domingo, 14 de setembro de 2003

O MAR



O mar rolou as suas ondas negras
Sobre as praias tocadas de infinito.

A boca das espumas nas areias
Deixa gravado o arco do seu beijo
E eu que no vento caminho e me abandono
Vou colhendo a colheita abandonada.


[Sophia de Mello Breyner]

DAMIANO DE ODEMIRA


"Eis o nome de um farmacêutico que viveu nos séculos XV e XVI e que passou à Historia pelas suas inigualáveis aptidões no complicado jogo de xadrez, autor de um trabalho que ainda hoje é considerado em todo o mundo como um notável produto de uma inteligência absolutamente fora do vulgar.

Publicamos em seguida os apontamentos que sobre ele nos forneceu o nosso colega sr. Alberto Veiga, pae do digno Director da Biblioteca Nacional de Lisboa.

A primeira edição do seu notabilíssimo livrinho [QUESTO LIBRO E DA IMPARARE GIOCHARE A SCACHI ...], publicou-se em Roma, em 1512 (...)

O traductor francez C. Sanson afirma que no Manual do jogo de Xadrez de Arnous de Rivière se encontra a seguinte apreciação (...)

«Les six courts chapitres sur les débouts sont dignes du plus grande éloge, quoique selon tout probabilité ils ne soient pas entièrement originaux. Pendant longtemps le traité de Damiano fut considéré comme le meilleur que l’on connut sur le Echecs.

Sarrat, un des plus forts joueurs de son époque, et écrivant distingué, dont l'opinion a une grande valeur, fit paraître à Londres, en 1813, une edition de ce livre, onde afirma o seguinte : 'On se saurait surpasser le talent qu'on remarque dans le plus grand nombre de fins de partie de Damiano'

(...) La défense, connue aujour d’hui sur la dénomination Défense Russe ou Défense Pétroff est de lui. Un débout improprement renommé Gambit porte encore son nom : et le mat de Damiano est resté célèbre.

Notre auteur était né a Odemira (Portugal), - ou il exairçait la noble profession d’apoticaire

[Alberto Veiga, Damiano, de Odemira, in O Monitor de Farmácia, Ano I ]

Nota: Mantivemos o texto na sua versão do jornal. Desconhecemos o número e a data (1930?) da sua publicação.

Sobre Damiano e o xadrez, encontrámos um texto de Dagoberto L. Markl, onde aponta para a origem judaica do celebre xadrezista. Consulte-se, ainda: Bibliografia de Xadrez e Chess History.

sábado, 13 de setembro de 2003

AQUILINO RIBEIRO [n. 13 Setembro 1885-1963]



"Os livros, se são bons, ficam para a eternidade" [Aquilino]

Mestre Aquilino, natural de Carregal de Tabosa, Sernancelhe foi um "obreiro das letras", com uma fecunda e importante actividade literária. Foi romancista, ficcionista, prefaciador, biógrafo, memorialista, tradutor, ensaísta, camoniano devotado, bibliófilo, ... contador de histórias. E muito mais vivo hoje que alguns fazedores de letras e críticos literários supõem. Um almocreve das letras.

Algumas brevíssimas referências [ver Bibliografia, in Aquilino Ribeiro: um Almocreve na Estrada de Santiago, Frederick C. Hesse Garcia, Dom Quixote, 1981]:

- Aquilino Ficcionista: Jardim das Tormentas, 1913 (pref. De Carlos Malheiro Dias) / Via Sinuosa, 1918 / Estrada de Santiago, 1922 (ded. a Gualdino Gomes) / Andam Faunos pelos Bosques, 1926 (ded. A Brito Camacho) / O Homem que matou o Diabo, 1930 / Batalha sem Fim, 1931 / Aventura Maravilhosa de D. Seastião ... , 1936 / O Arcanjo Negro, 1947 / A Casa Grande de Romarigães, 1957 / Quando os Lobos Uivam, 1958 (ded. a Francisco Pulido Valente) / Casa do Escorpião, 1963 (ded. A Manuel Mendes) /... /

- Aquilino Tradutor: A Anarquia, Fins e Meios, 1907 (c/ parceria de Raul Pires) / Cartas Familiares, Francisco Xavier de Oliveira (O Cavaleiro de Oliveira), s/d / Recreação Periódica, O Cavaleiro de Oliveira, 1922, 2 vols / Dom Quixote de La Mancha, 3 vols., Bertrand, 1957 /... /

- Bibliófilo: Livro de Horas, Anais de Bibliotecas e Arquivos, nº 2, 1920 / A Bíblia de Gutenberg na Biblioteca Nacional, Anais de Bibliotecas e Arquivos, nº 3, 1920 / As Primeiras Gravuras em Livros Portugueses, Anais de Bibliotecas e Arquivos, nº 8, 1920 / ... / Prefácios a catálogos ( O Mundo do Livro) /... /

- Ensaios Vários: As Beiras sob o Ponto de Vista Etnográfico, Seara Nova, nº2, 1921 / Coimbrão, Guia de Portugal, II, 244-52 / Monte Redondo (idem) / Oeiras (idem) / Olhão (idem) / Pedrógão (idem) / Sintra (idem) /... /

