domingo, 12 de outubro de 2003

LINGUAGEM DOS DEUSES - LINGUAGEM DOS HOMENS



"Tive sempre uma repugnância quasi psychica pelas coisas secretas – intrigas, diplomacia, sociedade secretas, occultismo. Sobretudo me incomodaram sempre estas duas ultimas coisas – a pretensão, que teem certos homens, de que, por entendimentos com Deuses ou Mestres ou Demiurgos, sabem - lá entre elles, exclusos todos nós outros – os grandes segredos que são os caboucos do mundo.

Não posso crer que isso seja assim. Posso crer que alguem o julgue assim. Porque não estará essa gente toda doida, ou illudida? Por serem varios? Mas ha allucinações collectivas.

O que sobretudo me impressiona, nesses mestres e sabedores do invisível é que, quando escrevem para nos contar ou suggerir os seus mysterios, escrevem todos mal. Offende-me o entendimento que um homem seja capaz de dominar o Diabo e não seja capaz de dominar a língua portugueza. Porque há o commercio com os demónios de ser mais fácil para o commercio com a grammatica? Quem, atravez de longos exercícios de attenção ou de vontade, consegue, conforme diz, ter visões astraes, porque não póde, com menor dispendio de uma coisa e de outra, ter a visão da syntaxe? (...) Porque ha de gastar-se toda a energia da alma no estudo da linguagem dos Deuses, e não ha de sobrar um reles bocado, com que se estuda a côr e o rhytmo da linguagem dos homens?"

[Fernando Pessoa, O Livro do Desassossego]