quinta-feira, 2 de outubro de 2003
AQUILINO, EM PÉ-DE-PÁGINA
"Um escritor, um velho, esta cercado de retábulos, Horácios e Anatoles, poeiras quinhentistas - e de samarra pelas costas. Trabalha de sol a sol, desunha-se na escrita apesar de ter aprendido com os anos os mil e muitos golpes com que se talha uma peça de prosa: aplainada aqui, nós salientes acolá, remates em boa conta, o quantum satis. Tem voz rude e lábio sensual, nada de boas maneiras. Além disso é aldeão e (note-se) sem nome de senhoria, coisa que os homens de letras cá da republica não perdoam visto que são, eles próprios, noventa por cento da província mas com famílias, rendeiros e prestigio em meninos.
Um Pascoais, por exemplo, tem à partida larga vantagem na cidade dos letrados justamente por ser do interior onde tudo é puro, autêntico e etc., e tanto assim que até se lhe respeitam as ideias de querer redimir o país, dividindo-o em Famílias e Casas. É acima de tudo poeta, e notável, mas lá em Amarante tinha património, nome, laços de influência.
O tal escritor de sol a sol é que não dispunha desse passado para se abonar. Aprendera por cartilhas de padre lapuz, com o rosa rosae pelo meio da tabuada e, pois bem, assim que se apanhou fora da aldeia deu as boas noites ao catecismo e à família real e decidiu entregar o corpo ao manifesto [...] Os caricaturistas desenharam-no então em estilo Malhadinhas: olho sagaz, queixada forte, perfil a traço grosso ..."
[José Cardoso Pires, in & ETC, nº1, 17/01/1973]