sábado, 4 de outubro de 2003

LYNCE ESPECIAL NUM PAÍS EXCEPCIONAL



"A felicidade é encontrar-mos sempre em estado de sermos agradavelmente enganados" [Swift]

A demissão de Pedro Lynce é obscena. A comédia ingénua a que assistimos, no sofá da nossa parcimónia, em torno do caso das desventuras familiares de Martins da Cruz, é o espelho deste Portugal provinciano. Ruborizamo-nos por vezes, somos cáusticos porventura, exaltamo-nos muito, mas atentos e veneradores rapidamente tudo se esquece. Sonhamos que sonhamos que poderia ser diferente. Mas cedo voltamos a presumir. Como sempre fizemos. Tamanha obscenidade é intolerável.
Demite-se um ministro numa manobra estratégica infantil e qualquer caso parece deixar de o ser. Contudo ele aí está. Uma ilegalidade grosseira feita por uma direcção geral, com a concordância do ministro da tutela, favorecendo um familiar de outro ministro (que tinha de saber a configuração jurídica para o protestatório, dado ser o que é costumeiro fazer em qualquer assunto deste tipo) que não é assumida posteriormente pelo próprio, tem o aval e o beneficio da dúvida dos seus apaniguados e o elogio pragmático do Primeiro Ministro. O entretenimento em torno da demissão de Pedro Lynce, liquidado na sua honorabilidade, pretende ocultar o devaneio jurídico da argumentação de Martins da Cruz (não esquecer o seu esforço em tornear a lei no caso Maria Elisa), coloca em causa Durão Barroso e revela que em Portugal a vergonha não tem emenda.

Ouvir e ver o bestial Requicha Ferreira interpretar o normativo jurídico à estupefacta jornalista da SIC que o ouvia, é a chacota total. O exercício argumentativo do director geral resume-se ao considerando que "além do regime especial há outros [especiais] que não vêm na lei". O que é espantoso. Andam os homens há séculos a parir leis e documentação vária para que o exercício da democracia seja possível e o insidioso Requicha dá uma valente vassourada em milhares de anos de história. É obra.

Sabe-se que "onde há veneração até um dente de cão emite luz" (Lawrence Durrell), mas tamanha desfaçatez nunca se vira. Como também é fantástica a corrida das carpideiras da maioria, em defesa governativa. Ou, até, a paixão da dúvida desse comediante e desmemoriado Luís Delgado, que, clamando por contenção neste caso até melhor compreensão teorética, em estado febril desata em insinuações infundadas e falsas sobre um dito caso semelhante, tamanha é a sua isenção de jornalista e cidadão. Encantador como o poder procria os seus bacorinhos. De facto, "já não há senhores, apenas escravos comandam outros escravos, já não há necessidade de carregar o animal, ele carrega-se a si mesmo" [Deleuze-Guattari]