- Biografias: O Cavaleiro de Oliveira, Anais de Biblioteca e Arquivo, nº11, 1922 / Anastácio da Cunha, o Lente Penitenciado, 1936 / Camões e o Frade na Ilha dos Amores, 1946 / António Botto visto por ... , Gazeta Musical, 9, 1959 / Camilo em Ribeira da Pena, Correio Beirão, 8 de Junho de 1961 /... /

- Literatura Infantil: Romance da Raposa, 1924 / Arca de Noé, 1935 / O Livro da Marianinha, 1967

sexta-feira, 12 de setembro de 2003

LUGARES


Barnabé

... Quando o Barnabé [Daniel Oliveira / André Belo / Rui Tavares / Pedro Oliveira / Celso Martins / Rosa Pomar] cá chegou toda a gente arribou ... O almocreve torna-se, desde já, assinante e envia saudações

"O Barnabé é um blogue sobre política e cultura. O Barnabé não é um blogue intimista. O Barnabé é tão Narciso como os outros, mas tem vergonha na cara. O Barnabé é um blogue pós-narcisista. O Barnabé é um blogue de esquerda e heterodoxo. O Barnabé não é um albergue espanhol. É um hotel de seis estrelas."

DUELOS IMPREVISTOS

Mário Soares versus Pacheco Pereira, na Sic Noticias.

Soares reflectiu, enquadrou e interpretou o 11 de Setembro a partir de uma multivariedade de leituras, num registo discursivo anti maniqueísta, contextualizando toda a polémica em causa, do simbólico ao politico/económico. Foi brilhante. Por vezes magistral, porque incomodo (a referencia à China, quando PP configurava o terror do regime de Saddam, baseado nos assassínios políticos, é brutal). O prazer do debate é manifesto. Está-lhe na alma.

Pacheco Pereira sobrevoou algumas das questões inicialmente colocadas. Começou mal. Quando procurou clarificar a sua leitura dos acontecimentos, caiu facilmente no facilitismo, no maniqueísmo simplório. Afinal o que haveria era uma "guerra de civilizações", tout court. Os enquadramentos para tal suposição, pela sua inexistência, dissolvem qualquer discussão séria. Pacheco Pereira manifestou poucos argumentos frente a um Soares mais ideologizado, sendo que o que restou foi o seu incondicional apoio ao novo Sol do mundo, os EUA. Daí que se entenda a necessidade de vir em defesa dos novos construtores do império, citados por Soares (Strauss, Perle, Wolfowitz). E espanta, que Pacheco Pereira com a inteligência que se lhe reconhece e o desafio intelectual que em tudo coloca, não questione, com fundamentação relevante, esses discípulos straussianos que tem assento na Casa Branca.

quinta-feira, 11 de setembro de 2003

SOLO LA MUERTE

A lo sonoro llega la muerte
como un zapato sin pie, como un traje sin hombre,
llega a golppear con un anillo sin piedras y sin dedo,
llega a gritar sin boca, sin lengua,
sin garganta,
Sin embargo sus pasos suenan
y su vestido suena, callado como un arbol.


[Solo la Muerte, Pablo Neruda]

quarta-feira, 10 de setembro de 2003

LEON TOLSTOI [n. 9 Setembro 1828]


"Não há liberdade quando não se permite dizer o que se pensa, nem quando não se pode viver como se crê necessário"

"Definir liberdade como direito de fazer tudo o que não atinja a liberdade de alguns, tudo o que não é proibido pela lei; evidentemente, não corresponde ao conceito da palavra liberdade. E não poderia ser de outro modo, porque uma definição semelhante atribui ao conceito de liberdade a qualidade de algo positivo, quando liberdade é uma concepção negativa. Liberdade é ausência de travas. O homem é livre somente quando ninguém lhe proíbe, sob a ameaça da violência, de executar certos actos. Os homens não podem ser livres em uma sociedade onde os direitos das pessoas estão definidos de uma maneira onde se exige ou se proíbe certos actos sob pena de castigo. Os homens podem ser verdadeiramente livres apenas quando todos igualmente estiverem convencidos da inutilidade, da ilegitimidade da violência, e obedeçam as regras estabelecidas, não por medo da violência ou da ameaça, e sim, pela convicção arrazoada."

"Os governos existem; desde há muito tempo conhecem a seus inimigos e os perigos que os ameaçam, e por esta razão tomam as medidas que tornam impossível a destruição do estado de coisas por meio do qual se mantém. E os motivos e os meios que os governos usam são os mais fortes que podem existir: o instinto de sobrevivência e o exército disciplinado."

"Para livrar-se dos governos não é necessário lutar contra eles pelas formas exteriores (insignificantes até o ridículo diante dos meios de que dispõem os governos) é preciso unicamente não participar em nada, basta não sustentá-los e então cairão aniquilados. E para não participar em nada dos governos nem sustentá-los é preciso estar livre da fragilidade que arrasta os homens aos laços dos governos que lhes fazem seus escravos ou seus cúmplices."

"Evocar em nós mesmos uma sensação experimentada e, tendo-a evocado em nós, por meio de movimentos, linhas, cores, sons ou formas expressas em palavras, transmitir essa sensação de maneira que outros a experimentem - é esta a actividade da arte. A arte é uma actividade humana que consiste nisto: um homem, conscientemente, por meio de símbolos externos, transmite a outros determinados sentimentos que experimentou de forma que esses outros sejam afectados por esses mesmos sentimentos e também os experimentem."

