sábado, 5 de março de 2005


Passa por mim no Governo!

"A generosidade é o dom do que convém, sem qualquer reparo, à compensação" [Avicena]

Temos governo. Os missionários de Sócrates são aquilo que se esperava. Abundantes tecnocratas, made in IST & outras Instituições meditabundas, consumidos pela respeitosa sebenta, alguns profanos aparentemente virtuosos e estimados profissionais da labuta política. Ainda não foi, segundo dizem o rol da eminência parda jornaleira que domestica o país, espalhado o perfume pátrio governativo, mas para nossa glória não houve recurso à tralha Guterrista em dose elevada, pelo que a epidemia está contida. Resta esperar.

Como curiosidade, refiram-se os sediciosos ecos que os comentadores costumeiros lançaram ao rebanho luso, em torno das personagens eleitas. Desde logo um sujeito, que se desconhece o que tem feito para a posteridade da pátria, de nome Van Zeller, absolutamente fascinado pela presença de Freitas do Amaral na governação. De tal modo confundiu o comércio da CIP com a azia revoltosa perante o excomungado Freitas, que julgámos recuar a 1975. E lá fomos, obedientemente, consultar o calendário. Uf! O Van Zeller afinal era um fingidor.

Depois, recebemos as instruções do monge Luís Delgado que com a sua louvável caridade liberal atestou que este Governo era pior do que o prometido, e, evidentemente, inabilitado para a função, isto depois de evocar Lopes & Portas, em reza. A noite não podia findar sem que o pensamento de Guilherme Silva, o desamparado guerreiro Santanista & Jardinista, na mais pura ex ironia, nos tenha dito cobras e lagartos desta segunda, terceira ou mesmo quarta escolha socrática. Excelente!

Por fim, ainda não tínhamos atacado o café matinal, já o camarada José Manuel Fernandes, o devoto militante que no principio dos anos oitenta não renunciava à reorganização do PC, para espanto de todos, freneticamente escrevia no seu jornal achar tumultuoso a presença de Freitas do Amaral no governo da Nação. A verdade é que Feitas do Amaral era um perigoso terrorista anti-Bush, novo Rei do Mundo para o estabelecido JMF, o que, presumimos, nos poria a guerrear com o exército americano. Cruzes, canhoto! Mas, como nos lembrámos da animada cena passada in illo tempore no Palácio de Cristal, a que decerto o camarada JMF serviu, compreendemos a reprimenda. E o fogo ardente do senhor director. Há coisas que não esquecem.

Pier Paolo Pasolini [n. 5 Março de 1922-1975]

"Eu pouco sei de ti mas este crime
torna a morte ainda mais insuportável.
...
O assassino, esse seguirá dia após dia
a insultar o amargo coração da vida;
...
O roubo chega e sobra excelentíssimos senhores
como móbil de um crime que os fascistas,
e não só os de Salò, não se importariam de assinar.
Seja qual for a razão, e muitas há
que o Capital a Igreja e a Polícia
de mãos dadas estão sempre prontos a justificar,
Pier Paolo Pasolini está morto.
A farsa, a nojenta farsa, essa continua
"

[Eugénio de Andrade, Requiem a Pier Paolo Pasolini, 1977]

Locais: Pier Paolo Pasolini / Pier Paolo Pasolini / Vida e obra / Pier Paolo Pasolini: Cinema as Heresy / Écrits corsaires de Pier Paolo Pasolini Le sens du combat / Orgia

quinta-feira, 3 de março de 2005


Eugénio de Castro [n. 4 Março de 1869-1944]

"Aqui, Eros! Para quê de ampulhetas um par!
Dupla medida tens, leviano? - Numa, a hora,
Se os amantes estão juntos, é voadora;
Se estão longe, na outra, expira devagar
"

[Zeitmass (aliás Medida do Tempo) de Goethe, trad. de Eugénio de Castro]

Locais: Eugénio de Castro e Almeida (1869-1944) / No centenário da publicação de Oaristos

Em louvor do Pe. Nuno Serras Pereira

Participamos ao piedoso Padre Serras Pereira, a quem consagramos tributo de lágrimas e martírios inconfessáveis, mais alimento para as seus votos por ora postos em formato de Anúncio Público, para que o ilustre padre possa ser grande, respeitoso e devoto. Daqui nos curvamos, meditando nos prodígios dos cânones e nas instruções recebidas, porque justos e misericordiosos. Graças!

