quinta-feira, 24 de agosto de 2006
"Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.
Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando"
[Fernando Pessoa, Tabacaria]
quarta-feira, 23 de agosto de 2006
Certa vez, um erudito resolveu fazer ironia comigo. Perguntou-me: «O que é que você leu?» Respondi: «Dostoievski». Ele queria me atirar na cara os seus quarenta mil volumes. Insistiu: «Que mais?». E eu: «Dostoievski». Teimou: «Só?».
Repeti: «Dostoievski». O sujeito, aturdido pelos seus quarenta mil volumes, não entendeu nada. Mas eis o que eu queria dizer: pode-se viver para um único livro de Dostoievski. Ou uma única peça de Shakespeare. Ou um único poema de não sei quem. O mesmo livro é um na véspera e outro no dia seguinte. Pode haver um tédio na primeira leitura. Nada, porém, mais denso, mais fascinante, mais novo, mais abismal do que a releitura"
[Nelson Rodrigues]
Nelson Rodrigues [n. 23 Agosto 1912 - 1980]
"Sou um menino que vê o amor pelo buraco da fechadura. Nunca fui outra coisa. Nasci menino, hei de morrer menino. E o buraco da fechadura é, realmente, a minha óptica de ficcionista. Sou (e sempre fui) um anjo pornográfico" [N. R.]
"Segundo Bernard Shaw, o inglês fala muito mal o inglês. Eu acrescentaria que o americano fala pior. Portanto, não seria exagero afirmar-se que a língua inglesa não existe, ou por outra, não existe como língua falada. Mas há pior e. repito, há pior. O inglês, tal como o imaginamos, também não existe. Sim, nós o vemos como um sujeito de nobilíssimo porte, de nobilíssimas maneiras, de nobilíssimos sentimentos. É uma figura quase irreal de tão melíflua. Eu disse "quase irreal" e já rectifico: absolutamente irreal.
Com o mínimo de lucidez critica, verificamos que o comportamento passado, presente e futuro do Império Britânico e do homem que o fez não corresponde à nossa furiosa idealização. Em vez de estar isento de paixões, o inglês é, inversamente, vítima das paixões. Na História e na Lenda, age e reage como passional. E, como todo passional, é capaz do sórdido e do sublime, do heróico e do abjecto, da generosidade e do saque. Tais contradições explicam a eternidade do inglês. Foi ele que salvou o mundo. Não fosse sua resistência, estaríamos hoje engraxando as botas nazistas ..."
[Nelson Rodrigues, A Insuportável Delícia Auditiva, in O Remador de Bem-Hur]
terça-feira, 22 de agosto de 2006
Folheto da reentré
"Com orelhas direitas como livros amados,
eu ouvia a chegada ..." [Herberto Helder]
Depois de afagos de veraneio pendurámos a lembrança, em local decente. Nas muitas noites-ligados-a-dias sem novelas da paróquia, sem ambição de coisa alguma e em salutar "metafísica do ócio", a iluminação teria de ser total. E, na verdade, foi a nossa abastança virtuosa. A "estrita" observância a paixões deliciosas e sentimentos d'ócio peculiares, fez prolongar a visitação extraordinária, assim a modos "como gatos espapaçados ao sol" [M. Bandeira]. As instruções, os preceitos e as exortações do vate Sócrates & sua imprensa amestrada, não nos importunaram. Fomos piedosamente poupados à erudição doméstica. E, claro está, podemos dizer, humildemente ... que "cumprimos"!
Feito o devido reparo a ledores atentos e a outros mais ditosos, que bem alegres estão na cobiça do "lava-pés" algarvio ou em convivência bloguística continuada, diremos que, apesar do macio dos lábios, do coração pulsando e da mentira dos homens, não nos perdemos das correntezas da infame humanidade.
E lembrando Jorge de Lima:
"... A vida está malograda.
Creio nas mágicas de Deus.
Os galos não cantam,
A manhã não raiou.
Vi os navios irem e voltarem.
Vi os infelizes irem e voltarem.
Vi homens obesos dentro do fogo.
