domingo, 10 de outubro de 2004
[Não há já segredos]
"... Não há já segredos.
Os que governam acham-se informados de tudo quanto pensam os governados. Não têm mais que ler, e resguardar-se. Acabou para os governos a surpresa, a emboscada, a perseguição encoberta.
Esses perigos já não existem realmente senão para os governados, que têm ainda contra si, posto que mantidos e pagos por eles próprios, os únicos poderes ocultos que subsistem no regime das sociedades modernas: os recônditos planos de guerra entre governo e governo, a diplomacia, a polícia secreta, a intriga de corte para corte, a espionagem sobre cidadãos suspeitos, a violação das cartas, a visita domiciliária, a busca de papéis de cada um, etc.
Se nós particulares, tivéssemos de garantir-nos contra os governos com a mesma segurança com que os governos se acham garantidos contra nós, a primeira obrigação que lhes imporíamos seria de terem um jornal e de imprimirem nele em cada manhã absolutamente tudo quanto pensassem de nós, para bem e para o mal, mas principalmente para o mal, porque o importante, porque o essencial é, sobretudo, isso: avisarem-nos do que nos prejudica (...)
E sempre que o chefe do Estado ou os seus ministros pudessem ser acusados de não nos descomporem suficientemente, de nos não injuriarem na medida de todo o seu desejo, chamá-los aos tribunais como impostores e como sediciosas, e obrigá-los a dizer tudo, aplicando-lhe para esse fim a tortura, exactamente como eles nos faziam a nós no tempo em que, em vez de escrevermos nos jornais, nós nos calávamos com o jogo ..."
[Ramalho Ortigão, in As Farpas IX]