segunda-feira, 8 de março de 2004
"Desde o princípio tiveram os homens de se julgar semideuses caídos de sua graça por obra da mulher; e logo depois tiveram que se inventar redimidos através do ventre de nova mãe, essa santa, essa capaz de conhecer Deus no seu ventre e de no seu ventre incarnar o deus salvador, depois chamado o filho do homem – que ironia rebuscada – na sua vida e nos seus actos exemplares. Porque o homem vai fazendo o mundo e cavando o seu tumulo, e vai chamando a mulher, então dizendo-lhe «mãe», para que esta lhe nomeie o mal e o bem, e lho signifique, e tome em si o absurdo insuportável da ordem das coisas, e vai o homem fazendo o mundo sobre o ventre acolhedor e produtor da mulher, então dizendo-lhe «coisa de mim», e posto na mulher o mal e o bem e o absurdo insuportável da ordem das coisas é então justo que seja ela a primeira vítima, ela a culpada até ao momento em que finalmente o homem chama a mulher, dizendo-lhe «mulher», e repara que está vazio o lugar a seu lado"
[Novas Cartas Portuguesas, Futura, 1974]