Vi zigue-zagues na escuridão ..."
espero que tenham uma agradável ceia e ... café gostoso. Até lá, aguçamos o teclado. Gratias!
sexta-feira, 28 de julho de 2006
Em trânsito de veraneio
Estamos por aqui, distraídos, sem quaisquer trabalhos de vida. O bloganço assim interrompido é um sossego precioso. Não há saudades. Do lado de cá do mar a noite circula, choradinha de arrufos. Não se vê ministro nem candidatos carnais ao ofício (tá descansado, ó A. Costa!). Ao longo do dia, cada vez mais rectos e espirituosos, "havemos de supliciar livros / e nas piscinas roubar velhotas". Temos braços vigorosos e a mão firme. No resto ainda temos talento & arte para a luminosa que nos tem cativa. Não há queixas à gerência, dizem-nos. Estamos de sentinela. Copacabana é um túmulo.
Pelo que se descobre nestes idos de Julho, aí na paróquia Socrática & cousa para durar nos dias estrelados do ISCTE (a velha corporação que lava melhor) ou até nos puxa-saco dos jornais, a efusão dos amigos da Ministra da Educação nessa bem-aventurança dos exames em eduquês, tem sido de choro desvalido. Mesmo anteriormente avisados, os amigos da Ministra juram que da incompetência sai sempre a linha justa, aprumada, responsável, séria. Eis a doença infantil do eduquês. E mesmo que a bagunça seja total nas Escolas, os devotos admiradores da Ministra acreditam. Coisa sublime!
Entretanto, os mesmos & os outros activistas militantes persistem numa retórica sobre o ódio e no discurso do fascínio da guerra. Em nosso nome, a palavra vazia, a loucura do presente e a barbárie, presentes no Líbano e em Israel, e que esses escribas indígenas reinventam entre a angústia do espectáculo mediático e a soberba ideológica, asseguram-nos que "o mais belo espectáculo de horror somos nós". Não têm emenda. O nosso inferno é esta insanidade da estética de guerra, é este cansaço de tanta comunicação, é esta vida ser, sempre, um eterno vídeo-game. Mas que queiram, em nosso nome, incendiar corações, instalar pesadelos, exigir caminhadas vilmente desfraldadas de um lado contra o outro ou vice-versa, não o podemos consentir. Aprendemos há muito que as noites já não são de luar e o "futuro já não é aquilo que era". E sim, ainda há olhares envergonhados em cada manhã. Os nossos.
Le bibliophile Octave Uzanne
"L'Échelle de Jacob, un éditeur de Dijon, vient d'avoir l'heureuse idée de rééditer en fac-similé Nos amis les livres d'Octave Uzanne [Nos amis les livres, Octave Uzanne, éd. L?Échelle de Jacob (29, rue Berbisey, 21000 Dijon), 318 p., 27 ?], un volume publié une première fois par la maison Quantin à Paris, en 1886, et préfacé ici par le libraire parisien Christian Galantaris.
Pour tous les collectionneurs, Uzanne (1852-1931) est «l'homme-livre par excellence», c?est-à-dire un érudit qui a passé la majeure partie de son existence à écrire des ouvrages sur l'édition, l'illustration, la reliure, la lecture, les écrivains oubliés ou méconnus, la bibliophile et, il va sans dire, les bibliophiles.
Son imposante bibliographie comporte d'ailleurs des titres qui ne sont pas du tout démodés et auxquels les érudits et les chercheurs actuels se réfèrent toujours comme Caprices d'un bibliophile (1878), La Reliure moderne artistique et fantaisiste (1887), Les Zigzags d'un curieux (1888), Physiologie des quais de Paris (1892), Contes pour bibliophiles (1894), en collaboration avec Albert Robida, ou encore La Nouvelle Bibliopolis (1897). Sans oublier L'Art et l'Idée qui date de 1892 et qui est à coup sûr une des plus belles revues jamais publiées sur le «dilettantisme littéraire» - dilettantisme au sens le plus noble du terme. Tous ces ouvrages ne sont pas vraiment rares, mais leur prix est en général fort soutenu, surtout lorsqu'on les trouve en tirage de tête et bien reliés.
[ler mais - Magazine Littéraire]
sexta-feira, 14 de julho de 2006
Panfleto
"Os poetas, esses idealistas em valores de bolsa, destruíram a sagesa do homem simples: enterraram-lhe na cabeça proletária o seu impacto educador, a sua fictícia mais-valia de palavras rimadas. Estes representantes comerciantes do reino do direito da idiotia moral deveriam ter impregnado as consciências com a vigilância do riso, da ironia e do inútil - com o grito de alegria do não-senso órfico (...)
