domingo, 1 de maio de 2005


O Cardeal

"O futuro já não é aquilo que era" [P. Valéry]

Eis que a fábula de um Ratzinger (Cardeal) tomado como crítico radical da razão, sujeito supostamente alapado ao projecto da modernidade, subversivo & provocador na reconstrução do "projecto inacabado" da modernidade se torna o consolo, sustento e redenção da classe lusa opinadora, de finos costados liberais. O entusiasmo febril do indígena quando, após espreitadela a velhos canhenhos e sucumbido pelo cansaço de viçosas leituras filosóficas, tomou conhecimento do elogiado debate Habermas-Ratzinger mostra-nos que "razão como vontade da razão" [Habermas] pode não ser totalmente libertadora.

Um Ratzinger anti-liberal e anti-moderno, clamando contra a "abolição do homem" e pela "racionalidade da fé"; recusando a "auctoritas legislativa" porque fonte paradoxal do "domínio da maioria"; defenestrando Adam Smith por motivo que "utilitas, non veritas facit pacem"; fazendo a apologia da fé contra a política, sem lugar a qualquer promiscuidade, e ao mesmo tempo tecendo loas aos "gloriosos políticos cristãos" saídos do primeiro pós-guerra [cf. Ratzinger], o que não deixa de ser estranho se tivermos em conta Franco e Salazar; em defesa de uma lei que sendo "realmente direito" o seja pelo "ordenamento justo nas relações recíprocas em face da criação e do Criador" e "da sua verdade" [idem]; acentuando a fé e o seu mistério como salvação da razão; um Ratzinger assim ressituado fora do campo da desconstrução da modernidade e ao mesmo tempo tão louvado pelos liberais lusos, não deixa de ser curioso e grosseiramente contraditório.

A história profética do Cardeal é que não há salvação fora da Igreja Católica. A gramática Ratzingeriana ao pretender impedir a retirada do homem da história fá-lo cair definitivamente nas mãos de Deus. Compreende-se, portanto, que a "nova" querelle, em torno da "razão, liberdade, igualdade e justiça", assim suscitada, nada tenha que ver com uma qualquer Aufklarung, pois o tribunal da razão mais não é, chez Ratzinger, que a extraordinária tarefa de refundir a razão com a fé e o eterno regresso à sua Revelação primitiva. Segundo os seguidores do Cardeal a "morte de Deus", ao que parece, tem os dias contados. Assim como os conceitos de "secularização, crítica, progresso, revolução, desenvolvimento e emancipação". A dogmática está, pois, de volta e em força.