"... Abandonar uma Avé-Maria a meio, contar uma anedota ou chupar pevides de abóbora durante a missa, destruir um hino ou uma ladainha, rasgar ou riscar um salmo penitencial, são atitudes que abrem a porta ao pecado ..."

[Lândon, in Livro das Coisas Santas, de Carlos Mota de Oliveira, Fenda, 1995]

"... Segundo recentes estudos religiosos, cada penitência resulta de alguns gramas de pecado. E por cada dez gramas de pecado, o penitente aniquila cento e oito gramas de boas acções ..." ["Dictatus Papae, Gregório VII, ibidem]

"... Ao confessar uma multidão de maus juízos e palavras ásperas, o penitente sofre grandes mordidelas da parte do demónio. Isto depende muito do sacerdote confessor, pois tem que escolher entre a quantidade e a qualidade do pecado. E o diabo está sempre presente. Alguns cardeais consideram que esta mordidela é mais ou menos violenta conforme o número de pecados confessados. Outros, porém, sustentam que o diabo prefere a qualidade e morde com menos intensidade quando sabe que o penitente se confessa sem o propósito de se emendar..." [palavras de Pelágio I, ibidem]

"... Sei que os sacerdotes ficam inquietos quando a abadessa Joana entra nos meus aposentos. É evidente que todas as manhãs recebo a sua visita e depois rezamos (...) Tendo em conta a perturbação que estas visitas causam no meu pessoal religioso, mandei colocar dois informadores à entrada da alma de cada um. E o que eu tenho sabido, meu Deus! Entram, diariamente, na alma de cada sacerdote, uma legião de anjos cheios de delírios! Outros, aluados! Outros adoidados! Outros, marijuanados! E digno, digno de respeito, só vi um anjo!..." [Confidência de João XI (931-935), ibidem]

"... Uma nódoa de cereja no hábito de uma monja é desmazelo. Aos olhos dos monges, porém, é tentação. Alguns Irmãos acreditam que os pecados estão colados aos vestidos das monjas como as estrelas estão pegadas ao céu ..." [extracto de uma carta de Pio V, ibidem]

"... À maneira que nos aproximamos da Porta Celestial, vamos deixando progressivamente os pecados. O calor começa a apertar e é preferível ir largando toda a roupa terrena. Peça a peça, ali ficamos nós, à entrada: nus, nuzinhos, uns atrás dos outros, em mansa fila, rosados, róseos e rosadinhos. Alguém, então, autorizará que penetremos ..." [extracto carta dirigida «A Todos os Filhos da Igreja», por Eugénio II (824-827), ibidem]

"... Se são rezadas sete missas por dia, aumente-se para catorze! E quintupliquem-se os outros serviços religiosos! Um baptismo, por exemplo, é pouco! Três, quatro, cinco, pelo menos! E se for preciso, em vez de uma Páscoa, arranjem-se duas Páscoas! Há que depurar, esburgar, expurgar e extirpar!..." [manuscrito encontrado no espólio do Duque de Montorio, de autoria de Silvestre I (314-335), ibidem]

Salvé Lou Costello [m. 4 Março de 1959]

quarta-feira, 2 de março de 2005


Philip K. Dick [m. 2 Março de 1982]

Um Ano a Blasfemar

Felizes os que podem blasfemar contra as impiedades. Coisas copiosas nos dão todos os dias, faz um ano agora, a equipa do Blasfémias. Praticar o bem é o que se lhes deseja. E mesmo que a devoção liberal seja um mistério para nós, daqui lhe desejamos muitas felicidades e iluminados festejos.
Livros & Arrumações

* Separata do Arquivo do Distrito de Aveiro, vol. XXIV, um texto sobre "A Provedoria de Esgueira", por Mário Alberto Nunes Costa, 1958. Fazendo um historial da formação da Comarca, referindo o "litigio" que manteve (1618/19) com Coimbra, apresenta um conjunto curioso de documentos seiscentistas referentes a Esgueira, ordenadas por Vicente Ribeiro Meirelles, com referência a várias vilas ou actuais cidades do distrito de Aveiro, entre as quais Salreu, Estarreja, Murtosa, Canelas, Fermelã, Branca, Bemposta, etc..

