terça-feira, 2 de novembro de 2004


[Dia de Finados]

"Dia de Finados! (...) Por quem se está orando aqui? Dize-me tu, loirita, loirita, que vais saindo e molhando os dedos na água benta: por quem rezaste tu? Por teu pai, que te faltou em pequena, e de quem já não te lembras? por tua tia, que morreu há dois anos, e de quem só recordas os ralhos com que te oprimia? por tua velha prima, aquela parenta afastada, - afastada porque era pobre, e todos os parentes pobres são parentes afastados! - que te serviu de aia desde os quinze anos, e não te deixava chegar à janela, quando, ao princípio da noite, ias deitar a linha à carta dom namorado? Tu, por quem rezaste, morenita de olhos grandes e trança negra? Por teu irmão, o capitão, que só uma vez te deu um beijo, ao voltar da guerra? por tua mãe, que te batia em pequena por cada colher de açúcar que tu comias? por teu tio, o bacharel, que nunca te pegou ao colo para não te amarrotar? - E tu, minha triste e pálida, que orvalhas de pranto o teu livro de orações! é por teu marido que imploras a Deus? por teu marido, que tu enganaste? ou por teu marido, que te enganou? - Estais vós bem certas, bem seguras da consciência e da razão, de não ser ao acaso que rezais, sem caridade especial para uma ou outra alma, sem intenção por um ou outro morto? Juraríeis mesmo que não entra de nenhuma forma no sentimento da vossa prece nenhuma imagem, nenhuma memória, nenhuma lembrança dos vivos? - Sentis a vossa alma, nesta hora, toda recolhimento, toda religião, toda saudade? (...) Estais vós chorando simplesmente pelos que estão mortos, ou pelos que mereciam estar vivos? ..." [Júlio César Machado, in Contos do Luar]