sexta-feira, 16 de janeiro de 2004

SER O QUE NÃO É



Na sequência do que Luís Carmelo refere em "Tragédia de um Esquecimento", a propósito da alusão da Rua da Judiaria sobre os "350 anos "sobre a chegada dos primeiros emigrantes judeus à colónia holandesa de Nova Amsterdão", é possível a partir do pensamento de Miguel Real (que cita), na sua obra "Portugal Ser e Representação" (Difel, 1998), ter em apreço aquilo que Miguel Real denomina como "tentativa de encontrar uma forma corporis do povo português", afinal uma demanda da característica dominante do português, e que configuraria um "ser o que não é" ou "estar onde não está", e que pode, de algum modo, levemente contribuir para as interrogações sugeridas no belíssimo texto de Luís Carmelo.

Assim, a partir de diferentes contributos - de Teixeira de Pascoaes a Eduardo Lourenço; de Agostinho da Silva a A. José Saraiva, ou com referências a autores como Fernando Pessoa, Álvaro Ribeiro, Antero, Dalila Pereira da Costa, António Vieira, Marcello Duarte Mathias, António Telmo, Pinharanda Gomes, etc - o autor de Portugal Ser e Representação refere os seguintes "traços":

- "habita-nos ... uma funda religiosidade, expressão actual de setecentos anos de domínio quase absoluto de códigos religiosos de comportamento, âncora histórica de uma cosmovisão bíblica que inundou a mentalidade cultural portuguesa até ao século XVIII. (...) O excesso desta visão religiosa portuguesa, ou talvez, a sua condensação numa ideologia, originou o messianismo providencialista português, a que nenhum grande autor nacional foi imune, pela positiva ou negativa ..." (pag. 181- 183)

- existência de uma "característica profundamente emotiva, apaixonada, sentimental, do comportamento dos portugueses em detrimento de uma visão racionalista, calculista, programada, técnica e cientifica da vida". Como consequência daí resultante: "ausência de um corpo coeso de obras cientificas e filosóficas; ausência de um espírito técnico e tecnológico de envergadura; predominância de uma mentalidade lírico-emocional que tem atravessado toda a nossa literatura" (pag. 184)

- "estar onde não se está" (...) Esta característica tem permitido ao português uma errância mental e física, ou, talvez melhor, uma plurivalência entre o que de facto é as mascaras ou as imagens por que se disfarça ora um jubilo se si, ora numa humilhação rendida, isto é, tem permitido ao português ser o que não é: religioso, mas herético; ortodoxo, mas heterodoxo (toda a filosofia portuguesa religiosa desde o sec. XIX); emigrante, mas não colonizador (miscegenização); aventureiro, mas radicado (...); pobre, mas generoso (comunitarismo); culturalmente atrasado, mas crente que possui um destino vanguardista (messianismo)" (pag. 185-186)

Concorde-se ou não com o autor, a obra é demasiado estimulante para passar despercebida, por isso aqui fica a sugestão da sua leitura.