segunda-feira, 27 de agosto de 2007


E.P.C. – um inventário de afectos

"Traz-me a planta que nos transporta
ao lugar onde surgem as douradas transparências
e a vida se evapora como um perfume;
traz-me o girassol enlouquecido de luz
"

[Eugénio Montale, citado por E.P.C. in "Tudo o que não escrevi", Diário I, 1992]

"Se estes versos [os de Montale] me comovem imensamente, é (também) porque através deles imagino, com assustadora nitidez, o meu modo de fazer a travessia da escrita. Nenhum sistema a construir, nenhuma mensagem fundamental para a humanidade (...)

O que fica? Apenas algumas indignações, o meu apego à linha de fronteira, o gosto das demarcações essenciais, meia dúzia de coisas que me importa defender (cada vez mais), algumas palavras ciciadas de ternura e amor, um inventário de afectos. E isto basta ... [E.P.C., idem]

Foto de Daniel Rocha, para a capa do jornal Público de 26 Agosto 2007

quarta-feira, 22 de agosto de 2007


É proibido ter memória!

"Um censor alucinado, maliciosamente alojado no ISCSP e a coberto de um presuntivo iletrismo informático, apagou o valioso e estimado acervo do Centro de Estudos do Pensamento Político (CEPP) laboriosamente lavrado pelo professor José Adelino Maltez.

O lugar (CEPP) que tão bem soube agasalhar um infindável rol de personagens que são pertença da nossa história; esse abundante inventário, ordenado e minuciosamente classificado de homens, mulheres e eventos da nossa memória colectiva; esse conjunto de verbetes únicos sobre o pensamento político português; os valiosos quadros cronológicos facultados; tudo o que era uma fonte de consulta obrigatória para estudiosos, leitores atentos ou simples curiosos, lastimosamente se esfumou da rede. O "reservado", onde tantas e tantas vezes recorremos para trabalhos biográficos ou simples iniciação, foi extraviado.

Essa biblioteca virtual, que com mérito e generosidade o professor José Adelino Maltez construiu e nos honra, sofreu um rude "apagão" às mãos da ignorância, da irresponsabilidade e da arrogância de "mandarinatos universitários" (citando Vital Moreira), que ontem como hoje têm da cultura, do trabalho e do ensino um insaciável desprezo. Que esses fantasiosos académicos, neste país de "muita vergonha", habitem o Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP) e a Universidade Técnica de Lisboa, surpreende pela sua gratuidade e impressiona. Não sabem dignificar a instituição, revelando, bem à maneira do que diz o vate Pessoa, que a cegueira voluntária é o pior dos atestados e defeitos da vida mental portuguesa. E que é proibido ter memória"

[in Almanaque Republicano]

segunda-feira, 20 de agosto de 2007


Folclore Pornográfico da Figueira da Foz

Reeditado pelo livreiro-antiquário Miguel Carvalho, saiu em edição fac-similada o raríssimo "Folclore Pornográfico da Figueira da Foz", publicado anonimamente em 1914. Esta curiosa peça de conteúdo popular e brejeiro, de costumes, imprecações, superstições e modas do povo da Figueira da Foz, apresenta saborosas quadras, adágios e contos que fazem parte (ainda) do cancioneiro popular humorístico local.

Sob chancela "Debout Sur L'Ouef - De Pé Sobre o Ovo", pertença de Miguel Carvalho, esta edição fac-similada (de 200 exemplares) foi apresentada na centenária livraria figueirense "Casa Havaneza", pelo próprio Miguel Carvalho e pelo professor António Tavares (antigo director do jornal Linha do Oeste), e é vendida pitorescamente (tal como outrora o foi, mas por outros motivos) por "debaixo do balcão", na venerável livraria da Figueira da Foz.

Na altura da sua apresentação, Miguel Carvalho, secundado por António Tavares, sublinhou que "tudo indica que os autores [do livro] serão Cardoso Martha e Augusto Pinto". Referem que terá sido o "Folclore Pornográfico da Figueira da Foz" como que um complemento ao estimado trabalho "Folclore da Figueira da Foz" (datado de 1910), produzido por ambos e editado pela "Tipografia, Livraria e Papelaria Esposendense, Rua Veiga Beirão, 7 a 9, Esposende", no ano de 1911 e 1913 (trata-se de II vols). E devem estar certos.

