fez a tradução da obra de Sade do original em francês / ouvido em auto de declarações, Luiz Pacheco, reconhece que é da sua autoria um prefácio do livro / refira-se que foram pronunciados todos os citados, menos David Mourão Ferreira, e que à data da sentença João Rodrigues tinha falecido, pelo que os restantes réus foram condenados a penas de prisão e multa, tendo sido os seus defensores, Manuel João da Palma Carlos, Luís Francisco Rebelo, Fernando Rocha Calisto, João Lopes Alves e Jorge Sampaio / por último, a contestação dos réus sobre a acusação de carácter pornográfico e obsceno da obra é curiosa, nomeadamente o notável testemunho de João Rodrigues (que fez as ilustrações) e que apresentou entre as suas testemunhas abonatórias, Gérard Castello-Lopes, Alçada Baptista, Dácio de Sousa, António Veloso, Sá Nogueira, João Câmara Leme e, ainda, a contestação de Ribeiro de Mello que recorre em defesa da obra a considerandos de Bataille, Jean Cocteau, Claude Mariac, Joyce, Miller, Lawrence, etc. / as testemunhas de Herberto Helder foram Vespeira, Alexandre Babo, Sttau Monteiro, o pintor Sá Nogueira (de novo) e as testemunhas de Luiz Pacheco, Virgílio Martinho, Jaime Salazar Sampaio, Vitorino Nemésio, Jorge Listopad, Virgílio Ferreira, Ruy de Mello / pelo lado de Ribeiro de Mello, as testemunhas apresentadas foram David Mourão Ferreira, José Augusto França, João Palma Ferreira, José Blanc Portugal, Tomaz Ribas, Vítor Silva Tavares, Virgílio Martinho, Liberto Cruz e Alexandre O'Neill