Que é a democracia? A vida no trabalho para o pão-nosso-de-cada-dia-nos-dai-hoje. Nós, queremos rir, rir ... e fazer o que quizermos. Não queremos nada de democracia, do liberalismo, desprezamos o coturno do consumo intelectual, não trememos diante do capital. Nós, para quem o intelecto é uma técnica, um auxiliar, o nosso, e não um lavar de mãos airosas na reforma, não talharemos escrupulosamente noções, não nos inclinaremos perante a razão pura (...) queremo-nos amigos do chicote que fustiga o homem sentado. Vivemos pela incerteza, não queremos nem o sentido nem os valores que lisongeiam o burguês, queremos os não-valores e o não-sentido ..."
[Raul Hausmann, Panfleto contra o ponto de vista de Weimar, Berlim, 1919, in Textos de Afirmação e Combate do Movimento Surrealista Mundial, P&R, 1977]
"A fala não é o único meio de expressão. A fala é incapaz de significar as experiências mais profundas. A destruição do órgão da palavra pode ser uma forma de disciplina pessoal. Quando o contacto é interrompido, quando cessa a comunicação, começa o mergulho em nós mesmos, o desprendimento, a solidão. Cuspir palavras - linguagem vácua, entorpecente, da sociedade. Simular modéstia, ou loucura, e permanecer tenso. Atingir uma zona incompreensível, imarcescível" [Hugo Ball, Zurique, 1916]
"Eu me aborreço muito atrás do meu monóculo de vidro, me visto de caqui e combato os alemães - A máquina de embrutecer ... marcha com grande fragor e eu não estou longe, no curral de tanques - um animal bem ubíquo, mas sem alegria" [Jacques Vaché]
"... O Exercito Britânico, que é preferível ao Francês, tem muita falta de Umor. - Já por várias vezes avisei um coronel que me é muito delicado de que lhe enfio um pauzito nos oibidos. Duvido que ele tenha atingido o que queria dizer = ainda por cima nem francês compreende ..." [idem]
"... Sou contra os sistemas, o mais aceitável dos sistemas é o de, por princípio, não ter nenhum. Completar-se, aperfeiçoar-se dentro da pequenez própria até encher o vaso do eu, coragem de combater a favor e contra o pensamento, mistério do pão explosão súbita duma hélice infernal em lírios económicos ..." [Tristan Tzara]
Primeiro Manifesto Dada [lido por Hugo Ball, em Zurique, 14 Julho 1916]
"Dada é uma nova tendência da arte (...)
Uma palavra internacional. Apenas uma palavra e uma palavra como movimento. É simplesmente bestial. Ao fazer dela uma tendência da arte, é claro que vamos arranjar complicações (...)
Leio versos que não pretendem menos que isto: dispensar a linguagem (...) Quero a minha própria asneira, e vogais e consoantes também que lhe correspondam. Se uma vibração mede sete centímetros, quero palavras que meçam precisamente sete centímetros. As palavras do senhor Silva só medem dois centímetros e meio (...)
Não devemos deixar surgir muitas palavras. Um verso é a oportunidade de dispensarmos palavras e linguagem. Essa maldita linguagem à qual se cola a porcaria como à mão do traficante que as moedas gastaram. A palavra, quero-a quando acaba e quando começa..."
[Primeiro Manifesto Dada]
Locais: Manifesto of Dada in Zürich / A Brief Chronology of Dada (as drawn from various sources) / Dadaism by Tristan Tzara / Dada [Centre Pompidou] / Dadaísmo / Dada and Surrealism:Texts and Extracts / Jacques Vache, Cartas de Guerra / Surrealismo: Revolta e Conquista / Surrealismo, A voz e a mão do bizarro
quinta-feira, 13 de julho de 2006
Roger Keith 'Syd' Barrett [1946 - 2006]
Oh where are you now
pussy willow that smiled on this leaf?
When I was alone you promised the stone from your heart
my head kissed the ground
I was half the way down, treading the sand
please, please, lift a hand
I'm only a person whose armbands beat
on his hands, hang tall
won't you miss me?
Wouldn't you miss me at all?
The poppy birds way
swing twigs coffee brands around
brandish her wand with a feathery tongue
my head kissed the ground
I was half the way down, treading the sand
please, please, please lift the hand
I'm only a person with Eskimo chain
I tattooed my brain all the way...
Won't you miss me?
Wouldn't you miss me at all?
Syd Barrett - Wouldn't You Miss Me (Dark Globe)Castpost
Video: Wouldn't You Miss Me?
Boletim Bibliográfico 31 de Luís P. Burnay
Acaba de sair o Boletim Bibliográfico 31, mês de Julho, do Livreiro-Antiquário Luís P. Burnay (Calçada do Combro, 43-47, Lisboa). Apresenta livros de história, literatura, arte e monografias.