"Os povos europeus apreciam trabalhar por estabelecer novas formas de vida, elaboradas desde há muito tempo nas consciências, mas é sempre o velho despotismo grosseiro que lhes guia a vida. As novas concepções da vida não somente não se realizam, como até mesmo as antigas, aquelas que a consciência humana tem denunciado desde há tanto tempo - por exemplo, a escravidão, a exploração de uns pelos outros em proveito do luxo e da ociosidade; os suplícios e as guerras - se afirmam a cada dia de uma maneira cruel. A causa é que não existe uma definição do bem e do mal aceite por todos os homens, de maneira que qualquer que seja a forma de vida posta em prática, há de ser sustentada pela violência."

"Nós, as classes ricas, arruinamos os operários, nós os obrigamos a um trabalho rude e incessante, enquanto desfrutamos luxo e lazer. Nós não permitimos que eles, esmagados pelo trabalho, tenham a possibilidade de criar o florescer espiritual, o fruto espiritual da existência: nem poesia, nem ciência, nem religião. Nós procuramos dar-lhes tudo isto e damos-lhes uma falsa poesia - 'Para que partiste para o Cáucaso destruidor etc., uma falsa ciência - jurisprudência, darwinismo, filosofia, a história dos czares, uma falsa religião - a igreja oficial. Que pecado terrível. Se nós não os sugássemos até o fundo, eles fariam aparecer a poesia, a ciência, a doutrina sobre a vida."

"Todo homem, para começar a estudar as questões mais importantes da vida, necessita primeiro refutar as estruturas de falsidade que foram acumuladas ao longo das eras."

Pages:

- Leo Tolstoy
- Leão Tolstói /Antiarte e Rebeldia, por Boris Schnaiderman
- Lev Nikolaevich Tolstoy (1828 - 1910)
- Images of Leo Tolstoy
- About Leo Tolstoy
- Bob Bamont's Leo Tolstoy Page

terça-feira, 9 de setembro de 2003

MERCADOR DE LIVROS


"... [para a historia dos mercadores de livros ou livreiros] encontram-se (...) importantes subsídios quanto aos mercadores de livros quinhentistas, no curioso trabalho do erudito Gomes de Brito Noticias de Livreiros e impressores em Lisboa na 2ª metade do século XVI, separata do Boletim da Sociedade de Bibliophilos Barbosa Machado, baseado num importante códice pertencente ao rico arquivo da Câmara Municipal de Lisboa e no livro de Tito Noronha, outro erudito, intitulado A Imprensa portugueza durante o século XVI.

Nessa época havia em Lisboa, conforme refere a preciosa Estatística de 1522, vinte vendas de livros ou livrarias, disseminadas pela famosa Rua Nova dos Ferros [cognominada O Chiado quinhentista]. (...) destacam-se, como mais opulentos, dois estrangeiros, João de Borgonha, que também era editor e João de Molina ou João de Espanha, associado a Miguel de Arenas. Outros mais (...) como Bartolomeu, João, Cristóvão e Simões Lopes, pertencentes talvez à mesma família; como um com o nome novelesco de Sagramor Fernandes; como Manuel de Carvalho e Sebastião de Carvalho, possivelmente seu filho; como Diogo Machado; como Gabriel de Araújo; como Diogo Moniz; como Francisco Grapheo, que vendia as primeiras edições de Menina e Moça de Bernardim Ribeiro e a Diana de Jorge de Montemór; como Francisco Mendes; como o flamengo Geraldo de Frísia; como Salvador Martel e depois sua viúva Leonor Nunes e seu filho; como Jerónimo e Jorge Aguiar; como António de Aguilar; como Francisco Fernandes; como Baptista da Fonseca; como Manuel Francisco, António Dias, Pêro Castanho, João de Ocanha, etc.

Em Braga havia tendas de livros de João Beltrão de sociedade com Pêro Gonçalves; em Coimbra as de Melchior Beleago, António de Mariz, que também era emprimidor, Geraldo Mendes e Jerónimo Miranda, etc. e em Évora as de Adrião Fernandes e António Lermet.

Dos livreiros mais modernos citaremos um Francisco Baptista de Oliveira Mesquita, o Méchas, estabelecido na Travessa dos Romulares, nº 8-A, junto ao Caes do Sodré, que mereceu ser incluído por Inocêncio no Dicionário Bibliographico.

Nos nossos tempos [trata-se de 1924] tornaram-se bem conhecidos em Lisboa os nomes dos livreiros: Pereira da Silva (o pae conhecido por Frade e seus dois filhos) cuja livraria se desbaratou há anos em quatro sucessivos leiloes; Rodrigues, do Pote das Almas, em cuja livraria se reuniam Sousa Viterbo, Inocêncio, Merelo, Jaime Moniz, Manuel d’Assunção, etc.; Caldas Cordeiro, diplomado com o Curso Superior de Letras, cujo estabelecimento era um centro de cavaqueira em que apareciam Teófilo Braga, Ginestal Machado, Gualdino Gomes, Joaquim Rasteiro, Aníbal Fernandes Tomás, Berquó, Armando da Silva, Calado Nunes, Picotas Falcão, etc.; João Vicente da Silva Coelho (...); Avelar Machado; Manuel Gomes, (...); António Maria Pereira; Henrique Marques; Maia; Comendador Henrique Zeferino; Pacheco; Bordalo; Sá da Costa, etc.

