segunda-feira, 26 de outubro de 2009

MANOLETINAS DE SALÃO - ALEXANDRE O'NEILL

"No fundo, não passamos de uns vaidosos, cheios de tiques e tremeliques, e não aguentamos passar à hora da verdade, mantendo donaire e galhardia. Quando sentimos o verdadeiro medo, o verdadeiro medo e o seu vento, abandonamos a postura, largamos o capote e corremos a buscar refúgio e um copo de água ao primeiro burladero que se nos antolhe nesta corrida da vidinha. Sempre foi, é e será assim. É bom? É mau? É. Vem tudo isto ao jeito de conversa fiada, mas nem por isso menos alinhavada, que o que eu quero é lembrar-vos que o medo desdobra um vento muito mais alevantado que ele. O medo. Considerai o que é o medo, aquele que faz das nossas mais indizíveis entranhas rodilha, que põe a mãe a fugir do filho e o pai da avó. Considerai as voltas e contravoltas em que ele nos mete no seu gosto de se burlar da gente, antes de nos vitimar. Considerai tudo isso e o mais o que houver a considerar. E perguntai: o que é na realidade o medo, essa avantesma que enrola e aperta os seus dedos em torno da nossa garganta? Nada que se possa sopesar. É o imaginado antes do vivido, é o sonhado antes do acontecido. O medo, depois de nos pôr a fugir, paralisa-nos. É essa a vitória do medo: criar paraplégicos trementes. E de paraplégicos trementes é feita boa parte de nós. Nos transportes públicos, nas repartições, que vemos nós todos os dias? Paraplégicos trementes a entreabençoarem-se por entre resmas de papel selado, os seus burladeros. Manoletinas de salão, fazemos na perfeição. Quando passamos para a arena, pernas p'ra que vos queremos? Será melhor não sermos tão enfáticos, tão opiniosos. Todos temos medo? Claro. Até o infligimos. Agora há uns que sabem que o medo desdobra um vento bastante mais alevantado que ele. Vamos deixar de ter medo?" [clicar na foto]
 
Alexandre O'Neill, in "Manoletinas de salão" - Escrita por medida, J.L., 5 de Março de 1985 [sublinhados, nossos]