* Um excelente Ensaio Literário e Bibliográfico de Carlos Sombrio, sobre "João de Barros", com pref. de Joaquim de Carvalho, Figueira da Foz, 1936. Apresenta, além de uma extensa bibliografia de João de Barros e vários retratos, um curioso prefácio de Joaquim de Carvalho, onde é referido que ele e Carlos Sombrio "já lá vão quarenta anos (...) traquinavam pela Praça Velha [F. Foz] onde os nossos pais labutavam pelo pão de cada dia e, podendo ser pelo dia seguinte". Refere-se ainda à comemoração do Centenário de Camilo na Figueira (1925) para o reencontro com Sombrio, após que tece considerações em torno do biografado João de Barros. Eis, depois o ensaio sobre João de Barrros, o poeta do Anteu.

"De encontrar para a vida uma expressão mais bela,
De encontrar para a alma a perfeição melhor ...
"

Comité Revolucionário Provisório de Kronstadt [2 de Março de 1921]

"... A insurreição de Cronstadt, nascida de revindicação de eleições livres dos sovietes, chegara a concepções que poderemos chamar de anarco-sindicalistas, tomando esta expressão no seu sentido correcto e não naquele polémico e pejorativo habitual. Sem negar o papel dos sovietes, os insurrectos queriam a sociedade administrada pelos sindicalistas reorganizados que se unificariam livremente à escala Pan-russa com associações de produtores. A maturidade política dos insurrectos aparece ainda mais nitidamente quando se considera que, tendo em conta a conjuntura particular dos princípios de 1921, eles tentavam resolver o problema do campesinato e a sua relação com a classe operária. A sua proposta visava até o desenvolvimento da agricultura sem provocar ao mesmo tempo um aumento do trabalho assalariado nos campos (Ao contrario do que fará a NEP) ..."

[J. Barrot, in Notas para uma análise da Revolução Russa, Cadernos de Hoje, 1972]

"... O esmagamento de Cronstadt e a proibição da Oposição Operária [nota: Alexandra Kollontai, Bukharine, Preobajensky, Radek, Chiliapnikov, Bela-Kun, etc.] mostram a vontade dos dirigentes em subordinar toda a acção à nova orientação económica, cuja execução passa evidentemente (e não o inverso) pelo reforço do aparelho de estado, com o qual o Partido [PCR(b)] tende cada vez mais a confundir-se ..."

[A Velha Toupeira (?), in A Oposição Operária, de Alexandra Kollontai (introd.), Afrontamento, Janeiro de 1973]

Locais: The Kronstadt Provisional Revolutionary Committee / The Kronstadt Uprising 1921 / The Kronstadt Commune 1921 / Russian Revolution of 1917, series of events in imperial Russia / A Revolta de Kronstadt

terça-feira, 1 de março de 2005


Um apito dourado para o senhor Costa, já!

"Ele não fazia nada de particular, mas fazia-o muito bem" [William Gilbert]

Temos noutes assim: muito fanáticas. Também podemos contrair a doença do César das Neves, ou não? Dizemos sem qualquer malícia: o senhor António Costa tem, de facto e de direito, obrigação de receber para rastreio arbitral um extraordinário e dourado apito. A requintada prestação que fez no jogo Porto-Benfica, se convenceu indígenas cegos e lacrimantes, uma meia dúzia de exaltados analistas do éter, cinco repórteres estrábicos e recebeu as palmas do edil de Gaia (presume-se que está em todo o lado), a nós, com indisfarçado orgulho encarnado, a justa homenagem que fazemos é dar-lhe o tal apito.

António Costa & Costa foi empanturrado de aplausos. Até o frenético Fernando Seara, de Sintra, jura, pela saúde de Eusébio (já se vê), que a gramática legislatória da arbitragem foi zelosa e submissa. Não nos convence o testemunho. Ao fim dos 20 minutos científicos e à Benfica, a rapaziada azul e branca foi acometida da doença (praga do César?) das faltas, acompanhadas de impropérios vários ao tal Costa e respectiva família. Conhecemos o filme. Não somos daqueles que pensamos que a arbitragem é tendenciosa se marca penaltys que não existem ou o seu contrário, mas tão só queremos assinalar que um verdadeiro árbitro, daqueles do dourado apito, não necessita dessas divertidíssimas cenas. Basta não admoestar jogadores (seja de que cor tenham) quando prevaricam. Basta permitir que uma qualquer equipa ou jogador intimide o adversário. Basta não manter a ordem (estamos, decididamente, rigorosos) estabelecida pelo cardápio da arbitragem. Sem falsas subjectividades.

