terça-feira, 27 de abril de 2004

O Inquieto Blasfémias

Alguns dos nossos bloguistas asseveram, ao longo dos seus posts, curiosos argumentos e interpretações, alguns bem delirantes, em torno do 25 de Abril e do seu posterior desenvolvimento. Parece que de repente todo o mundo deu em “historinhador” tal o uso virtuoso desse antiquíssimo modo de ser português: imaginação excessiva ou simples provincianismo, para citar Pessoa.
Partir daí para ladrilhar teorias com fundamentações mais ou menos mecanicistas, verbosas e maniqueístas, reconstruindo os acontecimentos, ainda bem recentes, a seu belo prazer, é um passo que não sabem resistir e teimam em exibir. O passado histórico é visto, quase sempre, como motivo teatral, dado que o “teatro” histórico é um simples desfile de figurinos sem que as estruturas socio-económicas e as suas correspondentes relações estejam presentes. Curiosamente, a uma vulgata marxista reaparece, agora, uma nova gramática pós-moderna assente numa interpretação da história com base numa “lógica dum poder pessoal” (exemplo disso mesmo é o olhar de VPV), sem que as relações sociais e económicas existam, as ideologias elucidem, o direito configure ou os jogos geoestratégicos e políticos determinem. A probidade desta enunciação será muito excitante para alguns, mas jamais permitirá que se diga que o 25 de Abril não foi essa “exemplaridade democrática” que nos conciliou connosco e com as nações civilizadas, nem que seja este “país habitável de todos” (EL).

O Rui d'O Blasfémias é um indivíduo investido de uma missão: deixar sair a acidez e o azedume que lhe vai na alma. O mal do Rui, já se vê, é estomacal. O seu post tem a acção que tem, pois ao que alvitra o 25A nasceu morto. Pax à sua alma, portanto.

No entanto, a novela reescrita do 25A pelo Rui – apesar de ser uma alvoroçada historieta pouco sublime – levanta um conjunto de questões, a saber: poderia uma "nova geração de políticos", saídos do regaço Marcellista, ter contribuído, com a sua chamada ao poder, para que a história do país fosse outra? Mas de que "nova geração de políticos" se fala? Que "história" seria essa, assim tão grave e empolgante, que se reconstruiria a partir do poder fascista, supostamente desarticulado, sem rupturas ou radicalidades evidentes? Ou de outro modo, como se faria essa transição sem as conflitualidades que o 25A revelou?

Ninguém saberá. Regista-se, apenas, que se caminhou, com o esgotamento do modelo salazarista em 58, para uma maior radicalização de grupos sociais, políticos e de reflexão. Que não foi por mero capricho que surgiram as crises estudantis de 62 e 69, as greves da Carris, Lisnave, Bancários, TAP, etc…, ou as movimentações de alguma parte do clero, aqui e nas colónias. E que frente à impossibilidade de qualquer abertura politica e eleitoral, os sectores católicos (O Tempo e o Modo, sectores Sergianos, a JUC e a JOC, são disso exemplo), os economistas liberais, os da tertúlia em torno da filosofia portuguesa (perseguidos e expulsos do país), o Movimento Republicano Português, os movimentos oposicionistas de tendência socialista e comunista, os dissidentes do PC, a ala liberal sempre perseguida e vilipendiada, a SEDES, etc., todos eles sentiram, subitamente, a necessidade de mudar a sua praxis politica e radicalizarem o discurso e modos de actuação. Assim sendo, de quem se fala quando se fala em "nova geração de políticos" durante o Marcellismo?