Na verdade, conhecíamos (via Miguel Carvalho) a obra. Não havia (para nós) referência alguma sobre ela, a não ser a sua presença num catálogo (... de livros raros e curiosos que pertenceram a um Distincto Bibliophilo, à venda na Papelaria Serra & Cª., Rua do Ouro, 72, lote 222, p. 26), onde aparecia juntamente com a citada obra de Marta & Pinto, "Folclore da Figueira da Foz". Surpreendentemente é atribuída ao "Folclore Pornográfico" a sua edição em Esposende (lugar onde foi editado o trabalho primitivo). Trata-se, possivelmente, de um erro do organizador do catálogo, porque na edição na posse de Miguel Carvalho não há referência ao lugar de impressão. Existe, ainda, uma breve alusão ao "Folclore Pornográfico" nos "Subsídios para a bibliografia da história local portuguesa", de António Mesquita de Figueiredo, ed. B.N., 1933 [onde é dito que se trata de um 8º de 16 por 11,5, 25 p., s.l.].

domingo, 19 de agosto de 2007


In-Libris – Especial Monografias

Saiu um catálogo de Monografias pela In-Libris (Porto). Apresenta um conjunto de peças estimadas sobre Vila do Conde, Póvoa de Varzim, Matosinhos, Felgueiras, Paços de Ferreira, Évora, Porto, Lisboa, Vila da Feira, Oliveira de Azeméis, Póvoa de Lanhoso, Vila Nova de Gaia Aveiro, Covilhã, Santo Tirso, Valongo, Valença do Minho, Melgaço, Algarve, Minho, Trás-os-Montes, Alentejo, Beiras, Açores e Madeira, entre outras de carácter regional.

A consultar on line.

Diário de Um Quiosque

A Figueira da Foz tem um respeitável número de blogs, que animam a vida dos indígenas locais. Não é possível conhecer a agitação política e social figueirense sem acompanhar a vitalidade e as iniciativas de alguns dos seus blogs. Numa terra onde os seus paroquianos estremecem de cultura, sem a compreender e praticar, fica bem registar a "movida" bloguística local.

No Jornal de Noticias d'hoje, pela pena de José Luís de Sousa, ficámos a conhecer o curioso blog "Diário de Um Quiosque", onde se narra as (des)aventuras de "um espaço de seis metros quadrados" com ledores fidelíssimos. Sereno, junto ao monumento a Fernandes Tomás na Praça 8 de Maio, Pedro Silva, ardina por paixão, não está de sentinela aos seus leitores mas com prazer e estima consulta-os. Que o "comércio" intelectual e o gozo da escrita assim o exigem. E a Figueira agradece.

Seu Eugénio Dutra Jr.

O amor e o gosto ao livro têm na Papiro marca pessoal. Habitualmente os seus visitantes e clientes sabem-no. Seu Eugénio – ali, em cima, sorrindo-nos – tem o hábito de satisfazer as manias dos bibliófilos ou de simples curiosos do papel escrito.

Inteligente e de muita simpatia, Seu Eugénio, fala sobre a literatura e arte brasileira, enquanto, com visível satisfação, comenta obras de Camilo, Eça, Saramago ou Vitorino Nemésio. Leitor compulsivo, o que é raro nesse negócio dos livros, tem o entusiasmo de um amador de livros, revelando no trato a proverbial alma do povo da Bahia, que aliás conhece bem.

Axé!

Sebos da Bahia - Livraria Papiro

Fica perto da estação da Lapa, em Salvador da Bahia. Na Av. Vale do Tororó, 28, um sebo bem curioso que nos deixa recordações carinhosas. Com um acervo farto, que vai da literatura à história, da arte ao livro jurídico, económico e didáctico, o sebo sitiado perto da Lapa, é local de peregrinação obrigatória. Há sebos assim: hospitaleiros, generosos e vivos, porque respiram a memória dos livros. A visitar.

sexta-feira, 17 de agosto de 2007


Terreiro de Gantois

Jorge Amado foi um dos doze Obás da Bahia [conselho de doze ministros do culto de Xangô - Obá é título honorífico no ritual nagô. Obá, "ministro de Xangô" ou "homem sábio", participa na administração do terreiro. Jorge Amado era Otun Obá Arolú (cf. Bahia Todos os Santos, 1945)].

Entre eles estavam o invulgar artista Carybé, o fotógrafo Pierre Verger, o pintor Genaro de Carvalho e o cantor Dorival Caymmi.

[Caymmi nasceu em Salvador no dia 30 de abril de 1914, na rua do Bângala, no bairro da Mouraria. Para Jorge Amado, Caymmi "cresceu na praia de Itapuã, nas malícias do Rio Vermelho, nas ladeiras da cidade antiga, na pesca, na serenata, na festa de bairro, no samba de roda, nos terreiros de santo, vivendo cada instante de sua cidade e de sua gente, alimentando-se de sua realidade e de seu mistério preparando-se para ser seu poeta e seu cantor". Caymmi foi Obá de Xangô do Terreiro Axé Opô Afonjá. Também, em 1973, cumpriu a cerimônia de assentamento de santo no Candomblé de Mãe Menininha do Gantois – ver aqui]

Jorge Amado, como se disse foi obá de Xangô, e frequentou o Terreiro Axé Opô Afonjá, da mãe-de-santo Aninha [Eugênia Anna dos Santos, m. 1938]

