domingo, 11 de dezembro de 2005


Debate Presidencial: o princípio da "coisa"

"O monstro aculturado já se deixa montar, / mas ainda não moro naquele seu olhar" [Alexandre O'Neill]

Depois da "alegre cavaqueira" generosamente derramada diante dos nossos olhos, pelo sopro cheio de graça, dos dois candidatos presidenciais que estrearam o debate da "coisa", eis um bom momento civilizador vivido, ontem, entre Cavaco & Louçã. Diga-se que na antevéspera - confronto Soares & Jerónimo -, já fomos agraciados com o prazer de respirar opiniões discordantes. A União Nacional não estava a passar por ali. A missão do orador presidenciável é uma travessia que depende de cada qual. E as margens da sua condição não são, unicamente, motivo de caridade dos entrevistadores, mesmo se a viseira erguida por alguns funcionários do dr. Balsemão seja viciosa no seu tratamento jornalístico. Ele há "coisas" onde a voz do "dono" impõe renúncias intermitentes. Embargos deliciosamente indesculpáveis. Adiante.

Entre a obediência intelectual consumada pelo amante da "pátria" - o poeta Alegre - com aquele que "falava com voz do nó da gravata" - de nome Cavaco Silva - e o estimulante (porque sério) e atrevido (porque não servil) embate Cavaco & Louçã, há toda uma diferença. Naquele, o tom macilento de quem não tem nada a dizer e a interpelar. Neste, a seriedade e a correcção da análise política, económica e social, num exercício honesto de quem algo a pronunciar e a debater. Todos - candidatos e jornalistas - estão de parabéns. Daqui para a frente, nada será como dantes, embora muitos suspirem uma outra "coisa". Basta ler os testemunhos dos colunistas da União Nacional e de como ficaram extraordinariamente a descobertos. Há dores tão agradecidas que assombram. A urbanidade intelectual é sempre muito traiçoeira.

É público que o mito da argúcia económica de Cavaco, se existia ainda, acabou ontem mesmo. Louçã fez desmoronar esse pequeno mundo que é, absolutamente, esotérico para os indígenas e até alguns adoráveis Cavaquistas. As palavras singelas do cândido ex-primeiro ministro explicam tudo sobre esse período: "Em relação ao passado fui julgado pelo povo português" - diz-nos. Nada mais acertado.

Ainda assim, o candidato persiste em querer vislumbrar "sucesso" na sua governação ou, até, assumindo essa ideia admirável do Cavaquismo ter pretendido ser, afinal, o projecto de uma nova "Califórnia da Europa". Tal insidia, pouco oficiosa, é apenas um delírio intratável. Presume-se que o descabelado Medina Carreira se engasgou com a papelada e os números. E que as orelhas liberais e neo-liberais, dos festivos apoiantes do candidato, arderam de vergonha, quando se ouviu o fantástico dr. Cavaco defender "os direitos adquiridos" dos trabalhadores da Administração Pública. Espera-se, ainda, que a vaidade e o estilo de Nogueira Leite não sucumba perante o novo oráculo da economia lusa. Seria um horror para muitos e um divertimento para todos.

Sobre o debate da "coisa": Louçã embaraçou, por várias vezes, o benemérito e estupefacto candidato da União Nacional. Fez aparecer o "momento mais divertido" da noite, quando se argumentou sobre a Lei da Nacionalidade e a invasão "bárbara" irrompeu, tout court, da boca do professor. Arrancou, a ferros, algumas desgarradas opiniões ao dr. Cavaco. Este, criteriosamente colado às políticas do governo, titubeou aqui e ali. Esteve, no entanto, bem melhor quando falou na Reforma da Segurança Social e nas medidas tomadas. Coisa que, aliás, muitos não entenderam. Em resumo: Louçã domou "o monstro". E, nestas condições, a existir alguém vitorioso, esse alguém terá de ser o dr. Francisco Louçã. Muito embora se saiba quais as suas hipóteses presidenciais. Mas isso é uma outra história. Um outro debate. Disse.