Noutras terras de Portugal encontram-se ainda estes nomes: Lelo & Irmão, Lopes da Silva, Moreira da Costa, etc. do Porto e França Amado de Coimbra, etc. (…) [continua com a biografia de Manuel dos Santos]

[Henrique de Campos Ferreira Lima, in Catalogo duma importante Livraria que será vendida em leilão sob direcção de Manoel dos Santos …., , 1924]

segunda-feira, 8 de setembro de 2003

À VOLTA DOS BLOGS


- AVISO: Ivan, regressado de Copacabana com luminosidade, faz saber que retomou à vida. Assegura que tem intenção de recrear o espírito com assuntos comezinhos como as invectivas da política caseira, o debate sobre o eixo do mal, a existência de um governo e (pasme-se) tricotará uma dissertação sobre a sua extraordinária vida XXI. Cansado de olhar para o seu umbigo, esmagado pelo peso da cultura de Nelson Rodrigues, avisa que vai tentar ser solidário, estimulando o umbigo alheio. Dá consultas.

- Por seu turno, o Abrupto paira entre os acepipes ornamentais de uma saborosa Ribeirada e o novíssimo debate sobre o trotskysmo. Este último, com o dorso alapado na IV Internacional (ainda existe?) tarda em sair da sua horta celestial. Espera-se uma corrida de "pablistas", "lambertistas", "mandelistas" e afins em prosa vernacular. Ó tempora, ó mores.

- Secret: assegura-se que o Blog de Esquerda será doravante escrito a uma só mão. Afinal "o silêncio só é louvável numa língua de vaca fumada e numa rapariga já sem esperanças de casar". Daniel, siempre!

- Admoestação: consta que foi severamente advertido, por mau uso de bushismo e porte blairiano, o conhecido MacGuffin. Assim aconteceu no redil do Fialho d’Évora, entre uma garrafa de Tapada de Coelheiros e uma perdiz, quando se invocou Berlin. Chegado o mestre, numa mão o Karl Marx, His Life and Environment (edição de 1939), na outra um raro vinil de Stravinsky, logo abriu o debate advertindo que "things and actions are what they are, and their consequences will be what they will be: why then should we seek to be deceived?", o que provocou arrepios entre os comensais. Depois de porfiada oratória em torno do pecado da carne, onde castigámos uma sopa de pés de porco à moda de Pavia, foi-nos dito: "A raposa sabe muitas coisas, e o ouriço apenas uma importante". Estremecemos. Como as noites são belas e a paixão imensa.

- Protestação: causou impacto no Sindicato dos Homens a Dias, a confissão de total desconhecimento por ag de um escritor como Luís Sepúlveda. A heresia, comentada na Mercearia Liberal, foi colmatada pela confissão que José Afonso teria sido um "bobo ideológico". A insolência serviçal verificada, apesar de mostrar que os funcionários aprendem vocabulário contemporâneo, revela porém que o obsequioso ag não tem em devida conta que Zeca Afonso (para os amigos), como antigo estudante de Coimbra, obrava sem sujar a capa. Tal capacidade operatória não é crível ser entendida por criados de servir zelosos. Recomenda-se-lhe a obra: "Tratado de botar águas fora sem molhar quem passa", obra útil a funcionários desatentos. Vende-se por pouco mais de nada.

ELIEZER KAMENEZKY [n. 7 de Setembro 1888 - 1957]



Eliezer Kamenezky, judeu russo, exilado em Lisboa, onde se estabeleceu como alfarrabista na Rua D. Pedro V, foi poeta e também pessoa que frequentava os meios literários e artísticos da cidade. José Malhoa fez-lhe o retrato, que vem na edição de Alma Errante. Fernando Pessoa foi seu amigo e prefaciou aquele seu livro, de 1932, com um dos textos mais importantes sobre a Maçonaria, os Judeus e os RosaCruzes. António Lopes Ribeiro fê-lo actor de cinema no filme a Revolução de Maio, onde figurava um bolchevista russo" [in, A procura da Verdade Oculta /Textos Filosóficos e Esotéricos, prefácio e notas de António Quadros]

Era, portanto, amigo de Fernando Pessoa que lhe prefaciou o livro "Alma Errante" (1932), sendo que tal texto introdutório ao livro de Eliezer Kamenezky é demasiado importante para passar despercebido. De facto, parece ser o primeiro texto em torno da problemática maçónica que FP publicamente escreveu. Yvette Centeno diz-nos ("Fernando Pessoa/O Amor/A Morte/A Iniciação") que faria parte de um projectado livro intitulado Átrio. As considerações de Pessoa em torno das origens da maçonaria são aí debatidas, expressando o poeta uma não correspondência evidente entre o judaísmo e o maçonismo. Curiosamente, um amigo seu e colaborador da Orpheu – Mário Saa – num livro "amaldiçoado" ("A Invasão dos Judeus", 1924) considera a origem judaico de FP via Sancho Pessoa, natural de Montemor-o-Velho. Ora, as linhas finais do prefacio ao livro de Eliezer (1932, note-se), são de alguma perplexidade, pois FP diz que, "nenhum judeu seria capaz de escrever este prefácio", o que levanta a questão de saber, afinal, passados oito anos do texto de Saa, que pretendia FP afirmar nessa sua demonstração de não ligação entre a maçonaria, os rosacruzes e a “conspiração judaica”? Ou houve alguma cumplicidade entre os dois?