Algumas referências: Caminhos de ferro portugueses: esboço da sua história, de Frederico de Quadros Abragão, 1956 / Álbum de costumes portuguezes, David Corazzi, 1888 / Anti-Maçonica [Antídoto salutifero contra o Despertador Constitucional ?, 1827; Exorcismos contra os incursos Maçónicos ..., 1827; O Vôvô Maçon ..., 1827; Exposição franca sobre a Maçonaria, 1828] / Antologia da Poesia Portuguesa erótica e satírica, sel. Notas de Natália Correia, ed. Afrodite / A Inquisição e os Professores do Colégio das Artes, por Mário Brandão, 1948 / Perfil do Marquês de Pombal, de C. C. Branco, 1900 (2ª ed.) / Roteiro de Lisboa a Goa, por D. João de castro, 1882 / O Charivari, Porto, Ano I (1886) a Ano X (1895), 14 vols / Sete Septetos seguidos de um comentário disponível, de Ruy Cinatti, 1967 / Cartografia e cartógrafos portugueses dos séculos XV e XVI, por Armando Cortesão, 1935, II vols / Ditames e Ditérios, de Alfredo da Cunha, 1929-31, III vols / O Diário de Noticias e a sua fundação e os seus fundadores, de Alfredo da Cunha, 1914 / História de Portugal Restaurado, pelo Conde da Ericeira, 1945-46, IV vols / Serra-Mãi, poemas de Sebastião da Gama, 1945 / Monografia do Parque da Pena, de Mário de Azevedo gomes, 1960 / Sucessos de Portugal: memorias históricas politicas e civis ... desde 1742 até ao anno de 1804, por José Pedro Ferraz Gramoza, 1882 / Apresentação do Rosto, de Herberto Helder, Ulisseia, 1968 / In Memoriam de Camilo, 1925 / Inventário da Colecção de Registos de Santos, org. Ernesto Soares, 1955 / Macarronea Latino-Portuguza (poesia satírica e jocosa), Porto, 1791 / O Marquez de Pombal: obra comemorativa do Centenário, 1885, II vols / Movimentos de Cavallaria com addicçam para Dragoens e Infantaria ?, de José de Almeida e Moura, 1741 / Mito-Alegoria-Simbolo: monologo autodidacta na oficina de pintura, por Almada Negreiros, 1948 / Passatempo (revista quinzenal editada pelos Armazéns Grandella, editor Joaquim Monteiro Catharino), Ano I (nº1, 1900) a Ano II (nº48, 1902) / Portugal: diccionario histórico, chorografico, heráldico, biographico, ..., por Esteves Pereira & Guilherme Rodrigues, 1904-1915, VII vols / Peregrinação seguida das suas cartas (versão integral em port. moderno de Adolfo Casais Monteiro), de Fernão Mendes Pinto, 1952-53, II vols / Ourivesaria Poruguesa, de Reinaldo dos Santos, 1959-60, II vols / Introducção à Archeologia da Península Ibérica, por Augusto Filippe Simões, 1878 / Ásia Portuguesa, de Manuel de Faria e Sousa, 1945-47, VI vols / História do Futuro, do Padre António Vieira, 1855
terça-feira, 11 de julho de 2006
Catálogo de Junho da In-Libris
Acaba de sair o Catálogo do mês de Julho da In-Libris (Porto). A consultar
O desportivamente correcto ou coisas do Carvalho
"Ele era daqueles que querem sempre fazer mais e melhor, mesmo quando não lho pedem. Essa qualidade, num criado, é abominável" [G-C Lichtenberg]
Estamos maravilhados. Pelo que nos avisam, a missão d'hoje - provida em embrulho muito civilizador, respeitável e sempre obediente - é reconhecer o princípio e o ensinamento da "coisa" dita correcta. A autorização para o uso do testemunho da infâmia já foi. E belos tempos foram. Hoje floresce entre nós a temporada das pombas mansas. Temos de ter majestade nos conceitos, dúvida na disputa, cerimónia nas palavras. O assunto do contraditório é sempre esculpido entre um breve insinuar do politicamente correcto, o piscar d'olhos e a eterna pancadinha nas costas. Todos bem-educados.
