segunda-feira, 24 de maio de 2004
Ferreira de Castro [1898-1974]
Nasce em Ossela (Oliveira de Azeméis) a 24 de Maio de 1898
"... Era de Inverno. Ia de chancas, friorento, enroupadito. Creio que foi minha mãe quem me acompanhou até meio do caminho. Não me recordo bem. As lembro-me, nitidamente, da minha entrada na escola. Lá estava, ao fundo, à secretária, instalada sobre um estrado, o Sr. Professor Portela. Era gordo e de carne muito branca e fofa. No primeiro plano, as carteiras com os alunos chilreantes. Alguns conhecia-os eu cá de fora. Mas tomavam, ali, para minha timidez, o papel de inimigos.
Eu sentia um respeito enorme por tudo aquilo e estava envergonhado. Sentei-me a uma das carteias e, não tendo coragem de levantar os olhos, fixei-os no abecedário, que crescia e de deformava constantemente. Nesses primeiros dias, a minha única distracção era seguir as moscas que passeavam no sujo rebordo do tinteiro.
Veio, depois, a inveja, a única que tive na minha vida: a de não ser igual aos outros, a de não possuir o seu à-vontade, a de não ter o sangue-frio de que eles dispunham e graças ao qual brilhavam nas lições mais do que eu, embora soubessem menos. Eu era bom aluno. Tinha, porém, uma existência triste e afastava-me quase sempre dos meus condiscípulos. (...)
Por esses tempos, passava, todos os dias, no largo para onde dava a escola, uma rapariga de 17 ou 18 anos - linda, linda para mim, como nunca tinha visto outra. Chamava-se Margarida (...) a Margarida continuava a cruzar, indiferente o largo, sem voltar os olhos para a janela da escola, de onde eu a seguia com sofreguidão. E se me fazia encontrado no caminho por onde ela passava, voltava a cara sem dirigir à minha timidez uma só palavra, um olhar sequer. Eu sofria com esse desdém e desesperava-me por ainda não ser homem. (...)" [Ferreira de Castro, Memórias in «Vários Estudos sobre Ferreira de Castro e a sua obra», 1938]
"A obra de Ferreira de Castro é como a de um filósofo pastoral: vive da resistência que faz às desgraças do seu século. Por isso, como a de Rousseau, parece-nos ingénua quando a moda è libertina; e é naturalmente afectiva e cordial quando toda a literatura experimenta a necessidade de incorrer em excessos. Vemos agora que essa obra preparava a clarificação duma nova era. (...) Ferreira de Castro era um desses heróis-meninos, incapazes de corrupção, por muito que sofram e conheçam o mundo. O pudor, quase o que se chamaria a nobreza dum preconceito proletário, nimbava os seus romances e narrativas. Se vivesse mais tempo, acharia os costumes insuportáveis, agora que certa debochada sinceridade, própria duma erudição sentimental e não de uma cultura cerebral, toma o lugar da experiência humana (...) [Agustina Bessa-Luís, in In Memoriam de Ferreira de Castro, 1976]