sábado, 13 de novembro de 2004
Arafat
Há pessoas que não têm emenda. Seres desprovidos de espanto. Falta-lhes o tempo, o espaço, a alma. A adulação e a hipocrisia estão-lhe no sangue. São valorosos ou melodramáticos quando retratam os seus favoritos, submissamente. No esplendor da sua própria miséria política, rodeados de prelados, obedecendo aos vigias espirituais, fazem de acusadores públicos e privados. A sua cegueira ideológica é um singular espectáculo de horror. São o que dizem: "quando estou à beira no passeio, sou eu o caçador". A aprendizagem da vida resulta-lhes sempre numa ignorância, mas assumem ser proprietários de ideias, homens com cio. Esquecem que a hora da nossa morte são todos os dias. Na Muqata, nome pelo qual alguns adoçam críticas brejeiras aos seus próprios fantasmas de escribas acocorados; em Ramallah onde as manifestações de pesar deixam de ser um jogo da vida, para passar a mostrar uma qualquer indecência civilizacional; no Iraque, onde os cadáveres nossos de todos os dias nos transmitem, a seus olhos, a glória do aniquilamento piedoso dos seus habitantes. Tanto azedume na vida. Tanto assombro pelos mortos. Tanto vazio enorme no coração.
Arafat morreu. Deixou um sonho que parece impossível. Culpa sua, também. Mas o epitáfio que grava na história dos homens é um cântico à resistência que habita em cada cidadão que se pretende livre. Mesmo que a sua biografia o contradiga. Mesmo que apóstolos sejam outros. Um ser lendário que acaba. Daí o respeito que o crepúsculo da tarde nos trouxe. E que não vai morrer.
2 Olhares: Yasser Arafat (1929-2004) O Princípio de uma Nova Era / (1929-2004)