► “No texto de abertura de Ou o poema contínuo (2001) – redução
da sua “poesia toda” a uma “súmula”, não a uma antologia – Herberto Helder
designa a época como a de um tempo de redundância: “O livro de agora pretende
então aceitar a escusa e, em tempos de redundância, estabelecer apenas as notas
impreteríveis para que da pauta se erga a música”.
Insinua-se aqui uma atitude radical que o poeta seguiu
rigorosamente, ao fazer com que a sua obra existisse apenas por si mesma,
impermeável a interferências mundanas, erguendo-se fora – e contra – o ruído do
mundo. Isto significou uma enorme severidade: de Herberto Helder, não
conhecemos senão uma
auto-entrevista, umas raras fotografias e muito pouco da pessoa do
autor e da sua vida civil, muito embora muitos poemas, e sobretudo a prosa de
Passos em Volta e Photomaton & Vox, estejam cheios de referências crípticas
de ordem autobiográfica.
Mas de certo modo Herberto Helder tudo fez para erradicar a
pessoa do autor, ou melhor, para evitar que ele surgisse como mediação entre a
sua obra e os leitores. Retirou-se para deixar a obra fazer o seu percurso e
resplandecer em total autonomia. Atravessou incólume um tempo em que se
impuseram as determinações da “vida literária” e em que as regras do campo
literário ditaram aos autores a necessidade de se mostrarem e aparecerem para
além dos livros, de entrarem no jogo que faz da literatura um pretexto para
outra coisa. Isto significou a afirmação de uma autonomia incondicional da
obra, segundo um preceito que o modernismo tinha reivindicado e seguido como um
dos seus princípios estético-poéticos fundamentais.
Ao retirar-se e subtrair-se a todos os procedimentos que
interferem nessa autonomia, Herberto Helder ganhou a imagem do poeta que recusa
apresentar-se e representar-se nos palcos público e mediáticos. E assim se foi
forjando algo a que poderíamos chamar o “mito Herberto Helder”, o mito do
“poeta obscuro” que, com o seu gesto de retirada, desafia algumas regras da
legitimação e consagração. De certo modo, ele foi um elemento escandaloso (não
o único, acrescente-se) da grande família literária, aquele que não contribuía
para os momentos festivos nem respondia aos apelos do culto, renunciando
sistematicamente a todos os prémios, segundo aquele princípio flaubertiano de
que “as honras desonram”. Por essa distância, ele acabou por ganhar uma aura -
aquela “coisa” que desde Baudelaire os poetas tinham perdido e não se tinham
dignado a recuperar - que não encontramos em nenhum outro poeta seu
contemporâneo.
Mas o mito Herberto Helder jamais se construiria por exclusiva
força destas circunstâncias. Fundamental, neste processo, é a própria poesia,
que tem uma tonalidade órfica e, sem deixar de ser profundamente do nosso
tempo, parece recuperar uma voz antiga, fazendo entrar nela uma dimensão que
não só não pertence ao nosso tempo, não é de aqui e de agora, mas nem sequer
pertence ao tempo da História. Vem de um tempo mítico, como os poemas das
civilizações antigas ou governadas pela ordem do ritual e do tempo cíclico que
ele traduziu. Muitas vezes, ela reenvia para o imemorial que fala através da voz
do mito e está fora da nossa cronologia.
De certo modo, a poesia de Herberto Helder, nas suas anacronias,
no encontro que nela se dá entre o mais contemporâneo e o mais antigo (uma
antiguidade sem datas) obriga a colocar esta questão: será que ainda é possível
a poesia num mundo completamente secularizado? A sua poesia restitui algo que
nós, ainda que não o saibamos formular com exactidão, sabemos que foi perdido
ou só já tem uma existência secreta e remota. E disso se alimentaram também as
projecções e imagens públicas a que se prestou a figura de Herberto Helder
enquanto poeta”.
FOTO de Alfredo Cunha
[António Guerreiro, in jornal Público, 25 de Março 2015, p. 4]