Na verdade, que vemos nós? Que contra a perversão da labita sempre odiosa da canalha, se exige a fineza do subtilmente correcto. Exemplos!? Tem um homem, num achaque de lhaneza, necessidade de enviar à merda um árbitro, a mulher, um jornalista, o patrão ou um primeiro-ministro, mas, hélas, deve sucumbir ao politicamente correcto e fazer fé na oratória do dr. César das Neves ou citar, se for caso disso, Paula Bobone. Mais: quando o cidadão, por exemplo, é aliviado na carteira, delicadamente, pelo notável Ministro das Finanças, deve sorrir de encantamento pátrio. É o que diz a boa língua do jornal Expresso & outros papéis de referência. Na sua casa, rezam as crónicas, o gentio luso tem o venerável compromisso de não importunar os meninos e meninas, para não ser tratado por libertino e evitar reparos de maior. De facto, os psicólogos e os sociólogos estão, como se sabe, em todo o lado. Todo o cuidado é pouco. Leia-se os relatores. E no restaurante? Aí, deve o sujeito ser fiel ao cardápio, encomendar polidamente, não escancarar a boca de protestos e jamais, mas jamais, deverá ser herege em casa alheia. A civilização, ilustremente correcta, exige-o.
Essa qualidade natural do sujeito moderno (dirá o paciente liberal em trânsito na blogosfera) é estupenda, distinta e de referência. Evidentemente para todos os não-vulgares. Mas mesmo entre os outros, os ordinários indígenas, o consenso começa a ser ecuménico. Ser correcto politicamente, literariamente, sexualmente ou desportivamente, eis a superstição recente. Estamos em pleno vitalismo neo-burguês. É o aperfeiçoamento da modernidade, o bordão da globalização, a vibração liberal, dizem.
Ora tal manual de civilidade arribou em força este Verão, via Mundial de Futebol. As croniquetas últimas foram fatais. Não há mais pachorra. Vem o caso, que uns, vítimas de dor futeboleira ou por convicção de sentinela avançada da "coisa" dita correcta, promoveram, em altos brados, essa nobre arte do desportivamente correcto num palavrório que culminou, imponente, em editorial à Manuel Carvalho. No jornal Público, tendência JMF. Com efeito, o vaidoso Carvalho, não tendo o Rui Rio à perna todos os dias, investiu sobre a generalidade dos indígenas, em particular os do futebol. Depois de aturado estudo televisivo, o escosido Carvalho sustenta que somos todos manhosos, viciosos, palavrosos (coisa perigosa!), dissimulados. No futebol e em tudo. A dor oftálmica é do Carvalho. Portanto, nada de espantos: os outros lá fora (ingleses ou franceses) são o exemplo a seguir, a raça ungida e fidalga. Por cá, só na aparência se sabe o que é o futebol. Sigamos, pois, o Carvalho. Avanti!
Leituras & anotações
(15 Julho) International Day of Protest: Shut Guantanamo Now! / Bush Is Pressed on Reporting Domestic Surveillance [The W. Post] / Como vender o liquidar una biblioteca particular recibida en herencia / George Bush singing 'Sunday Bloody Sunday' [video] / Globalisation and its contents [The Little Magazine] / Google acabará con las bibliotecas [El Confidencial] / Hate Groups Are Infiltrating the Military, Group Asserts [N.Y.T.] / The Genius of George Bush [video] / The Six Sins of the Wikipedia [Sam Vaknin] / Velvets top album poll
Imposible negociar las pasiones - entrevista com George Steiner
Dice usted en En el castillo de Barbazul, de manera bastante abismada, que la cultura no vuelve al hombre más humano. Habla incluso de una cierta derrota de la cultura. Existiría una proximidad inquietante entre la cultura y el horror.
