sábado, 10 de julho de 2004


Irresponsabilidade

"... encontrou o ponto arquimediano, mas utilizou-o contra si mesmo; ao que parece, esta era a condição para o encontrar" [Franz Kafka]

Não temos nenhuma promessa com o senhor Presidente da República. Não lhe devemos por isso nada, senão a consideração que um cidadão deve ter, diante do Presidente do seu país. No invés, na mais amáveis das suposições, seria de presumir que o Presidente eleito pelos portugueses, em circunstâncias singulares, não faria a desafronta de nos presentear com uma inaudita decisão, constitucionalmente restritiva, politicamente imprudente e pessoalmente irresponsável.

A decisão de não convocar eleições é um monumental erro de apreciação política e, contrariamente ao desejado, não permite afirmar que se defendeu a "estabilidade política", o "regular funcionamento das instituições", nem se prova que se garanta "as condições de regularidade, legitimidade e autenticidade democráticas". A "visão mandatária" da democracia do senhor Presidente, além de nos desfeitear politicamente, comporta conflitos insanáveis e perplexidades várias, sendo que parte da sua argumentação, direccionada a quem o elegeu, era completamente dispensável.

Assim: a actual coligação (que não foi a voto popular) não sufragou nas urnas eleitorais o actual programa do governo, conforme é sabido (tenha-se em conta o programa publicitado pelo PSD e o PP, e o que foi reescrito depois); os eleitores "no termo da legislatura" (quatro anos) não podem julgar a actividade do governo, porque ele deixou de existir, não havendo garantias (ninguém o pode assegurar) que o próximo seja do mesmo teor do anterior; ao afirmar que "não compete ao presidente governar" e ao mesmo tempo estabelecer condições para o seu funcionamento (terá feito o mesmo com o governo de Durão Barroso?) e controlo, não só está a co-responsabilizar-se politicamente (o que é curioso) como introduz um indisfarçado presidencialismo déjà-vue; portanto não se compreende as declarações que proferiu em defesa da sua posição.

E - noutro registo - se o senhor Presidente, num momento de desmando insensato, considera provável que a dupla Lopes & Portas lhe conceda a amabilidade de lhe dar argumentos para uma subsequente dissolução da AR, então estará a descuidar que uma chamada a eleições nesse cenário (e a vitimização que o caso estabelece) torna mais acessível qualquer vitória eleitoral para a coligação. O que não deixa de ser espantoso.