[Barbeiros e Sangradores]
"In illo tempore, naqueles tempos quem sangrava os humanos era o barbeiro-sangrador, mas tinha de registar na câmara a sua carta e esta só a podia obter em Lisboa depois de examinado e aprovado pelo cirurgião-mór. Falta ao barbeiro sangrador ainda uma condição importante, conhecer bem e sujeitar-se inteiramente ao Regimento da sua arte.
O de Coimbra sumiu-se, mas existe o de Lisboa, publicado com outros pelo professor Virgílio Correia. Segundo nele se lê, todo o barbeiro sangrador tem de possuir no seu arsenal ... cirúrgico duas lancêtas estreitas para os meses de Verão e duas largas para os de Inverno; um espinho de lanceta; um sarjador para sarjar e sarrafar, sem ponta; uns pós restrictivos para estancar «qualquer fluxo de sangue»; duas ventosas muito pequenas para o pescoço, duas meãs, duas grandes e uma muito grande composta para barriga. Sobretudo, que não sangre sem indicação médica, mesmo que o doente o peça.
Abusou-se da sangria; Gil Vicente meteu-a a ridículo e mais tarde Molière troçou-a a bom troçar. Sangrava-se para se curar, sangrava-se para se prevenir a doença e até se sangrava para se manter a saúde: sangrar-se em saúde é daí que vem. Era o delírio vermelho (...) a nossa Câmara entendeu, honra lhe seja, que devia pôr um freio aos desmandos, obrigando sob pesada multa os barbeiros a só sangrarem sob autorização clínica e a recolherem o sangue não em malgas, mas em tijelinhas, para não excederem «as onças prescritas pelo medico.»
«Nesta câmara (6 de Março de 1574) se praticou que era grande prejuízo para a saúde, os barbeiros e sangradores, que sangram, tomarem o sangue dos doentes e das pessoas que se querem sangrar, em malgas grandes, com o que podem mal saber a quantidade das onças, que os médicos mandam tirar, pelo que acordaram e mandaram que nenhuma pessoa que sangrar, sangre senão por conselho do medico e será obrigado a trazer tijelinhas em que o tire e não em malgas grandes, nem outras vazilhas, sob pena de quem o contrario fizer, pagar 2.000 rs., a metade para esta cidade e a outra para quem os acusar. Pêro Cabral» (...)
Resta-nos saber como era redigida a carta de barbeiro sangrador. Ei-la:
«Gaspar da Costa cirurgião mor del rei nosso senhor etc faço saber a todos los correjedores autoridades juízes justiças oficiais e pessoas a que esta minha carta for mostrada e o conhecimento dela com direito pertencer que eu dou logar e licença a Francisco Rodrigues morador em a cidade de Coimbra filho de Francisco Rodrigues que ele possa sangrar sarrafar tirar dentes lançar ventosas por todos estes reinos e senhorios porquanto o examinei e achei auto e suficiente para usar do que dito é e portanto requeiro às ditas justiças da parte do dito senhor que por o dito Francisco Rodrigues asi usar do que dito é o não prendam nem mandem prender nem lhe consintam ser feito nenhum desaguisado nem em razão antes livremente o deixem usar do dito oficio de sangrador como dito é e assim o dito Francisco Rodrigues não sangrará pessoa alguma sem mandato do mestre sob pena de dous marcos de prata. Antº Borges; pg 50 rs. A qual foi apresentada em Câmara aos oficiais dela aos 16 de Julho de 1574»
[A. Da Rocha Brito, in Gazeta de Coimbra, 30/03/1944 ?]