Pronto, já está. E foi penalty contra o Simãozinho, passe os gorjeios dalguns. Que se saiba, o ombro ainda não descai até à manápula. Terminamos: o empate é justo, qualquer equipa podia ter ganho. A dúvida é: e o senhor Costa, o António? Ganhou o quê?

Ferro curtos

* Depois da reprimenda dada aos hereges da masturbação & outros pecadilhos, pousados os olhos fora do corpo ou não fosse o "homem a cabeça e a mulher o corpo", a noite passada, a propósito de um debate sobre o Código da Vinci, na RTP1, o inefável João César das Neves, pronto a despedaçar os heréticos lusos nessa magna questão que tem atormentado os intelectuais indígenas, deu sobejas provas da sua futilidade, ignorância, ao mesmo tempo que mostrava a sua faceta mais repugnante: não ter qualquer espécie de humildade e ambição de aprender a aprender. Se as aulas do fanático César das Neves tiverem essa configuração, então compreende-se porque razão o ensino universitário está como está.

* um sublime texto de Fátima Bonifácio n'O Público. Não pelo conteúdo, que todos já sabemos de cor, mas pela forma luminosa como nos é apresentado, e pelo prazer da sua leitura. Assim a articulista tivesse tal prudência em textos sobre o sistema de ensino e a educação em geral, onde a par de verdades insofismáveis, revela desconhecimentos vários, resvala nas meias-verdades e contradições óbvias.
Livros & Arrumações

* Da Economia neoclássica Tradicional à Nova Economia Keynesiana, por Fernando Pinto Loureiro, separata da Revista de Economia, 1949. É referido em nota de pé-de-página que "a publicação do Treatise on Money [de Keynes] suscitou a formação de um «círculo», para estudo da obra, a que pertenciam R. F. Kahn, I. E. Meade, P. Sraffa, C. H. P. Gifford, A. F. W. Plumptre, L. Tharsis, Joan Robinson, Austia Robinson e vários outros...". Noutra nota, o prof. Pinto Loureiro refere que em "8 e 15 de Agosto de 1925, Keynes publicou em The nation and Athenaeum dois artigos subordinados ao título «Am i a Liberal?», que podem ler-se nos Essays in Persuasion, de 1931, pags 323 e segs ..."

Sobre o optimismpo económico de Keynes [a propósito da possibilidade de se atingir o «pleno emprego»] cita F. Loureiro o que Keynes escreveu em 1931: "Na análise dos factos económicos, encontram-se razões que nos mostram como, mesmo neste domínio, a fé pode agir. Porque, se conformarmos todos os nossos actos a uma hipótese optimista, esta hipótese tenderá a tornar-se realidade, enquanto que, se agirmos conformemente a uma hipótese pessimista, arriscar-nos-emos a cair para sempre no poço da miséria" [Ref. Essays de Persuasion, já citado]

* Curioso opúsculo de António Ferrão intitulado "Gomes Freire e as Virtudes da Raça Portuguesa", Impr. da Universidade Coimbra, 1920. Este discurso dito na comemoração da "ignomiosa execução" de Gomes Freire (18 de Novembro) é uma biografia interessante, com abundantes referencias bibliográficas e um conjunto de notas e anexos, entre as quais cartas e artigos de jornais, de apoio ao texto, sendo de registar o que é referido como "uma das mais curiosas figuras de perseguido político [obv. por ideias liberais e republicanas] em Portugal nos fins do século XVIII e princípios do XIX", na pessoa do "padre José Ferrão de Mendonça e Sousa, licenciado em direito civil pela Universidade de Coimbra, e prior dos Anjos".

XLVIII Catálogo da Livraria Moreira da Costa

Saiu o Catálogo do mês de Fevereiro da Livraria Moreira da Costa (Rua de Avis, 30, Porto) e pode ser consultado on line.

