terça-feira, 6 de dezembro de 2005


Alegre & Cavaco: 2 lindos meninos

"Pé quebrado na política, / mais tempo leva a soldar" [Alexandre O'Neill]

Desconhece-se se a conversão política ao elogio mútuo, ensaiada pelos pretendentes do elenco presidencial, ontem na S.I.C., foi escolha acertada. Presume-se que a oratória é para continuar. Diga-se, porém, que a pasmaceira e o embaraço de ideias, reveladas aos indígenas por aqueles graciosos & espantosos "meninos", foram comoventes. O encontro Alegre & Cavaco foi um suplício televisivo, uma sabatina de estoicismo a quem o acompanhou. Antes um filme de Manuel de Oliveira. Sempre era mais sério. E afirmava audácia e muita réplica.

Os homens de ontem, no meio de gralhas e asneiras, não souberam discordar. Ao deficit Guterrista, lançado por Cavaco como fonte do mal pátrio, o poeta da caravela lusa, assobiou para as câmaras. Descaradamente. Sobre a OTA e os formidáveis números (volta, Guterres, estás perdoado!) do seu custeio, revelados pelo severo professor de economia, Alegre redigiu uma ode de vigilância monetária e um madrigal maior à periferia lusitana. O milagre económico estava a passar por ali. A reprimenda do dr. Cavaco foi autenticada, entre as barbas do poeta. As entrevistas corriam pelo melhor. O debate, nem por isso. Ou por causa disso.

É verdade que os candidatos se debicaram no recitativo sobre o Iraque. Mas foi tão inútil como activar o sangue democrata que, se calcula, corre em Bush. É certo que, por motivos insondáveis aos profanos, ambos os mestres pretendem "cooperação" ou "pensamento" estratégico no assento de Bélem. Cavaco, ele próprio, fez pairar no estúdio esse tremendo arrojo de querer ser uma "força de desbloqueio". Assim foi dito. Sem anestesia prévia. Sem consultar os ofícios do sr. Paulo Rangel ou pedir amparo ao fecundo J. C. Espada. Foi divertido à hora das telenovelas. Mas é pouco.

Sobre a magna questão da Justiça, os oradores fizeram ruído. De tal modo que o dr. Jorge Sampaio acordou, enquanto escrevia o último texto presidencial. Em casa, o interminável Souto Moura sorria, à altura do seu mandato. Mas, é bom de ver, o ardente estendal de ideias dos proponentes não encontra qualquer acolhimento nos eleitores, em especial quando o vício é de se falar cautelosamente e a medo da justiça e sobre ela. A seriedade nesta matéria foi um simples capricho discursivo. De facto, este assunto nunca existiu.

Duas questões ficam por esclarecer: como perdurará a instituição Presidência da Republica, se Cavaco persistir nessa sua nova monomania (a lembrar a outra, a do oásis) de querer ser, como Presidente, a "salvaguarda do futuro dos portugueses", que é coisa perfeitamente estéril de bondade? E que irá fazer Alegre com os votos confiados pelos eleitores, no caso de perder e Cavaco ganhar à primeira volta? A gente pasma só de antever o que poderia (pode) acontecer, em ambos os casos. Tomem fôlego, meus amigos. Não há recompensa possível. Olhem que "todos podemos morrer de sede em pleno mar". Tomem fôlego.