terça-feira, 5 de setembro de 2006
Ribeiro de Melo - Um Editor na Banheira
Ricardo Jorge, colhendo o testemunho de gratidão de todos nós, fabricou um blog sobre a invulgar Editora Afrodite, de boa memória. O mérito é evidente. Satisfaz a nossa agitada memória livresca e contribui com preciosas anotações para a história do livro, que tem tratado (e bem!) do ofício do livreiro-editor em épocas de antanho (caso dos trabalhos de Artur Anselmo, Fernando Guedes, da Revista Portuguesa da História do Livro e da Revista da Biblioteca Nacional), mas tem descurado o estudo de "pequenas" editoras, fora do mainstream e outras mais "robustas", que fizeram história por diversos motivos. É o caso da Afrodite, mas poderia ser da Contraponto, da & ETC, da Fenda, ou até mesmo da Delfos, da Lux, da Ulisseia, da Arcádia, da Portugália, da Cosmos, da J. Rodrigues, da Moraes, da Atlântida, da Ática, Artis, Centro Bibliográfico, Edições SEN, Edições Gama, Estúdios Cor, Editora Argo, Edições Ágora, Limiar, Inova, Editorial Inquérito, Cadernos de Poesia, Lumen, C.E.P., Afrontamento, etc.
Assim, para o Ricardo, em agradecimento pelo seu utilíssimo trabalho, daqui lhe envio um fabuloso texto sobre Ribeiro de Melo:
"... dezenas de entendidos assistiram ontem à noite [dia 15 de Dezembro de 1971] ao entremez 'Um editor na banheira', representado por Fernando Ribeiro de Melo (Edições Afrodite) no seu rés-do-chão da Rua do Cabo, a dois passos de Santa Isabel. Quatro obras novas foram pretexto para a mais líquida conferência de imprensa de que temos memória ... [in Diário Lisboa, 1ª pàg. Do dia 16 de Dezembro de 1971]
"Porque pode ser Melo mas sobretudo porque é Ribeiro, o editor Fernando Ribeiro de Melo deu ontem à noite mais uma prova da sua compatibilidade com os líquidos ao fazer de dentro de uma banheira o lançamento de novas obras. Quando lhe perguntaram de ele sempre era ao Dali português, respondeu naturalmente:
'Cada povo tem o Dali que merece, embora alguns Dalis (é o meu caso) não tenham o povo que merecem. Mas enfim ...'
Neste 'enfim' ia uma banheira de sugestões (...) O editor entra na banheira, senta-se (leva calções pretos para obviar á pergunta 'vestiu calções?'), acende um cigarro, deita as primeiras cinzas num bacio (este branco, por contraste) e perora assim:
'Meus senhores, com a vossa colaboração espero a eficiência de uma comunicação ao público sobre estas obras que o público deve ler!'
Sabe-a toda, e sabe que a sabe toda (...)
A cena passou-se ontem, à noite, como dizíamos, numa banheira. Para sermos precisos, a banheira estava (e está) na Rua do Cabo, nº 10, rés do chão esquerdo, à direita de quem sobe. Quanto aos presentes, eram cerca de quatro dezenas, mas incluíram representantes de quase todos os órgãos de Informação da capital e até mesmo gente da Rádio, do Cinema e da Televisão. Se fosse no S. Carlos de Há cem anos teria sido um inapagável 'sucesso de binóculo'.
Algumas palavras acerca do editor: é de facto editor (edita livros), não sobressai pela estatura (relativamente meã), usa bigodes de ponta retorcida, anda pelos trinta, trinta e pico. Perde dinheiro, ganha dinheiro. Agora está interessado em ganhar, de onde a conferência de Imprensa na banheira com permissão de traje de passeio: era o que rezava o convite. Os livros são giros, anotamos o primeiro volume da História Trágico-Marítima de Bernardo Gomes de Brito (...)
Dois diabos ensonados misturavam-se com a assitência, enquanto duas beldades do conhecido editor (Palola e Eugénia) iam servindo e retirando o alvo bacio de louça. Num requinte de malvadez publicitária Ribeiro de Melo pintara 'slogans' editoriais sobre a cútis das raparigas.
'Sinto que há entre nós muita falta de alegria', comenta ele (...)
Fui comido pela máquina fotográfica, casquina um verso de Mário Cesariny de Vasconcelos. A propósito, estava presente o Cesariny. E estava o Cruzeiro Seixas. E o Júlio Moreira. Entre as muitas outras pessoas que deixaram cartões ou de algum modo se fizeram representar anotámos os nomes dos srs. António Palouro, António José Forte, Vítor da Silva Tavares, José Vaz Pereira, Cuna Telles, António Damião, Nuno Júdice, Manuel Gusmão, Sam, João Paulo Guerra e Fernando Ribeiro de Melo. Que estava a ler (ler mais acima) dentro de uma Grande banheira circular forrada a preceito pelo artista plástico João Vieira. De calções pretos"
[F.A.P. (Fernando Assis Pacheco?), Diário de Lisboa, pag.2, 16/12/1971]