sábado, 16 de agosto de 2003
NÃO SEI QUE MUNDO É O VOSSO
... meus caros bloguistas! Nesta hora insana onde o fogo tudo consome, com os "lucros e perdas" do exercício de reflexão a ficar para as Calendas, por motivos, aparentemente, estético-políticos, a blogosfera portuguesa roça a insensibilidade pueril.
Quando não se exige explicações e responsabilidades sobre a miséria que se abateu em tantas famílias, que o fogo e o desleixo do Homem originaram, é porque não a reconhecemos como tal. A inteligência politica nunca foi o nosso forte, quando se trata de coisas simples e reais. E, por isso, nunca tantos se engolfaram em pego que não saberiam voltarem. Fazemos incontáveis posts sobre arte, literatura, cinema, amores e desamores, paixões e afectos, guerra e paz, registos em espírito varonil com demandas e vigílias aos profanos, ou grandes canseiras poéticas que o coração permite. Temos facilidade em escrever, com paixão, sobre a "textura de um lábio", o sorriso da miúda do lado, a quietude de um lugar. Mas somos incapazes de comentar o horror que nos invade a alma, a incomodidade do tédio dos discursos oficiais, a vertigem da sociedade de espectáculo, a incapacidade de quem organiza e decide; somos todos cúmplices nesta enorme amnésia social de não haver culpados de coisa nenhuma; em nome da sedução intelectual, anulamos o pensamento da revolta face as assombrosas afirmações proferidas por governantes castrados, que nestas ocasiões aparecem, de todos os lados.
Esquecemos que "há mundo para além do círculo que se vê com os vossos óculos de teatro; há mundo maior do que os vossos sistemas, mais profundo do que os vossos folhetins; há universo um pouco mais extenso e mais agradável sobre tudo do que os vossos livros e os vossos discursos" (Antero de Quental). Por isso continuamos como se nada houvesse existido. E quando o espanto nos atraiçoa a crueldade dos tempos, refugiamo-nos numa melancolia do politicamente correcto, numa pretensa revolta encurralada - concha dos céus. Quando nos dizem que "os bons annos nam os dá quem os deseja, senão que os assegura", debatemos num charivari medonho, e as causas morrem sempre solteiras. Não temos emenda. Nunca!
«O MAIS BELO ESPECTÁCULO DE HORROR SOMOS NÓS.
Este rosto com que amamos, com que morremos, não é nosso; nem estas cicatrizes
frescas todas as manhãs, nem estas palavras que envelhecem no curto espaço
de um dia. A noite recebe as nossas mãos como se fossem intrusas, como se o
reino não fosse pertença delas, invenção delas. . Só a custo, perigosamente, os
nossos sonhos largam a pele e aparecem à luz diurna e implacável. A nossa miséria
vive entre as quatro paredes, cada vez mais apertadas, do nosso desespero. E essa
miséria, ela sim verdadeiramente nossa, não encontra maneira de estoirar as paredes.
Emparedados, sem possibilidade de comunicação, limitados no nosso ódio e no nosso
amor, assim vivemos. Procuramos a saída - a real, a única - e damos com a cabeça
nas paredes. Há os que ganham a ira, os que perdem o amor».
[António José Forte, Antologia Surrealismo/ Abjeccionismo]
«Alma! Eis o que nos falta. Porque uma nação não é uma tenda, nem um orçamento um bíblia. Ninguém diz: a pátria do comerciante Araújo, do capitalista Seixas, do banqueiro Burnay. Diz-se a pátria de Herculano, de Camilo, de Antero, de João de Deus. Da mera comunhão de estômagos não resulta uma pátria, resulta uma pia. Sócios não significa cidadãos». [Guerra Junqueiro, Pátria]