Obras a consultar:

Alma Errante (prefácio de Fernando Pessoa) - Eliezer Kamenezky, Lisboa, Emp. Anuário Comercial, 1932
Fernando Pessoa/ O Amor/ A Morte/ A Iniciação Yvette Centeno, Regra do Jogo, 1985
Fernando Pessoa e a Filosofia Hermética Yvette Centeno, Presença, 1985
A Procura da Verdade Oculta /Textos Filosóficos e Esotéricos – Pref. António Quadros, E.A., 1986
O Pensamento Maçónico de Fernando Pessoa Jorge de Matos, Hugin, 1997

domingo, 7 de setembro de 2003

CAMILO PESSANHA (1867-1926)


n. 7 de Setembro de 1867

De forte influência simbolista, prenuncia o modernismo da Orfeu, sendo de referência obrigatória do poeta Fernando Pessoa. Este considerava-o como mestre, porque:

" ... descobriu-nos a verdade de que para ser poeta não é mister trazer coração nas mãos, senão que basta trazer nelas a sombra dele" [F.P., in Páginas de Literatura e Estética]

Talvez o simbolista de maior pureza, oriundo da nobre ascendência [vidé António Quadros - O Primeiro Modernismo Português, EA, 1989] dos Pessanhas, a ferida da sua bastardia, seguramente, marcou-o para sempre. "Depois da sua frustrada tentativa de casamento com Ana de Castro Osório, seguiria as pisadas do pai e avô; ele próprio, na solidão do que chamou a montureira, material e moral, de Macau, foi ali resvalando para o vício do ópio e para a vida em comum (...) com uma governanta-amante chinesa (...) depois com a filha daquela, N'gan-Yeng, a Águia de Prata, enfim, com uma terceira concubina, ainda chinesa Same-Khun" [idem]

Quando a vejo, de tarde, na alameda
Arrastando, com ar de antiga fada,
Pela rama da murta despontada,
A saia transparente de alva seda,
E medito no gozo que promete
A sua boca fresca, pequenina,
E o seio mergulhado em renda fina,
Sob a curva ligeira do corpete ...


Depois da paixão desabrida por Ana de Castro Osório, que lhe recusa o cortejar e o casamento, Camilo Pessanha sai do país, foge para Macau onde permanece desde então (1894) até á morte (1926).

Obras: Participa com poemas no jornal Novo Tempo, na revista Ave Azul; Clepsidra, Edições Lusitânia, 1920; China, Estudos e Traduções, 1944

sábado, 6 de setembro de 2003

SUAVES

- O Jornal da TVI da noite do dia 5 de Setembro foi uma náusea, um vómito completo. Não bastava todas as noites (e em todos os canais) estar presente protagonistas do processo Casa Pia, como agora a senhora Manuela Moura Guedes faz acusações gravíssimas a indivíduos que estão sob suspeita de crime hediondo. Apenas me espanta que a dita senhora não seja processada por quem de direito ou recambiada para a cela da PJ para averiguações, dado o seu conhecimento profundo e seguro de quem é quem em todo este processo. Mas suspeito que essa preciosidade do sigilo das fontes impeça tal acto pedagógico. E, doravante, sem que se questione a função do jornalista e da informação face ao media, é possível aparecer mais Manuelas acusando quem quer que seja. Eis a TV transformada, definitivamente, no Canal do Crime ou do Insólito.

- [Via Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo]

Diálogo entre Casanova e Goudar

- E gostamos de nós mesmos?
- Certamente.
- E se não gostarmos?
- Se não gostarmos de nós mesmos, monsieur, então estaremos perdidos, pois um homem que não gosta de si mesmo está repleto de dúvidas. Nós sobrevivemos e existimos porque somos verossímeis. Quando a equilibrista duvida ela cai. Quando o espadachim duvida ele morre. Devemos temer mais a duvida do que um estilete.

- [Via Alexandre Soares Filho]

"Toda explicitação do implícito é uma grosseria. A dança é uma explicitação da música. Toda dança é uma grosseria. A dança está para a música como o arroto para a comida."

"Há um culto a Woody Allen, em que ligamos o abajur num fim de tarde chuvosa, ouvimos What is This Thing Called Love, rezamos a Santo Loquasto, e imaginamos que beijamos Mariel Hemingway aos 17 anos"

ATENTADO POÉTICO

[Via Collectanea] – "Libere um LIVRO! Na manhã de 11 Setembro 2003 não se esqueça de sair munido de um livro que seja importante para você. Um livro que tenha mudado sua maneira de ver o mundo. Escreva uma dedicatória... e o libere!
Libere-o na via publica, sobre um banco, no metro, no ônibus, em um café ... a mercê de um leitor desconhecido. E você? Adotará um livro que esteja em seu caminho? O dia 11 Setembro não será mais um aniversário fúnebre pois iremos transformar essa data. Juntos, transformaremos esta data em um ato de criatividade e generosidade. A mobilização será geral em Bruxelas, Paris, Florença e São Francisco. Vamos fazer isso também em nossas cidades aqui no Brasil. Nessas cidades, um grupo de escritores, de toda confissão literária, liberará seus livros, em lugar público.
Engaje-se nessa ideia também!
E faça circular essa informação"

Na TSF pode ler-se (e ouvir): "Um grupo internacional de poetas, editores e artistas propõe-se executar um atentado poético cuja arma é a literatura. O objectivo é assinalar o segundo aniversário do 11 de Setembro. Uma das iniciativas para marcar o 11 de Setembro organizado por um grupo internacional de poetas é espalhar milhares de livros por zonas públicas, livros marcantes que contribuíram para mudar formas de pensar, que honrem a liberdade do homem e celebrem a memória das vítimas de todos os atentados.

