terça-feira, 30 de setembro de 2003

MAU PARECER

"... A verdade é que ultimamente surpreendera-se a falar só consigo próprio e, durante os monólogos, dizia palavras cujo sentido não compreendia. Chegou mesmo a ter de consultar os melhores dicionários. Outras vezes não compreendia o sentido verdadeiro de frases inteiras. Viu-se obrigado a reatar os estudos de filosofia para atingir o grau de cultura que os seus monólogos revestiam. Se não fosse ter de se interpretar a si mesmo já teria posto de parte todos os estudos. Quando ajeitava a gravata, em frente ao espelho, conversava largo tempo com a imagem reflectida. Ainda não chegara a uma conclusão certa através das conversas mas havia lá qualquer mistério prestes a desvendar-se que o atraía na força de um vício. Ate então apenas descobrira que só por acaso se parecia com o seu retrato reflectido no espelho. Por vezes achava-se com mau parecer – em relação a quem? ..."

[Manuel de Lima, Malaquias ou a história de um homem barbaramente agredido, Contraponto, 1953]