Le responderé en dos partes. Primero existe lo que yo llamo la 'paradoja de Cordelia'. Regreso por la tarde a mi casa después de haber leído con mis alumnos El Rey Lear, con la cabeza ocupada aún por las palabras de Lear que sostiene en sus brazos a Cordelia muerta: 'Never, never, never...', pero no oigo los gritos de la calle. La ficción es más poderosa que los lamentos de aquellos que sufren a nuestro alrededor. No por omisión deliberada, sino por un mecanismo psíquico que hace que el gran arte se apodere de la conciencia a tal grado que nos hacemos insensibles a los gritos de los hombres de carne y hueso. ¡Es una paradoja horripilante! Mi segunda respuesta concierne a la fractura entre la forma inhumana que tiene un hombre de llevar sus actividades políticas o públicas y su capacidad para crear belleza. Nietzsche responde que la belleza está más allá del bien y del mal. Yo puedo entenderlo por lo que respecta a la música, pero no con la literatura. No acepto la idea de que el hombre pueda dividirse en pequeños compartimientos estancos. Para mí, es el mismo hombre el que por la tarde interpreta a Bach y el que por la mañana tortura en un campo. Sin duda resulta inexplicable, pero lo que es seguro, en cambio, es que las humanidades no resistieron a la barbarie. ¡La música no dijo no! Poco antes de suicidarse, Walter Benjamin escribió: 'La base de todas las obras maestras es la barbarie' [ler toda a entrevista, aqui]
in Confabulario - suplemento de cultura de El Universal. México, 1 de julio de 2006 [aliás, in Magazine Littéraire, trad. de Alberto Román]
sexta-feira, 7 de julho de 2006
Alguma Poesia e outras considerações desagradáveis
"... Há, nitidamente, na mais jovem poesia portuguesa, um retrocesso. Tenho observado, com mágoa, a infinita suficiência destes livros. Quer formal, quer intimamente, estamos na época da 'Maria-vai-com-as-outras'. E tudo serve: as descobertas ou hábitos formais dos outros, o grande destino do homem (que merecia mais meditação e mesmo declamação), até a própria habilidade rítmica. Tudo serve, desde que seja possível o individuo convencer-se, e aos seus pares, de que é poeta (...)
Nunca se publicaram tantas críticas, e nunca, suponho eu, se leram tantos metros de prosa, impressionista, didáctica ou erudita, falando de tudo, menos da essência da obra criticada.
De modo que, em resumo: por um lado, a critica oral ou escrita faz o elogio dos epígonos e da mediocridade; e, por outro lado, lamenta amargamente a mediocridade reinante. Isto é um beco sem saída, para quem está nele ..."
[Jorge de Sena, Mundo Literário, nº2, 18 de Maio de 1946]
In Memoriam José Vieira Marques [1934-2006]
"Partiu como chegou ao mundo do cinema silencioso, afável, disponível para dar a conhecer cinema de todos os continentes e linguagens estéticas. José Vieira Marques, antigo director do Festival Internacional de Cinema da Figueira da Foz, morreu aos 72 anos, em Setúbal. Ontem, foi a enterrar no cemitério de Algeruz, na cidade onde vivia com a irmã.
Um homem de inspiração humanística, com uma visão plural da vida e da sociedade. Foi padre, mas o cinema foi sempre encarado como uma forma de promoção cultural e de conhecimento das pessoas", destacou António Roma Torres, médico psiquiatra e crítico de cinema durante vários anos no JN ..."
[Manuel Vitorino, JN]
quinta-feira, 6 de julho de 2006
It is I, João Carlos Espada!
"Sperai! Caí no areal e na hora adversa" [F. Pessoa]
Pobre de nós! Julgámos que o desabafo do trovador liberal João Carlos Espada, no penúltimo Expresso, era um rabisco a descoberto. Dizia o professor, da jangada do seu Mar Aberto, que a dita "coluna" se despedia do Actual. Não concluímos a leitura ilustrada da coisa, porque aturdidos pelo cantar do Espada, abrimos insidiosamente uma Quinta do Crasto, por sinal bem honesta, e assim ficámos em amena conjectura sobre tal vaticínio do inefável professor.
Mal de nós! Fomos, por demais, imprudentes. Acontece que entre o regalo de antever o Espada no conforto do lar, afinal coisa de Lord, ou magicarmos o inferno do professor alapando-se no Hotel Palácio do Estoril (ouviram a música!?) com todos aqueles senhores do King's College, de Harvard, ou mesmo vindos da Wyzsza Szkola Biznesu, para não falar já da senhora Filomena Mónica ou do poetrasto Graça Moura, não concluímos a croniqueta do Actual. Ora sucedeu que a zelosa Balbina, fiel empregada da casa, desempestou o escritório e arrumou o papel do dr. Balsemão para um qualquer canto esconso e inatingível. Nada de temer.
Portanto meus amigos, imaginem a alucinação havida, quando esta semana, debaixo do trecho espirituoso do jovem Coutinho no 1º caderno da folheca balsâmica citada, surge o olho maroto do imortal professor João Calos Espada, fitando-nos. Que susto!
Disse-nos: It is I, João Carlos Espada!. E era, de facto, o exterminador do intelecto indígena. Fugimos dali, inopinadamente ... até hoje. Mas estamos vivos para contar. Deo gratias!
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