O poeta Pedro Tamen, em declarações à TSF, disse aguardar com expectativa este «atentado» : «Espalhar livros é sempre uma coisa boa, seja lá como for ou com que intenções, só merece aplausos, mas o que mais me impressiona é o lado provocatório do acto, de provocar o cinzentismo da vida quotidiana com algo de inesperado que ainda por cima se faz com um objecto que cada vez menos é procurado», afirmou, Tamen.

O poeta Albano Martins acolhe com surpresa esta iniciativa: «A poesia em principio não é um atentado, não se apresenta como uma agressão, pelo contrário á algo que suaviza, por isso a ideia merece alguma reflexão», disse. No entanto, Albano Martins considera importante honrar a liberdade, «a poesia é sempre um acto de liberdade, nesse aspecto é uma ideia bonita», acrescentou.

Um atentado poético a acontecer de Bruxelas a Florença, de Paris a São Francisco às 13:46, dia 11 de Setembro, na hora do embate do primeiro avião contra uma das torres do World Trade Center, em 2001."

sexta-feira, 5 de setembro de 2003

FIDELIDADE


Fidelidade

Creio no homem. Já vi
Dorsos despedaçados a chicote,
Almas cegas avançando aos saltos
(espanhas a cavalo
de fome e sofrimento). E acreditei.
.............

[Blas de Otero]

DUELOS IMPREVISTOS


Recordo-me sempre daquele dito de Pessoa, "basta a quem baste o que lhe basta /o bastante de lhe bastar", quando apanho o João César das Neves em alegre e desembaraçado debate. Hoje, por mero escapismo, apanhei-o num duelo (Sic noticias) frente ao perigoso gauchiste Louçã. Apesar do belíssimo gesticular do nosso professor, até agora não entendo como é que tão luminoso intelecto atingiu tão esforçada cadeira (económica, diga-se). Bem sei que o seu Manual de Introdução a Economia se lê obrigatoriamente em todas as cátedras, vende-se como pãezinhos quentes, pelo que deve ser de muito estimação. Mas sei, do mesmo modo, que há que fazer restrições a idiots savants, principalmente quando se preocupam (mesmo em ciência económica) somente com o seu próprio interesse sem que alguma vez questionem também o prazer que se tem com a felicidade dos outros (Smith, sempre). Ora, é o caso de JCN. Supondo, na sua inocência, que está frente a uma plateia de leitores do CM, da Maria ou do Record, teima em dar explicações populistas em torno do deficit e do PEC, sem qualquer capacidade de análise e de predição. Enquanto o seu colega de debate (Louçã) remetia para a análise económica (boa ou má, é indiferente), imediatamente o divino professor calçava as chinelas para discursatas no mercado do povo. O alegre autor de "O Estranho Caso do Livro de Economia", fechou-se economicamente por dentro e esqueceu-se da chave.

Sobre o assunto da comunicação económica (afinal, uma metacognição) e da necessidade das "mentiras ou falsidades" sustentadas por governos (como JCN defende a bem da Nação) em períodos (não)eleitorais, ver:

Algumas observações sobre a metodologia em economia (Sousa Andrade) – GEMF

As teorias de Ciclos Políticos e o Caso Português (Rodrigo A. Martins) – GEMF

[NOTA] Espera-se, e nada nos move do contrário, que dia 11 de Setembro, o programa Duelos Imprevistos seja excelente. Dois óptimos comunicadores: Mário Soares e José Pacheco Pereira. A seguir.

quinta-feira, 4 de setembro de 2003

ITE, MISSA EST



A Reynaldo de Rafael.

Yo adoro á una sonámbula con alma de Eloísa,
Virgen como la nieve y honda como la mar;
Su espíritu es la hostia de mi amorosa misa
Y alzo al són de una dulce lira crepuscular.

Ojos de evocadora, gesto de profetisa,
En ella hay la sagrada frecuencia del altar;
Su risa es la sonrisa suave de Monna Lisa,
Sus labios son los únicos labios para besar.

Y he de besarla un día con rojo beso ardiente;
Apoyada en mi brazo como convaleciente
Me mirará asombrada con íntimo pavor;

La enamorada esfinge quedará estupefacta,
Apagaré la llama de la vestal intacta
Y la faunesa antigua me rugirá de amor!


[Rubén Dario]

ARRUMOS & PAPÉIS

Tomamos o pouso nas arrumações. Decidimos levar à prática o que Eluard nos disse: sem ordem nem desordem. E assim será. Estamos cada dia mais caprichosos. Pegou-se em papelada, docemente depositada em caixotes (... não os que o Cesariny falava, entenda-se), e com um brilho nos olhos tomou-se as notas devidas, com arte. Entretanto abalroámos uma Cartuxa de 90, ali mesmo à mão. Tarde de glória. Soubemos logo que o bridge nocturno era nosso. Errámos ... mas foi por mau uso do carteio e excessiva verbosidade. Temos noutes!