Algumas referências: O Piloto instruído ou Compendio Theorico-pratico de Pilotagem ..., de António Lopes da Costa Almeida, 1851 / Breve Noticia de Felgueira e suas Águas Medicinaes, por João Felício Pais do Amaral, 1887 / Memória Histórica da Antiguidade do Mosteiro de Leça ..., de António do Carmo Velho de Barbosa, 1852 / O Comércio e a Indústria Têxtil em Portugal, por Carlos Bastos, Porto, 1950 / No Presídio. Memórias dum Conspirador, Famalicão, 1913 / Terra Fria, por Ferreira de Castro, 1934 / A Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra ao País, Coimbra, 1919 (imp. Para a crise académica de 1919) / História de Portugal, sob direcção de Damião Peres, 1928-1981, X vols / Leonardo Coimbra Testemunhos dos seus Contemporâneos, Porto, 1950 / Vieira Portuense, por Carlos de Passos, Porto, 1953 / Cerâmica Portuguesa, de José Queirós, Lisboa, 2002, II vols / Ruas de Lisboa (Colecção de Estampas, com texto de Martim de Albuquerque e pref. de Maria da Graça Garcia, ed. fac-similada a edição primitiva de 1826), Inapa, 1994 / Tratado de Sciencias das Finanças, de Marmoco e Souza, 1916 (pref. do prof. Anselmo de Andrade) / Repertorio Geral, ou Indice Alphabetico das Leis Extravagantes do Reino de Portugal, de Manuel Fernandes Tomás, 1815, II vols

domingo, 27 de fevereiro de 2005


Lawrence Durrell [n. 27 Fevereiro de 1912-1990]

"Nothing is lost, sweet self,
Nothing is ever lost.
The unspoken word
Is not exhausted but can be heard.
Music that stains
The silence remains
O echo is everywhere, the unbeckonable bird!
" [L. Durrel]

"... o último, o maior dos meus fracassos (afundo a minha boca na carne viva entre os cabelos de Justine), foi o fracasso com as pessoas; era devido a um desinteresse de espírito cada vez maior que, se me permitia simpatizar, impedia-me, contudo, de me entregar. Gradualmente, inexplicavelmente, tornava-me cada vez mais deficiente em amor, embora fizesse incontestavelmente progressos do dom de mim próprio, a melhor parte do amor. Era isso, descobria-o agora com horror, o que me ligava a Justine. Como mulher, era naturalmente possessiva e devia tentar apoderar-se dessa parte de mim próprio que estava definitivamente fora de alcance, cujo último e doloroso refúgio era para mim o riso e a amizade. Essa espécie de amor tinha-a tornado, em certa medida, desesperada: eu não estava na sua dependência; e o desejo de possuir pode, quando insatisfeito, apoderar-se completamente do espírito. Como é difícil analisar estes laços que se ocultam sob a própria pele das nossas acções: o amor não é mais do que uma espécie de linguagem da pele, e o sexo pura terminologia ..."

[L. Durrel, in Justine]

Um Homem Incerto

José António Saraiva é um dos pregadores do reino. Um engasgado e alucinado comentador da coisa pública, inflexível no seu penoso trabalho de escrita, quase sempre monótona, medíocre, sem elegância nem talento. Polémico, obcecado pela rincharia dos indígenas e da classe política, desalentado com o país e o mundo, as suas crónicas são brincadeiras ligeiras que o mistério da política exige que se leia. Um exemplo perfeito do que valem alguns dos jornalistas portugueses. É director do jornal O Expresso, para glória nacional.

O homem que, implacavelmente, esculpe a "Política Portuguesa", fragmentando assombrosos e convictos prognósticos que fazem sorrir o gentio e ao mesmo tempo embevece os responsáveis partidários, o homem da famosa "picadora 1,2,3", diz-nos esta semana, sem qualquer decoro, que Marques Mendes é "um bom líder para o PSD" e, pasme-se, "pode ser um bom primeiro-ministro de Portugal". Apesar de ser uma mera "sobra" do imenso rol de candidatos possíveis à liderança do PSD e de presumir que majestosamente chegue a 2009 incólume, na sequência da surpreendente tese, do mesmo Saraiva, que os governos têm a validade de quatro anos, sejam eles quais forem e façam o que fizerem. Saraiva sabe. Como sabe de sondagens eleitorais. Não há qualquer dúvida.


Salvé Steinbeck [n. 27 Fevereiro 1902]

"... Você já ouviu falar em mãos que plantam? É quando você apanha botões de flores que não quer. Tudo cai directamente da ponta dos dedos. Você fica vendo seus dedos trabalharem. Fazem tudo automaticamente. Você pode perceber como é. Vão apanhando os botões e nunca se enganam. Estão com a planta. Percebe? Seus dedos e a planta. Você pode senti-lo até no braço. Eles sabem. Jamais se enganam. Você pode senti-lo. Quando você se sente assim, não pode fazer coisa alguma errada ..."

