terça-feira, 8 de junho de 2004


Eleições: o dia do desespero

Cansados do monóculo do Prof. Marcelo, confessamos que sentimos um apetite imenso para espadeirar as imprudências que (des)legitimam estas eleições. Aturdidos com tantas análises, e à falta de uma única que já se vê tem a graça do José Manuel Fernandes, cientes da dispersão do público pelos futebóis e esconjurados os exorcismos musicais, declaramos patrocinar este singular exame que invoca o país profundo a não folgar. Mesmo que o pronto a pensar não tenha a intensidade dramática do Delgado, a vibração conceptual do arq. Saraiva ou a frieza congelada do Bettencourt, eis-nos inspirados pela arte do melodrama. E não atendeis ao dizer que "a mais alta, como a mais baixa forma de crítica é uma autobiografia" [O. Wilde]. Não vos perdoaríamos.

Organizar o país, diz o valido da coligação. E zás, Barroso numa rendida mesura informativa diz-nos que o primeiro-ministro é o camarada Carvalhas. Com punhos de rendas, pretende amestrar as revindicações em tempo do Euro, ao mesmo tempo que vai retalhando privatizações, autopsiando a PJ, peregrinando guerras, escaqueirando a paciência do confrade luso. A ternura acariciante do Primeiro-Ministro pelos executores é uma carpintaria de repetição ad nauseam que provoca no indígena o recuerdo de Jorge de Sena: «os nobres palavrões [são] essenciais à vida». Daí a elevação com que o gentio trata a governação. Em especial o tacteante Portas e o impagável humorista Pires de Lima.

Das eleições europeias exala-se um hálito bafiento entre a galeria dos notáveis. Na coligação, sobressai o polido Deus Pinheiro, agora que deixou a vergonha em casa (ao mesmo tempo que a manta e o saco de golfe) e o extenuado Graça Moura, que em linguagem maneirinha pontifica. O Torga é que o topava bem. Adiante! Resta saber como justificará este PP, repleto de cocheiros e desordeiros, o incomodo de nada dizer sobre a sua posição face à política europeia, resignado que está a ladrilhar em silêncio a rota eleitoral. O vaudeville será luxuriante, cremos. Ou então a cambalhota europeia precisa de ser rebuscada, pelo que se aguarda os pinotes vocabulares do comissário Vasco Rato ou os versículos brejeiros do jovem Paulo Pinto Mascarenhas (aproveita-se para registar a eficaz campanha desse duo de profissionais, em apoio ao Bloco de Esquerda. Estamos, definitivamente, convencidos). A chinfrineira será comovente.

A sorrateira campanha de Sousa Franco, entretido em ócios de felicidade, reapareceu esta semana com um facto político noviciado: a putativa candidatura do professor às Presidenciais. Supõe-se que o país embezerrou. Pode ser que tenha mesmo dispersado, em solenes defumações de alecrim, fatigado por ver o tiro nos pés do caloroso pretendente. A nosso ver, a gente civilizada não abre clareiras assim. Avança, com prudência, sobre o tempo, chega primeiro, escreve depois. No resto, uma pergunta e várias respostas: que diferencia Sousa Franco de Deus Pinheiro? Sabem? Ou "la vraie vie est ailleurs"? E se é certo, como diria Sartre, que "é a intenção, como diz a moral kantiana, que deve ser radical", então onde está o desafio? O alarido da candidata Ilda não nos comove. A desafinada e guaguejante fanfarra sobre a Europa é tal que se sai quase sempre do assunto em andamento. Os indígenas não são mudos. Muito menos tolhidos intelectualmente. Resta o BE, esses versistas da radicalidade lusa, agora (?) convertidos à moderna Europa dos trabalhadores. No bucolismo de Miguel Portas não se vislumbra pregação sobre o projecto de construção europeia ou certezas sobre as competências das diversas instituições. Apenas dúvidas. O que é sugestivo. Ou não fosse Portugal um país de poetas.