domingo, 5 de junho de 2005
Os folhetos do companheiro Vasco
O repositório de curiosidades do devoto Vasco Pulido Valente no Público é um tratado de raiva, entaramelado por discursos recitados à paróquia liberal, mais ou menos condoído em testemunhos de gratidão poética & de alegria poupada, que nos faz sorrir de felicidade moral e quietação intelectual. A última vítima do literato militante é essa "construção utópica" de nome Europa, claro está, "inventada à revelia do eleitorado" indígena pelos domésticos de Bruxelas ou, em rigor circunspecto e espírito chorado, esse curioso "modelo social" europeu que ameaça os incréus do neoliberalismo. O Tratado Constitucional Europeu estaria, portanto, refém desses malsins eurocratas possuídos de pecados horripilantes e em desarmonia com os escritos agastadiços do piedoso companheiro Vasco. É bom de ver que não podemos ficar indiferentes e por aqui, ofegando à charamela do senhor Pulido Valente. O argumento do dr. Vasco é deveras fastidioso. E tresvariado, bem entendido.
As minúcias presentes no "Não" (com aspas) francês, holandês ou noutros afadigados referendos que se lhe seguem podem ser lidas, de facto, como uma recusa total das políticas económicas e sociais entoadas pelo directório europeu. Que o francês solte um brejeiro libelo contra o "canalizador polaco", que proteste sobre a frontaria da libérrima deslocalização do factor capital ou que os protestantes holandeses fiquem atormentados pela presença do ímpio árabe, não espantam por aí além. Na essência, os pacientes europeus, fiéis ao seu sentimento instintivo de bem-estar, estremecem nas desvantagens que o modelo neoliberal lhes acena.
O incómodo que a eficiência da globalização conduz, nivelando por baixo poder de compra, estilo de vida e bem-estar social, excedeu o inimaginável. Pretender a classe política e suas famílias que as massas exprimam sentimentos de afectuosidade ás prometidas virilidades económicas de Bruxelas, quando se verifica uma economia abaixo da fronteira de possibilidades de utilidade e se constata uma ineficiência das políticas seguidas, é mero desejo impotente. Não há razão alguma para acreditar nas "graves" decisões dos governos europeus.
Estes, sem politica monetária, cambial ou orçamental para manipular, com taxas de juros baixas, sofrendo os efeitos da violenta abertura dos mercados mundiais, assistindo, castrados, à deslocalização e consequente perequação dos factores de produção, não podem esperar, daí, qualquer aumento de receitas, ou melhoria do comportamento da tributação, para cumprir a bondade da PEC. E, portanto, incapazes de recitar a oração fúnebre ao modelo neoliberal, tomam medidas para "emagrecer" o Estado-Social, que passa a ser doravante motivo de todos os males.
Por seu lado, a população europeia, não entendendo a suposta falência do seu modelo social, laboriosamente construído ao longo de gerações, questiona, o óbvio: quem ganha e quem perde com a liberalização selvagem? Fora o José Manuel Fernandes, ainda em expiação do seu delito de maoísta envergonhado, poucos têm a ganhar na Europa. O prodígio da auto-ilusão que o modelo social europeu é fonte do mal, é uma bravata que fica bem aos zeladores de uma certa Europa, mas que não diz nada ao "povo", que por isso retirou utilidade da situação de voto. A incursão europeia, descansem, não acabou de vez. Não capitular ao regaço do liberalismo serôdio do dr. Barroso, não pode querer significar estar-se contra o Tratado Constitucional Europeu, não beneficiar das virtudes de um espaço único, cultural, social, económico e politico, que estabeleça as necessárias imposições para a livre troca no comércio internacional. Estamos disso certos.