[J. Steinbeck, in Long Valley]

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2005

[Do Amor]

"Esta vista de mar, solitariamente,
dói-me. Apenas dois mares,
dois sóis, duas luas
me dariam riso e bálsamo.
A arte da natureza pede
o amor em dois olhares
"

[Fiame Hasse P. Brandão, in As Fábulas, 2002]

Anthony Burgess [n. 25 Fevereiro de 1917-1993]

Locais: Autoportrait / Anthony Burgess (1917-1993) - also called Joseph Kell, original name Jon Anthony Burgess Wilson / Anthony Burgess: A Life / Anthony Burgess - Life Stories, Books, and Links / Anthony Burgess.com / The Anthony Burgess Center / Afinal, o que faz um homem ser bom? / Revolutionary Sonnets and Other Poems by Anthony Burgess / Listen to the Anthony Burgess interview with Don Swaim, 1985
[Carta]

"Meu amigo:

Pelo almocreve, que levou os presuntos, lhe escrevi, dando-lhe parte que sou pai d'um robusto rapaz, que, apenas conta um mez, e parece que tem oito! Minha mulher abateu um pouco da sadia nutrição que estava gosando; mas começa a restaurar as forças e cores salubres que adquiriu nestes bons ares e com as puras aguas que por cá se bebem. Eu cuida da lavoira, vou mito à caça, e intertenho-me com o pequerrucho. A Maricas está toda impregnada na creação de perus e dos patos. Manda-lhe ella perguntara se será possível obterem-se amostras de algumas raridades galináceas expostas na Exposição Agrícola do anno passadp. Também o incommodarei oedindo-lhe que saiba o preço dos differentes arados expostos, e bem assim o preço actual da sêda em casulo, e por quanto poderei haver tres milheiros de amoreiras para plantação. Bem quizera haver um bácoro da raça dos cevados de Allen; não sei se é exiquivel o apetite. Tenciono mandar à exposição do anno seguinte uma excellente junta de bois barrozãos, creados em minha casa, e imã poldra portugueza que já tem quinze pollegadas e tres linhas. Não lhe roubo mais tempo. Recados da Maricas, e um abraço do seu Nunes

PS. Que tal acha os presuntos? Diga-me se os de Lamego serão mais saborosos!?"

[Camillo Castello Branco, "Historia de um Casamento", in Revista Contemporanea de Portugal e Brazil, Primeiro Anno, Lisboa, 1859]

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2005


Ganhar o "centro", eis a questão, dizem!

"Bem, sobre o que iremos falar esta noite? Sexo, misticismo ou revolução?" [K. Rexroth]

Hoje estamos assim: a olhar o "centro". A imobilidade conceptual do curioso "centro" é uma tecnologia política de grande sensibilidade argumentativa. Não há no transe do debate ideológico nenhum analista que não fale "nele", conferindo-lhe toda uma série de unidades discursivas, ordenações sociológicas fascinantes e um encantador poder explicativo. Quem cede o dito "centro" político, fica à mercê de uma putativa indisciplina eleitoral. A obsessão pela sua privação do "centro" toma ares de um qualquer esquecimento genital, abandonados que estão os corpos sociais ao apelo sensual do adversário. A ordem sexual, perdão social, ressente-se disso mesmo.

Há qualquer coisa de não-gozo nisso tudo. Qualquer negócio de sofrida infelicidade. Compreende-se, pois, a mágoa de Miguel Coutinho (hoje na SIC) pelo desleixo erótico revelado pela ex-coligação. Daí, também, a tentativa de sedução quase imperativa de Marques Mendes para o povoar, qual cliente assíduo. A voluptuosidade manifestada por todos é um documentário libidinoso. Como os compreendemos.

Mas poderemos nós falar no "centro" enquanto espaço estático ou lugar da permanência absoluta, que só com astúcia e talento, carícia eleitoral ou investimento político-libidinal, nos é dado flirtar? Que identidade ou característica terá esse tão sacrossanto "centro", assim à margem de dinamismos conflituais, sem densidade alguma no teatro das classes sociais e das suas estratégias? De que se fala quando se fala do "centro"? Qual o seu construído? Afinal muda o "centro" porque as condições sociais se alteraram, dado que os indígenas se sentiram ameaçados no seu modo de vida, ou foram as forças políticas que deram uma escapadela, à laia de conquistador marialva, para a sua direita ou a sua esquerda, restando o "centro" in su situ? Que lei é essa, afinal?