sábado, 29 de outubro de 2005


"Junto ao túmulo de Joaquim de Carvalho"

"Meu querido pai, apenas quero dirigir-te a minha última oração de amor bem junto à tua derradeira e já etérea presença física, para que partas e saibas antes da despedida que levarei no meu sangue violado a tua estirpe e que afinal estás enganado: - a tua sepultura não é esta fria cama onde hoje singelamente te trazem a imensa ternura e o imenso respeito duma Nação (duma Nação? Não, querido pai, de todo o mundo culto, dos inúmeros amigos e admiradores teus que a esta hora te choram por terras ultramarinas, brasileiras, espanholas, francesas, italianas, argentinas ? sei lá por onde mais o teu nome era bandeira ao vento da cultura, da justiça e da independência moral!) Não, que a tua ultima morada não são as imutáveis arestas destas pedras, mas a humilde charneca do sangue igual da tua companheira, a nossa mãe. Aí o teu repouso e a tua permanente reaparição. Estaremos eternamente contigo porque não foste apenas o pensador, o escritor e o professor notabilíssimos ? mas o pai santo, no seio da família, e o santo homem, no seio da comunidade. Dignificaste a palavra cristã. Honraste os valores humanos da generosidade e da tolerância. Tudo o mais que criavas era apenas eco da tua bondade e da tua natural inteligência sensível. Jamais poderei deixar de te ver junto aos livros e debruçado sobre a vida, esse livro mestre de livros. Eras indomesticável ou só domesticável às causas supremas da redenção e da valorização do homem cá na terra. Os homens que tu mais amaste forma santos como tu, chamassem-se Spinoza ou Antero. Tu os recreaste através de ti porque nascera contigo o padrão de valores de outros valores. E o teu valor máximo era a humildade à maneira de Spinoza (nunca te seduziu a riqueza material), o coração generoso de Spinoza, o orgulho moral e liberal de santo Antero, e a certeza de que um homem serve a Pátria ao longo dos séculos e que só nessa perspectiva ainda mais apreciarão o teu trabalho. Não tinhas medo à história. E a historia, um dia, há-de julgar-te como um símbolo"

[Oração proferida pelos seus filhos, no cemitério da Figueira da Foz, em 29 de Outubro de 1958]