quinta-feira, 15 de abril de 2004
[Para o Luís da Natureza do Mal … para que não pense que o dedico a outro]
Passa por mim na Livraria
"Par délicatesse / j’ai perdu ma vie"
Não há paixão maior que deambular, com carinho e ternura, entre estantes de papéis novos ou velhos, poeirentos ou não, salvo a alegria e a paciência de encontros d'amores furtivos. Que o livro, como diria Joaquim Pessoa, é como uma mulher e no qual o amante-leitor "observa com os olhos apaixonados, mexe com um frémito de emoção, palpa com gozo, cheira, luta por ele e, quando o conquista, uma alegria enorme, uma alegria de posse lhe invade as quatro assoalhadas do coração". Eu sei que este "brincar da criança" (chez Freud), este sobressalto na alma de ver, ali, apertados em tão doce desordem tamanhos fólios, é uma maviosidade sem qualquer perdão. Compreendo como somos prisioneiros de um qualquer opúsculo, manuscrito, novela ou romance, seja pela impressão, papel, corte das folhas, corpo do livro, margens, pelos ferros a ouro nas lombadas, pelas gravuras em separado, simplesmente brochado ou mesmo encadernado. Mas também, confesso, que o local dessa inesperada declaração de amor não é indiferente. E as livrarias são esse lugar do "corpo revoltado", "moral de prazer" ou simples locus de cumplicidade.
A nossa "indisciplina”" começou por uma pequena drogaria da Avenida Madrid onde se comprava revistas e livros em segunda mão. Não mais lhe perdemos o gozo. Depois, já liceal (Camões, evidentemente) e pela companhia do mestre e amigo Freire de Andrade, frequentámos a Barata na Av. Roma, para a rápida vistoria diária. Quando descobrimos as livrarias da Baixa e do Bairro Alto (ao mesmo tempo que a Capela do Rato) foi uma desaustinada emoção. A Barateira era um mergulho imprevisto, o Castro e Silva um baque retumbante, a Livraria Popular um desafio. Na Bertrand lambuzávamos as prateleiras, na Bucholz professávamos exclamações, na Opinião rimávamos. O tempo era de partida, e em Ovar na Livraria Carvalho abríamos gavetas, bem ocultadas com JPP e livros da Centelha. Havia, também, a "biblioteca" e os LP’s rolante de M. Freire, a Estante em Aveiro e outras mais que o tempo esqueceu. E o Porto ali tão perto. Na Leitura era o alarido, na Lello o olhar ofegante, na Cedofeita esgadanhávamos resmas em perfeito desassossego. Sempre sem trair as palavras. Abençoadas livrarias.
Discretos, nos tempos de Coimbra, desembestávamos (por vezes em bando) na Baixa. Na saudosa Atlântida despejámos o segundo andar; na Bertrand não fazíamos cerimónia, no Machado d'Almedina acumulámos esplendor. Não havia a Finisterra, mas a Unitas e o armazém do Soveral resolvia o mau humor. Depois ... depois ficámos mais inspirados. Até hoje. Com aprumo lá vamos à Ler Devagar, FNAC do Chiado, novamente a Bertrand. Nunca fomos vencidos pela fadiga, mas agora mais refinados, gostamos de ficar a escarafunchar nos alfarrabistas, pescar na Feira da Ladra, depenicar em pequenos armazéns ainda escondidos. É sempre bom voltar à Histórica Ultramarina, ao Nunes de Benfica, ao Artes & Letras (descansando o corpo), ao actual Bobone, à Barateira, ao Arquimedes no Carmo, à prelecção com o Ferreira da Livraria Antiga do Carmo e ... muitas mais. A peregrinação continua. Amanhã lá estaremos. Na boca um sorriso. Sempre!