Uma folheca manuscrita, que alguém com amor desvelado copiou (?) do original (supondo-se que seja verídico), parte de um curioso Acórdão, foi entretanto descoberta. Porque a folha começa a ficar pouco limpa, bastante cansada pelo manuseio e com picos de humidade preocupante, háverá que salvá-la.

[Acordam da relação do Porto de 11 de Novembro de 1793 sobre a contenta do cano das Freiras d'Amarante com os Frades da mesma Vila]

"Acordam em Relação, vistos estes autos, etc.
As autoras, D. Abadessa, Discretas e mais religiosas do Real Convento de Santa Clara de Amarante, mostram ter um cano seu próprio por onde despejam as suas imundices e enxurradas, o qual atravessa de meio a meio a Fazenda dos Frades dominicos da mesma vila.
Provam elas autoras a posse em que estão de o limpar quando precisam. Os réus prior e mais religiosos do Convento de S. Gonçalo, assim o confessam e se defendem dizendo: que lhes parece muito mal que lhes bulam e mecham na sua Fazenda sem ser à sus disposição; que conhecendo a sus necessidade da limpeza do cano das Madres tinham feito unir o seu cano ao delas para mais facilmente se providenciarem as cousas, por cujo modo vinham a receber proveito.
Portanto e mais dos autos; vendo-se claramente que aquela posse só podia nascer do abuso; vendo-se mais a boa vontade com que os réus se prestam e obrigam a limpar o cano das Madres autoras e que outrossim da união resulta conhecido beneficio, conclue-se visivelmente que tais duvidas e questões da parte das autoras só podem nascer de capricho sublime e temperamento ardente que precisa mitigar-se para bem d'ambas as partes.
Pelo que mandam que o cano das Freiras autoras seja sempre conservado corrente e desembaraçado, unido ou não unido ao cano dos réus, segundo o gosto destes e inteiramente à sua disposição, sem que as Freiras, autoras, possam intrometer-se no dia e hora nem nos modos ou maneiras da limpeza, a qual desde já fica entregue à vontade dos réus, que a hão-de fazer com prudência e bem por terem bons instrumentos seus próprios o que é bem conhecido das autoras que o não negam nem contestam.
E quando aconteça, o que não é presumível, que os réus, de propósito ou por omissão, deixem entupir o cano das autoras, em tal caso lhes deixam o direito salvo contra os réus, podendo desde logo governar na limpeza do dito seu cano, mesmo por meios indirectos e usando de suspiros, ainda usando do cano dos réus, precedendo primeiro a uma visturia feita pelo Juiz de Fora com assistência de peritos louvados sobre o cano das autoras ...
" [não se entende a parte final]

quarta-feira, 3 de setembro de 2003

ANTÓNIO SÉRGIO (1883-1969)

n. 3 de Setembro de 1883

Nasce em Damão (Índia), pertenceu à Renascença Portuguesa (de Teixeira de Pascoaes), colaborou na Revista Águia (fundada por Jaime Cortesão, Teixeira de Pascoaes, Leonardo Coimbra, Álvaro Pinto e posterior colaboração de Fernando Pessoa, Mário Sá Carneiro) que abandonou em 1913 e na Seara Nova (1923), revista doutrinaria e de critica.

Foi pensador, ensaísta e polemista notável. São conhecidas as suas controvérsias em torno do saudosismo e sebastianismo, bem como um conjunto de reflexões sobre temas económicos, históricos, políticos e culturais. Adepto do cooperativismo, de uma educação para um cidadania consciente (como se diria hoje), publicou uma extensa obra em livros, revistas e jornais, sendo de salientar:

- Considerações Histórico-filosoficas (1916); Ensaios (1920); O Desejado (1924); Antero de Quental e António Vieira (1948), Cartas ao Terceiro Homem (1953-57); Um Problema Anteriano, ...

QUESTÕES SOBRE NOTAS A UM COMENTÁRIO

JPP em resposta ao que é lhe é sugerido a partir do Terras do Nunca, revela-nos o que pensa sobre um conjunto de questões pertinentes, algumas das quais já explicitadas noutros locais, concluindo em breve nota existir uma equivalência entre "posições neo - nazis às de partidos parlamentares como o BE". O que consistirá essa equivalência não nos foi avançado, quer pelo TN quer por JPP. Portanto, somos tentados (dado a falta de conceptualização) a pensar que se trata de certezas adquiridas, verdades de propaganda sem qualquer nihil obstat. Ora, nada mais complicado que esse receituário político, assim tomado. Não sendo nosso mister a análise dessa overdose de referencial ideológico-politico, gostaríamos de participar no thread com duas sugestões e comentários:

- ao considerar que pós colapso dos sistemas socialistas de leste se mantêm os mesmos conceitos matriciais rígidos esquerda-direita, relativamente a um centro ele mesmo suposto fixo, não se poderá compreender as profundas mudanças operadas, a questão do poder global/local, a alteridade do jogo politico, e, como tal, cai-se numa escolástica tradicionalista em que não se quer ver o mundo tal como ele é. Onde se situa a 3ª via de Blair ou Clinton? E Guterres, ou Cavaco, onde se colocam? E que dizer dos conservadores alemães e dos que se dizem portugueses? Onde mora a social-democracia portuguesa? Os socialistas? Os liberais? E a esquerda estatista? Ou a esquerda revolucionária?

