domingo, 5 de outubro de 2003

ANTÓNIO GUERREIRO




António Guerreiro e a pragmática do discurso dos blogs

" (...) O facto curioso, em Portugal, é que o interesse pelos blogs não foi suscitado, em primeiro lugar, por terem acedido à livre publicação indivíduos e grupos que dela estavam excluídos, mas por terem entrado na «blogosfera» (numa posição de domínio, pois aqui também se criaram hierarquias) nomes que, regularmente ou de maneira esporádica, escrevem nos jornais ou são convidados pelas televisões. Este é um sinal eloquente de que há hoje uma corrida ao espaço público mediático (sintoma de uma perda da efectualidade da cultura e das instituições do saber) e de que este não é capaz de se estruturar de outra maneira que não seja segundo o regime do mandarinato. É este regime o responsável pela hipertrofia da «opinião» que caracteriza a imprensa, em Portugal, e que a grande maioria dos blogs prolonga na perfeição. Os blogs mais frequentados, isto é, aqueles para onde estamos constantemente a ser remetidos através dos «links», quando entramos na «blogosfera», apresentam-se, assim, como uma esfera funcional das paginas de opinião dos jornais, mesmo quando têm um registo diarístico e pessoal. Digamos que os blogs economizaram algumas etapas e chegaram ou aspiram chegar aos jornais: o da conversa desenvolta, cujos intervenientes são muito mais actores do que autores, ao serviço do espectáculo integral. Tão próximos estão - jornais e blogs - do mesmo universo cultural e funcional que não é possível fazer a crítica de uns sem fazer a crítica de outros. O que alimenta a maior parte dos blogs não é uma escrita mas uma conversa, como aquela que se pode ter no café com os amigos, e que se esgota numa troca que promove a confusão da esfera pública com a esfera privada (...)
O discurso inócuo do «fait-divers» político-cultural e da conversa de família ou de amigos domina, de modo geral, os blogs. Evidentemente, não se trata de algo que seja estranho aos jornais. Mas a questão é esta: porque é que professores universitários, poetas, escritores, críticos desejam tanto jornalizar-se (no duplo sentido do discurso jornalístico e do discurso diarístico) através da «bavardage», do exibicionismo, da falsa subjectividade opinativa? (...)
Não é preciso ter lido Habermas para perceber que a expressão individual e o direito à opinião que alimentam a maior parte dos blogs têm um grande valor decorativo mas não têm nada que ver com uma esfera pública critica (que, de resto, tem cada vez menos condições, em Portugal, para se constituir). (...) Esta teoria democrática da expressão da expressão individual (...) é duplamente falaciosa: 1) porque esquece deliberadamente que o sistema é hipertélico, isto é vai para além dos seus próprios fins e anula-se na sua finalidade; 2) porque se baseia no principio imposto pelos «mas-media» de que tudo o que eles fazem aparecer é bom e não resta outra tarefa senão a de jornalizar o discurso da cacofonia generalizada. Esquecida fica a responsabilidade de interromper a conversa. Esta lei da submissão ao ruído publico - e da dependência visceral que ele cria – não é senão a lógica dos «grandes redutores», dos que não conseguem pensar fora da lógica do jornalismo e da agitação politica e cultural."

[António Guerreiro, "A Reportagem Universal", in Actual (Expresso), 4/10/2003]


O texto de António Guerreiro, ao pretender analisar o movimento estratégico presente na pragmática da comunicabilidade discursiva dos blogs (considerada por alguns, uma nova gramática de contornos mass-mediáticos), aponta para a existência de uma bricolage, onde o bricoleur (bloguista) "fala por meio das coisas", mas sempre dentro do território do poder e dos seus encantamentos. Isto é, o novo fenómeno corporizado nos blogs não adquiriu, quer os instrumentos conceptuais necessários para o exercício da actividade, quer uma pregação noviciada que se afaste do mero registo jornalístico, que usa e abusa até à exaustão. Quer dizer: o discurso bloguista está muito além desse "longo movimento de aviltamento do poder", como diria Sartre. Daí que seja um "discurso inócuo" que navega entre uma ecologia de afectos públicos e privados, de mero "valor decorativo", "exibicionista". E, portanto, se o exercício discursivo dos blogs se entrecruza nos interstícios do poder (jornalizar enquanto investimento comunicacional), então nesta lógica, a "expressão individual" e o "direito à opinião" teria como fim uma intenção de "reconstruir" a competência e a performance dos media. Fica assim registado o dizer de António Guerreiro, que centrando a sua atenção narcísica sobre os efeitos do discurso, problematiza o território do poder fora do território do "corpo" (superfície privilegiada do registo cultural, no dizer de F. Gandra) e da sua fruição. Os blogs não seriam espaço conversável, linguagem ingente ou desejo antigo. Porém, nós, que acabámos de ser, uma hora atrás, miseravelmente squeezados num contrato de 6 Copas num redentor jogo de bridge, compreendemos a inquietude do corpo revoltado ou significante despótico, ou não soubéssemos que "há seduções tão poderosas que não podem ser senão virtudes" (Baudelaire)