Antes mesmo, Jorge Amado tinha sido nomeado Ogã (protetor) pelo pai-de-santo Procópio. Dos muitos "títulos" honoríficos que teve no candombé, foi Jorge Amado, ainda, Ogã de Iansã no candomblé da Goméia [do pai-de-santo Joãozinho da Goméia, aliás chamado Jubiabá, iniciado no candomblé de versão "Angola". Joãozinho da Goméia teve uma vida curiosa e foi “espiritualmente” bastante polémico]

Dorival Caymmi - Oração De Mãe Menininha


Foto: "Jorge Amado (em 1972) pede a bênção à grande Ialorixá da Bahia, no Terreiro de Gantois"

quinta-feira, 16 de agosto de 2007


Bahia de Todos os Santos

"- Você já foi à Bahia, nêga?
- Não!
- Então vá ...
" [Dorival Caymmi]

... O baiano que faz da amabilidade uma verdadeira arte, que é arguto até não mais poder, que é cordial e compreensivo, descansado e confiante. Que desmorona com uma piada agressiva todo um edifício de retórica. Escondendo sob o fraque solene um coração jovem. Gostando de rir, de conversar, de contar casos.

Eis uma cidade onde se conversa muito. Onde o tempo ainda não adquiriu a velocidade alucinante das cidades do Sul. Ninguém sabe conversar como o baiano. Uma prosa calma, de frases redondas, de longas pausas esclarecedoras, de gestos comedidos e precisos, de sorrisos mansos e de gargalhadas largas. Quando um desses baianos gordos e mestiços, um pouco solene e um pouco moleque, a face jovial, começa a conversar, se fechardes os olhos e fizerdes um pequeno esforço de imaginação, podereis distinguir perfeitamente distinguidos o seu remoto ascendente português e o seu remoto ascendente negro, recém-chegado outro das florestas da África. De quem é esta gargalhada clara e solta se não de negro? De quem é esta solene consideração para com o doutor, que é salafrário personagem da historia que ele conta, se não do português imigrante, rude admirador dos mais sábios? Essa mulataria baiana, essa mestiçagem onde o sangue negro entrou com uma boa parte, não produziu o clássico mulato espevitado, pernóstico, egoísta, adulador e violento com os inferiores (...)

Iemanjá tem cinco nomes e muitos títulos. É a rainha e princesa do mar, é a mãe-d'água, é Nosso Senhor dos Navegantes e é a Nossa Senhora da Boa Viagem. Tem cinco nomes e por todos eles atende aos seus filhos bem-amados, os marítimos dos grandes navios, os mestres dos pequenos saveiros, os canoeiros que renovam diariamente a aventura da travessia da Barra em busca dos portos do rio Paraguaçu. Sua festa no Rio Vermelho, no mês de Fevereiro, não é a única que lhe dedicam os homens do cais da Bahia. Ela é festa também na Gameleira, na ilha de Itaparica, na Ribeira em Plataforma. Porque ela possui diversas moradas no mar que banha a cidade. Vive em sua pedra no Dique, vive na Ribeira, mora no Rio Vermelho. É múltipla como os seus nomes. É a lenda mais bela dos negros da Bahia (...)"

[Jorge Amado, in Bahia de Todos os Santos. Guia das ruas e dos mistérios da cidade do Salvador, Livraria Martins Editora, Setembro 1945 (aliás, 8ª ed., 1961) - sublinhados nossos]

terça-feira, 14 de agosto de 2007


Remigração

"Não me interessam mais nem as estrelas, nem as formas do mar, nem tu" [Cecília Meireles]

Após clamores das musas da venerável Bahia (que a magia é um trabalho iluminado) tomamos o pouso. Agora, e de novo, regressamos aos termos dos Campos do Mondego ... mar ao fundo. E digo-vos: atravessar de margem a margem o mar é uma "mareada" tal que nem um "aluá", feito por uma grande ialorixá, olvidaria. Enquanto isso, o humor caprichoso da bela Oxum sumiu-nos de vez. E Iemanjá foi para o mar. Não mais oferendas a podem acolher. Mas, ainda assim, a "água corre fazendo o ruído dos braceletes de Oxum". O tempo passou. O "despacho" com que cultivamos o olhar foi matéria de feitiço. E o poema, a espera da hora.

Sobre a Bahia de Todos os Santos cumpriu-se o prenúncio de Seu Jorge Amado:"eu te mostrarei o pitoresco mas te mostrarei também a dor". Ali tudo é gente acostumada, que a caminhada é sempre longa e saudosa. O fado do povo da Bahia uma labuta pesada, tortuosa, sofrida. E ao mesmo tempo alegre e intensa. A prosa, essa, é comprida, segura, balançada, sensual. As histórias, lindas! O protesto do mar vadio foi, para nós, uma simples malandragem. Ah, e o povo do candomblé, capoeiristas & outras irmandades um assombro de ternura. Mirámos a eternidade sem levantar a cabeça. Não foi pouco ...

Axé