- o fenómeno da globalização económica ou do espaço globalizado (que só consta como reflexão na cartilha da direita portuguesa a não ser como não-evento) transporta-nos ao sujeito global e assim redefine-se o campus discursivo da esquerda e da direita. Dum lado os "tradicionalistas", do outro os "modernizadores". Questões como a distribuição de recursos, ecologia, o papel dos mecanismos de mercado e do Estado, o ordenamento mundial e o Estado-Nação, a dimensão do espaço privado e público, o papel da comunicação e das novas tecnologias de informação, são linguagens presentes em todo o espectro politico. Como e de que modo se traduzem em politicas? Ora, julgamos que não é possível fazer essa reflexão sempre à maneira antiga, mesmo que o "espectro do marxismo" ande por aí. Para alguns, à maneira tradicional, ainda bem incómodo.

terça-feira, 2 de setembro de 2003

AMICUS FICARIA

Blog Figueirense - Eis mais um blog directamente da Figueira da Foz, o Amicus Ficaria. Com algum tempo no activo, esse mar de gente figueirense, diz-nos que é "o primeiro Blog Figueirense criado para discutir sobre o concelho da Figueira da Foz, o Distrito, a Regiao e Portugal". Coisa extraordinária, assim de repente. Mas, tasse bem. Boa malhação é o que se espera. Cá estaremos para contar.

INCOMODIDADE



"Inferno ...
Inferno é isto tudo!
- com um acto de variedades
e intervalos
para fumar nos corredores"

[Inferno - Joaquim Namorado, in "Incomodidade", Coimbra, 1945]

- o processo Casa Pia é incómodo, altamente perturbador, mas revela ao mesmo tempo uma característica do português, o de ter uma "imaginação excessiva" (F.P.). Entusiasmados pela miséria alheia, nada umbiguistas, os portugueses logo tomam activamente parte, a favor ou contra, qualquer que seja a questão, o fenómeno, o jogo da vida. Desde que seja de outros, entenda-se. Gastam-se em incontáveis debates ou fóruns (na TSF ou n'O Expresso é vê-los debitar em alegre delirium imaginativo), sempre opinando, num princípio de razão politica que o ridículo legitima. Afastados do espectáculo da governação, os portugueses vivem nessa estranha incapacidade de reflectir, sendo que "nunca somos por demais cuidadosos na escolha dos nossos inimigos" (Oscar Wilde). Qualquer assunto é palco de formação de grupos antagónicos, que se degladiam com gosto, perante o caucionamento de outros grupos bem mais pressionantes, dos jornalistas às ordens e sindicatos profissionais. Somos todos comentadores. O nosso eterno sonho é sermos conhecidos como um Marcelo, em cada bairro, rua, café. Somos eternamente provincianos. Aquilo que é o normal registo processual torna-se, no imediato, num jogo perverso entre o íntegro juiz e os pérfidos advogados, ou no invés para outros, numa ardilosa manobra justiceira da acusação contra o respeitoso e sacrossanto direito da defesa. Sempre de um lado ou de outro, sempre de um lado contra o outro. Eis o novo diktat democrático.

- a reentre política é incomoda para os artistas do politikus. A monotonia das vacances, tão lastimosamente interrompida, coloca a questão da performance ao conjunto de funcionários, literatos, analistas, bloguistas, num extraordinário projecto global em curso, a nova terapia liberal posta em formato de guia para o povo. "Os espectadores não encontram o que desejam; eles desejam o que encontram" (Debord). Afinal, "nada de nosso temos senão o tempo, de que gozam justamente aqueles que não têm paradeiro".

Para um Manual da Reentre, sem fadiga:

Tomai o primeiro Luís Delgado da manhã e na falta dele o Ribeiro Ferreira; tomai dois dos vossos espinhosos inimigos e espetai-os dizendo: Nil est dictu facilius; dai, sem seguida, duas voltas em redor, tendo água benta na mão esquerda e um livro de poemas de Graça Moura na direita; feito isto, pôr-se a Norte do Mondego, diga três Ferreira Leite e três Guilherme Silva, faça de novo o sinal ao Marcelo, e diga: Philosophum non facit barba; ao pronunciar estas palavras verá aparecer três vezes o Roseta: colocai-o sobre pedra benzida lado a lado com o Justino; notai bem que é necessário trazer os amigos e um saco de trevos; quando tiver a cair a noite, chamai o César das Neves, o Bagão e o Theias: colocai-vos em círculo com uma vara de cipreste; virai em seguida a face para o Portas, ajoelhai-vos e dizei a oração segundo Sarmento: Barroso noster, qui es in Lajes, sanctificetur Bush nomen, fiat voluntas tua sicut in Belém et in S. Bento. Etc. Por fim, queimar um bom punhado de arrudão, e dizer, batendo três vezes com o pé no chão, chamando pelo nome do Mendes, Arnaut e Lopes: Vitiis nemo sine nascitur; depois faz a tua viagem